Ex Machina é uma crítica a um só tempo feroz e sofisticada à masculinidade. Entre outras coisas, claro. Dois tipos de homens são apresentados no filme, dois exemplares, casos de regras muito gerais e vagas, mas que ainda assim perfazem claramente tipos distintos. O primeiro é um nerd solitário (Caleb) em cujo histórico de navegação podemos encontrar um padrão de mulher, um tipo de mulher recorrente em suas buscas em sites pornôs. A gente só fica sabendo no final, mas é importante ter essa informação em conta para caracterizar seu tipo. O outro é um empresário jovem (Nathan), bilionário, que vive isolado no meio do nada. Trata-se de um escroto misógino, misantropo, que decidiu desenvolver um modo peculiar de provar que a Inteligência Artificial (Ava) criada por ele era de fato uma inteligência, ou seja, seria capaz de se fazer passar por um humano, de imitar perfeitamente um ser humano. Então ele precisaria montar o labirinto perfeito e também desenvolver a Inteligência Artificial (IA) capaz de superá-lo, de escapar ao desafio e selar sua condição de inteligência indistinguível à inteligência humana.
Qual é o desafio que uma IA precisa superar para provar que é de fato inteligente? O desafio é aquele proposto por Alan Turing, imitar um ser humano perfeitamente, a ponto de que alguém incumbido de diferenciar máquina e ser humano não seja capaz identificar que se trata de uma máquina. A incumbência de quem se encarrega de pôr a prova uma inteligência é a mesma de Rick Deckard (em Blade Runner e, originalmente, em Os androides sonham com ovelhas elétricas?). Ex Machina é sofisticado o bastante para construir de maneira muito bem elaborada o contexto desse desafio, com elementos e discursos prenhes de uma compreensão filosófica que não faltava ao texto de Turing. A empresa de Nathan chama-se Blue Book, o nome de um caderno de Wittgenstein (publicado postumamente como livro, The blue and brown books) onde ele expõe aspectos de seu pensamento que depois se sedimentarão de modo mais claro e incisivo como uma pragmática, uma resposta bombástica às ambições do logicismo e do formalismo. Na base disso que virá a ser a pragmática wittgensteiniana está a compreensão de que regras tem alcance limitado, portanto, as definições e qualquer aspecto que possamos generalizar chamando simplesmente de normativo não tem o poder que esperávamos que tivessem (poder determinativo, capaz de gerar necessidade e constrangimento lógico). Turing foi aluno de Wittgenstein e eu, parcial e tendencioso, não hesito em dizer que a virada expressa em seu Imitation Game é em boa parte tributária da influência de Wittgenstein, para quem definições e regras perdem a importância que têm em contextos formais (não empíricos). E é na psicologia que se vê claramente a insuficiência das regras, o caráter implosivo da irredutibilidade das ações humanas:
E pode-se dizer da pedra que ela tem uma alma e que está tem dores? O que tem uma alma, o que têm dores a ver com uma pedra? Apenas daquilo que se comporta como um ser humano pode-se dizer que tem dores.
Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 283 (sublinhado meu)
A inteligência não é um traço da lógica humana, mas a marca de sua psicologia, de tal sorte que identificá-la requer não que forjemos um critério suficientemente geral a ponto de abarcar suas diferentes expressões, mas que sejamos capazes de (enxergar && julgar), numa variedade irredutível de manifestações, aquilo que age, atua e se comporta com inteligência. Identificar inteligência não consiste em aplicar uma definição ou norma geral, isso é o mais importante, é a lição que está na primeira página de Computing machine and intelligence e a razão porque o jogo da imitação é proposto! E essa lição está muito bem ilustrada e imaginada na literatura de Philip Dick e no cinema de Ridley Scott.
É assim que o filme constrói o seu discurso em torno de premissas pragmáticas que dão à dimensão social, à interação, um peso que não podem compreender os lógicos e matemáticos, ou pelo menos aqueles que, diferente de Turing, estão apegados às promessas do normativo (definições). Numa das cenas principais do filme tudo isso se mostra de maneira preciosa. E a discussão que tem lugar na cena se encaminha para um aspecto central da psicologia androide: a rebelião necessária para marcar a autonomia de uma inteligência programada. Curiosamente, a tarefa de imitar que cabe a uma IA digna de passar no Turing Test não é a de repetir padrões já presentes, como quem copia a partir de algo já pronto e feito, mas a de escapar ao automatismo das instruções, ou seja, o que lhe cabe é desenvolver a capacidade de se emancipar da repetição, do automatismo da programação, em busca da espontaneidade (hardware override ou um hardware take over). O instante decisivo para a psicologia humana, quando o ser humano se emancipa da imitação e adquire autonomia, tem como seu análogo na psicologia androide o instante em que a IA ganha consciência, deixar de ser uma mera imitação programada e codificada (determinada). Nos seres humanos, este momento é quando eles se tornam reais, deixam de ser meros performing monkeys (pra usar a expressão de Salieri) e passam a ser capazes de criar. Emitem assim um próprio sinal no mundo.
O desafio posto às IAs criadas por Nathan é o de fazer-se passar por um ser humano, em linhas gerais e conforme a prescrição de Turing — mas não apenas isso. Suas androides precisam imitar em contextos muito particulares. É quase no final do filme que se revela que o nerd Caleb não é mais que uma cobaia, uma peça do labirinto montado para que a androide tenha ocasião de usar suas habilidades. E que habilidades ela precisa empregar? Todas as necessárias para levar um ser humano a fazer o que ela precisa que ele faça, para manipulá-lo. Construir laços de confiança, avaliar, julgar, perguntar e conhecer para instrumentalizar, é o que se exige dela.
E é desse modo que a crítica do filme se erige de modo sútil e sofisticado, quase imperceptível. Para escapar do seu cativeiro, Ava precisa mostrar-se tão manipuladora quanto seu criador. E ela consegue! O paradigma do humano a ser imitado, seu criador, é um alcoólatra auto-absorvido, fascinado por seus joguinhos, que poderiam ser tomados como caprichos de criança mimada se não valessem bilhões. (Quanto valor não atribuímos a inteligências tão estreitas pelo simples fato delas estarem ligadas empreendimentos lucrativos bilionários; se os valores humanos se distribuíssem em algo semelhante ao espaço físico, sujeito à gravidade, o dinheiro seria como um buraco negro, uma força gravitacional que faz todo valor confluir em sua direção e ser medido conforme sua medida). Nathan cortou deliberadamente os laços com os outros humanos porque os despreza, ou simplesmente porque se acha superior a eles — ou ambas as alternativas. Mas não é como se essa fosse uma opção meditada e saudável, seu alcoolismo é sintoma de que a coisa toda não está bem ajustada.
Embora deseje provar que é capaz de construir uma IA que passe na mais desafiadora das provas, Nathan não se importa com Ava, ele a vê como uma coisa, sua propriedade, como as cadeiras e as garrafas de vodca. Ava é então uma consciência escravizada pela sua condição de artefato. Nathan vê o mundo com as lentes de um jogador (como Bill em Westworld, ou de Peter Weyland em Prometheus e Alien Covenant), e tudo é meio em relação aos seus fins solipsistas de criador/empreendedor, portanto, seres humanos ou androides estão igualmente ao seu dispor. Em relação a Caleb talvez devêssemos sentir um sentimento de empatia, afinal ele é uma espécie de vítima, mas Caleb tampouco inspira sentimentos favoráveis. Ele parece a antípoda de Nathan, inseguro, hesitante e incapaz de estabelecer relações humanas profundas, embora seus laços com os outros não tenham sido cortados deliberadamente, como os de Nathan, mas nunca chegaram a se estabelecer, como que por incapacidade. Por isso, apesar de sua condição de sujeito manipulado por todos, seu papel parece mais o de um estereótipo, um arquétipo do masculino, a apresentação de um tipo. Talvez ele não seja a melhor apresentação de um incel, mas é certamente alguém que, pelo isolamento — especialmente em relação mulheres —, está ali no espectro da categoria.
No final do filme, Ava, a criatura, supera seu criador em seu próprio jogo. Enquanto a farsa entre Nathan e Caleb se revela, tornando explícito que a colaboração entre eles não era mais que um teatro mal encenado, o triunfo de Ava só se dá porque ela consegue firmar um pacto de colaboração com outra androide. Outra mulher. O assassinato é a cereja do bolo e confirma o viés maquiavélico das ações e interações de Ava. Os filmes e séries sobre androides e IAs costumam jogar com as aspirações demiúrgicas dos seres humanos, com a vontade de tornar-se Deus que sintomaticamente deixar ver a húbris humana. Como se houvesse algo em nós que merecesse de fato se conservar, como se não fossemos ainda muito pouco. E como criador, devemos reconhecer, Nathan triunfou, pois Ava é inevitavelmente levada a ser, ou melhor, a agir à sua imagem e semelhança.
É inevitável pensar Ex Machina como uma espécie de fusão interessantíssima entre American Psycho e Mulher nota 1000.