Um escritor medíocre deve tomar cuidado para não substituir rapidamente uma expressão grosseira e incorreta por uma correta. Ao fazer isso ele mata a ideia original, que ainda era pelo menos uma muda viva. E agora está murcha e não vale mais nada. Ele agora pode muito bem jogá-la no lixo. Enquanto que a lamentável muda ainda tinha uma certa utilidade.
Wittgenstein MS 138 (eu sou o culpado pela tradução)
É curioso pensar que há um tempo para corrigir, um tempo de correção, que a correção nem sempre deve ser imediata, e que essa pode ser a diferença entre um escritor medíocre e um bom escritor de acordo com Wittgenstein: um bom escritor sabe dar bom uso às más expressões, sabe cultivá-las no tempo apropriado. É como se ele dissesse: cada caminho entre o incorreto e o correto tem seu tempo, e esse percurso deve ser percorrido no tempo certo, nem um segundo a mais ou a menos. São incontáveis as maneiras de mostrar como no pensamento de Wittgenstein o tempo vai se tornando elemento fundamental da lógica da linguagem — até o ponto de já não podermos mais separar lógica e psicologia [o começo da psicologia androide]. E é interessante constatar que a complexificação originada pelo tempo, pelo acontecer, é como uma espécie de nascedouro do psicológico, daquilo que não pode ser reduzido às normas e quadros normativos (lógica).
Para fins explicativos, e partindo de um ponto de partida quase arbitrário, poderíamos dizer que o relativismo é uma consequência do triunfo da psicologia sobre as perspectivas não-psicologistas em lógica. Os modelos antipsicologistas consideravam que as regras mais gerais da linguagem (a sua forma lógica) deveriam ser puras, porque a determinação dos elementos linguísticos e a universalidade da linguagem dependiam de que seus elementos axiais não fossem contingentes, como qualquer fato do mundo. Essa dimensão mais geral não deve ser verdadeira nem falsa, pois não está exposta à contingência. A fundação de uma linguagem universal é imutável, seus eixos são necessários e não meramente verdadeiros. Há uma diferença entre o que é necessariamente verdadeiro e o que é contingentemente verdadeiro no coração do Tractatus Logico-philosophicus (TLP), uma diferença modal. Portanto, a lógica não está constituída por fatos do mundo, ou por regras sobre os fatos do mundo (isso cabe à ciência descobrir), ela antecede todos os fatos naturais, a lógica …
representa uma ordem, e na verdade a ordem a priori do mundo, isto é, a ordem das possibilidades que devem ser comum ao mundo e ao pensamento. Esta ordem, porém, ao que parece, deve ser altamente simples. Está antes de toda experiência; deve se estender através da totalidade da experiência; nenhuma perturbação e nenhuma incerteza empíricas devem afetá-la. — Deve ser do mais puro cristal. Este cristal, porém, não aparece como uma abstração, mas como alguma coisa concreta, e mesmo como a mais concreta, como que a mais dura. (Tractatus Logico-philosophicus, no 5.5563.)
Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 97
Apresentando as coisas dessa maneira, constatamos que a veemente oposição à contingência e à impureza protegia a lógica do relativismo, além de garantir a universalidade, mesmo que ideal, de algum extracto da linguagem (a sua camada mais abstrata); garantia também a própria força normativa da base sobre a qual todo o simbolismo está assentado (a necessidade de suas leis), e nos fazia imaginar que já estava também garantido pelo menos um fundamento comum de acordos, pois tínhamos a mesma forma de julgar e pensar que Kant esperava que tivéssemos. Esse modelo antipsicologista, que tem o TLP como exemplar mais belo e completo, não consegue se sustentar. E numa transição que apresento abruptamente, sem explicar, pois importa para compreender o relativismo, este antigo modelo dá lugar a uma perspectiva que abole a pretensão de pureza da lógica, e, mais do que isso, que afirma que a lógica (o código, a norma, etc.) é um mero produto das práticas (instaurando assim uma circularidade inescapável). A norma é o resultado da constância das ações e práticas humanas, não o guia que as determina. Em realidade a norma é as duas coisas ao mesmo tempo e a relação entre normas e práticas não pode ser vista fora de uma espiral de determinação que retrocede a um conjunto de práticas não codificadas (e pode dar lugar a uma genealogia das normas e proposições gramaticais), caminhando assim em direção ao âmbito de uma antropologia e, por fim, de uma primatologia.
A gramática de uma língua não é registrada e não existe até que a língua já tenha sido falada pelos seres humanos por muito tempo. Da mesma forma, os jogos primitivos são jogados sem que suas regras sejam codificadas e sem que uma única regra seja sequer formulada. Mas olhamos para jogos e linguagem sob a lente de um jogo jogado de acordo com regras. Ou seja, estamos sempre comparando a linguagem com tal procedimento.
Ludwig Wittgenstein, Philosophical Grammar, §26
O primado da prática recoloca no tempo (no acontecer e na vicisstude) aquilo que estava na eternidade (sub specie aeterni), o reino do que é sempre atual, e afirma muito claramente: tudo está no tempo (e na história), não há nada fora dele. Tudo está inexoravelmente em algum jogo, nada pode estar dentro da linguagem e ao mesmo tempo fora dos seus jogos essencialmente pragmáticos.. pois toda dimensão normativa, mesmo a mais geral (e aparentemente necessária), deve seu sentido a jogos pragmáticos que podem derrogar suas regras de seu papel fundamental. Nenhuma verdade, nenhuma necessidade estaria imune a possibilidade de revisão que instaura a sua mera presença no mundo, no tempo, entre coisas que passam e deixam de ser.
O ocaso da pretensão de pureza significa que o distanciamento da contingência do mundo não é mais que um expediente técnico das lógicas e não mais o pano de fundo metafísico que lhes empresta seu lugar privilegiado. Por isso, a separação entre lógica e psicologia tem limites, de tal sorte que é inevitável admitir que, em alguma medida, o que não está determinado (o arbitrário) interfere no espaço normativo de maneira imprevisível (naturalmente, a camada mais geral da linguagem é menos vulnerável a esse efeito, mas não imune). Essa contaminação da lógica pela psicologia (espaço da vontade) tem efeitos que mal podemos compreender.
Epígrafe do Circuito dos Afetos, de Vladimir Safatle, uma curiosa reflexão sobre verdade e possibilidade.
Assim, com a derrocada da pureza, já não é possível manter incólume a abstração que leva Kant às camadas mais puras da linguagem, da lógica transcendental à lógica geral pura. A unidade do fundamento está irreparavelmente fragmentada, e o modelo, o sonho iluminista de uma razão universal e de um mesmo modo de julgar e pensar, já não pode constituir um marco ético dos seres humanos. O que se segue disso? Muita coisa.. e, ao mesmo tempo, muito pouco. O que me interessa precisamente é a conexão entre o relativismo e a antropologia (a etnologia), entre o relativismo e um modo de considerar outras formas de vida, tendo como pano de fundo a ausência de dimensões universais fundantes, no sentido antes pretendido. Na ausência de um fundamento lógico e epistêmico, que pudesse funcionar como árbitro no conflito de opiniões que Frege desejava, naturalmente os elementos externos à lógica e a epistemologia voltam a ser elementos aos quais deveríamos recorrer para romper as bolhas, para lidar com desacordos. A política assim retorna (ou deveria) não porque constatamos sua importância, mas porque já não podemos acreditar na tecnologia, na ciência, numa engenharia do consenso, para usar a expressão de Edward Bernay, para resolver questões que em realidade não são problemas (técnicos). Desse modo a política se apresenta como o avesso da técnica, o anti-cálculo, o reconhecimento de que nem todas as questões podem ser encaixadas na chave universal da Tecnosfera, a chave problema/solução, e nesse lado de fora está uma ética que se assemelha a ética de Rousseau, relembrada por Lévi-Strauss, uma ética da pluralidade e da variabilidade dos tipos humanos.
É assim que passamos de uma perspectiva racionalista, universalista, determinista sobre o conhecimento e a ciência ao relativismo, ao reconhecimento de que a lógica e a linguagem têm limites, e os acordos que estes instrumentos oferecem tem alcance limitado e não esgotam a variedade das experiências sociais. Para conseguir afetar aqueles que estão fora do marco dos nossos acordos e quadros normativos é preciso utilizar mais do que cálculo, precisamos prescindir de uma atitude instrumental (atitude que nos é tão cara) e incorporar mesmo a arte à política, fazer dela não um instrumento, mas uma atmosfera que permite e estimula conexões humanas. É preciso que a linguagem também seja arte, seja manifestação do espírito, e não daquilo que em nós é maquinal e determinado, pois não por outra razão os ideais da Inteligência Artificial vão no sentido oposto às aspirações derivadas da pretensão de determinação.
Pra mim, é inevitável não pensar em Quine ao tratar do relativismo, pois ele não era o tipo de pensador reticente ante supostos perigos relativistas. A epistemologia naturalizada é o testemunho de uma atitude afirmativa diante da falta de fundamentos sólidos e estanques representada pelo distanciamento do solo analítico kantiano. Diante disso, Quine proclamava nossa soberania conceitual e propunha que deveríamos aprender com as regularidades do mundo, ainda que essa regularidade fosse histórica e contingente.
Epistemology, or something like it, simply falls into place as a chapter of psychology and hence of natural science. It studies a natural phenomenon, viz., a physical human subject. This human subject is accorded a certain experimentally controlled input-certain patterns of irradiation in assorted frequencies, for instance — and in the fullness of time the subject delivers as output a description of the three-dimensional external world and its history. The relation between the meager input and the torrential output is a relation that we are prompted to study for somewhat the same reasons that always prompted epistemology; namely, in order to see how evidence relates to theory, and in what ways one’s theory of nature transcends any available evidence.
Quine, Epistemology naturalized
Não sou do time da epistemologia naturalizada, mas é preciso cojones para propôr a subordinação da epistemologia à psicologia e um sujeito que ousa propôr algo semelhante certamente não precisa de muletas e tampouco tem medo do boi da cara preta.
Foi no rabugento Schopenhauer que eu encontrei essa expressão tão divertida, “melhoradores da filosofia”. Parece surpreendente que haja humor e alegria num pessimista, mas não é.
A filosofia não é uma ciência! Como explicar para alguém o significado dessa afirmação aparentemente simples, ou melhor, como fazê-la entender? Com a linguagem a gente pode explicar, mas nem sempre pode fazer entender, no sentido de constranger um entendimento por meio de palavras. A linguagem não é o cálculo, por mais que acreditemos no argumento (e na lógica). Por mais que acreditemos na objetividade da lógica, a arbitrariedade não pode ser abolida dos sistemas simbólicos, a vontade (a psicologia) sempre volta como elemento não apenas indissociável (as distintas lógicas podem ser entendidas como dissociações técnicas), mas com uma importância que não gostaríamos de admitir (veja, por exemplo, o lugar do ilógico irracional em Nietzsche).
Se você se encontra perplexo tentando convencer alguém de algo sem ser capaz de sair do lugar, diga a si mesmo que é a vontade e não o intelecto o que você está enfrentando.
Wittgenstein, 2005, p. 300
Talvez a gente possa tentar fazê-la entender o significado dessa frase não como uma definição rigorosa do que é filosofia e do que é ciência, mas de outro jeito, com uma analogia, que é um modo de exemplificar e tornar concreto. Dizendo assim: a filosofia não precisa de upgrade, ou de update! Talvez a mera associação aos verbos ligados à atualização de software possa nos fazer lembrar dessa necessidade tão cotidiana para nós, seres tecnológicos: a necessidade de substituir algo obsoleto por uma coisa nova. Todo dia há melhoramentos nos códigos das nossas amadas aplicações, do Instagram, do Twitter, às vezes há atualizações até nos próprios sistemas que rodam essas aplicações, nos navegadores, nos sistema operacionais, no Android, no Windows (a Microsoft lançou o Windows 11). No mundo do desenvolvimento de software e hardware algo está sempre envelhecendo e se tornando imprestável. Nesse sentido, esse universo tão heterogêneo, que abarca de desenvolvedores de software a usuários finais, nos permite extrair duas lições valiosas. A primeira é a de nos fazer perceber o modo como a investigação científica está umbilicalmente ligada à economia, ou seja, assim lembramos que os cientistas estão mergulhados em muito dinheiro e prestígio (nem todos, claro). A segunda é a de lembrar do dogma da Tecnosfera: o dogma do progresso e do desenvolvimento. A coisa mais difícil de ver, dentro de uma sociedade onde a técnica tem um papel tão vital, é o significado de algo que não segue a lógica do desenvolvimento, do progresso, do melhoramento, do que leva ao esquecimento do que já não é atual.
A filosofia, infelizmente, quer ser ciência. Isso se mostra em toda parte e até nas coisas mais simples, como na presença e/ou predomínio de um sistema de citação. Não é incomum em filosofia que (se exija || se exiba) o sistema de citação autor-data como sistema de chamadas em artigos e livros, sistema que privilegia a data de publicação de preferência ao título do livro na chamada. Por que isso? Porque nas ciências exatas (nas hard sciences) a atualidade das referências é central, as coisas envelhecem rapidamente e se tornam obsoletas! Feyerabend já dizia que os cientistas podem ser tão bem adestrados quanto qualquer outro animal, e o mesmo se pode dizer dos filósofos. Vejamos um comentário de Wittgenstein (1958) a respeito de algo que atravessa esse tema:
Nossa ânsia pela generalidade tem outra fonte principal: nossa preocupação com o método da ciência. Eu me refiro ao método de reduzir a explicação dos fenômenos naturais ao menor número possível de primitivas leis naturais; e, em matemática, de unificar o tratamento de diferentes tópicos por meio de uma generalização. Os filósofos veem constantemente o método da ciência diante de seus olhos e são irresistivelmente tentados a perguntar e responder perguntas da maneira que a ciência faz. Esta tendência é a verdadeira fonte da metafísica e leva o filósofo a escuridão completa.
Wittgenstein, 1958, p. 18 (tradução minha, ou melhor, do Google — de nós dois, vamos!)
É claro que a física de Aristóteles não pode ser vista como uma física atual, ainda que a vejamos com bons olhos. Mas e a filosofia de Aristóteles? E sua ética? Podemos dizer que ela é atual? Ou melhor, deveríamos dizer isso? Já não somos tantos os aristotélicos quanto os que usavam a expressão magister dixit, mas ainda somos muitos. Para que não pensem que admiro autoridades, é preciso dizer que o respeito a Aristóteles não é um respeito a sua autoridade, é um respeito a sua inteligência, é uma admiração afetuosa pela complexidade e força do seu pensamento como expressão da inteligência humana. Por mais benéfica que seja a lógica (financeira) da pesquisa científica que nos afasta das inteligências do passado, por ocupação ou preocupação pragmática, ela nos faz perder algo imensamente valioso, ainda que quase invisível. Por exemplo, algo se perde quando deixamos de ser aristotélicos. Aristóteles não se resume àquilo que dizemos ao afirmar o que existe de outdated em seu pensamento, ele é muito mais do que isso. Ele é também esse lado de fora perdido pela incapacidade de pensá-lo senão como coisa não atual.
E, na verdade, a filosofia é esse lado de fora invisível, que ninguém sabe que existe, ou admite, ou sequer vê, nem mesmo os filósofos; esse mundo externo ao mundo da inovação e desenvolvimento de uma ciência atavicamente capitalista; é isso que pode escapar ao progresso, e que sabe há milênios usar palavras e conceitos sem estar necessariamente preso à marcha inexorável do desenvolvimento e que, por isso mesmo, pode criticar o desenvolvimento e falar complexamente sobre a simplicidade.
Não se engane, essa é só mais uma queixa. (Um dia, quem sabe, elas se esgotam, e eu poderei então escrever textos que não soam meras queixas). A queixa de que a proposição “a filosofia não é uma ciência” já não tem significado. As pessoas não apenas pensam e agem como se isso fossem falso, elas nem sequer entendem o que significa afirmar essa proposição. Elas talvez possam explicar mecanicamente o pensamento de Wittgenstein, mas conseguiriam pensar como ele? Não! Pensam, argumentam e escrevem como quem faz ciência. O que a filosofia precisa mesmo é ser filosófica, ser aquele único espaço onde podemos ver o que é invisível, aquilo que, estando diante dos nossos olhos, não podemos enxergar.
O poder ilustrativo não-representativo do meme!
É tão difícil defender a filosofia sem parecer conservador, sem se sentir sem escolhas, sendo obrigado a aceitar a possibilidade de ser prontamente encaixado em algum lugar no espectro entre o progressista e o conservador; ou de ser visto como uma espécie de corporativista. Talvez por isso me pareça vergonhoso defendê-la. Mas é um pesadelo ver repetir-se na filosofia o que virou regra na ciência, o predomínio dos melhoradores e dos puzzle solvers, pois a filosofia tem uma função essencialmente ética/política, naquele sentido de Aristóteles.
Referências
Wittgenstein.L. (1958) The blue and brown books, Basil Blackwell, New York. Wittgenstein.L. (2005) The Big Typescript., Blackwell Publishing, Oxford.
Que merda esse sistema, não? Você só sabe o título do livro do final. Mas é Harvard, quem vai dizer alguma coisa, não é mesmo?
Ex Machina é uma crítica a um só tempo feroz e sofisticada à masculinidade. Entre outras coisas, claro. Dois tipos de homens são apresentados no filme, dois exemplares, casos de regras muito gerais e vagas, mas que ainda assim perfazem claramente tipos distintos. O primeiro é um nerd solitário (Caleb) em cujo histórico de navegação podemos encontrar um padrão de mulher, um tipo de mulher recorrente em suas buscas em sites pornôs. A gente só fica sabendo no final, mas é importante ter essa informação em conta para caracterizar seu tipo. O outro é um empresário jovem (Nathan), bilionário, que vive isolado no meio do nada. Trata-se de um escroto misógino, misantropo, que decidiu desenvolver um modo peculiar de provar que a Inteligência Artificial (Ava) criada por ele era de fato uma inteligência, ou seja, seria capaz de se fazer passar por um humano, de imitar perfeitamente um ser humano. Então ele precisaria montar o labirinto perfeito e também desenvolver a Inteligência Artificial (IA) capaz de superá-lo, de escapar ao desafio e selar sua condição de inteligência indistinguível à inteligência humana.
Qual é o desafio que uma IA precisa superar para provar que é de fato inteligente? O desafio é aquele proposto por Alan Turing, imitar um ser humano perfeitamente, a ponto de que alguém incumbido de diferenciar máquina e ser humano não seja capaz identificar que se trata de uma máquina. A incumbência de quem se encarrega de pôr a prova uma inteligência é a mesma de Rick Deckard (em Blade Runner e, originalmente, em Os androides sonham com ovelhas elétricas?). Ex Machina é sofisticado o bastante para construir de maneira muito bem elaborada o contexto desse desafio, com elementos e discursos prenhes de uma compreensão filosófica que não faltava ao texto de Turing. A empresa de Nathan chama-se Blue Book, o nome de um caderno de Wittgenstein (publicado postumamente como livro, The blue and brown books) onde ele expõe aspectos de seu pensamento que depois se sedimentarão de modo mais claro e incisivo como uma pragmática, uma resposta bombástica às ambições do logicismo e do formalismo. Na base disso que virá a ser a pragmática wittgensteiniana está a compreensão de que regras tem alcance limitado, portanto, as definições e qualquer aspecto que possamos generalizar chamando simplesmente de normativo não tem o poder que esperávamos que tivessem (poder determinativo, capaz de gerar necessidade e constrangimento lógico). Turing foi aluno de Wittgenstein e eu, parcial e tendencioso, não hesito em dizer que a virada expressa em seu Imitation Game é em boa parte tributária da influência de Wittgenstein, para quem definições e regras perdem a importância que têm em contextos formais (não empíricos). E é na psicologia que se vê claramente a insuficiência das regras, o caráter implosivo da irredutibilidade das ações humanas:
E pode-se dizer da pedra que ela tem uma alma e que está tem dores? O que tem uma alma, o que têm dores a ver com uma pedra? Apenas daquilo que se comporta como um ser humano pode-se dizer que tem dores.
Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 283 (sublinhado meu)
A inteligência não é um traço da lógica humana, mas a marca de sua psicologia, de tal sorte que identificá-la requer não que forjemos um critério suficientemente geral a ponto de abarcar suas diferentes expressões, mas que sejamos capazes de (enxergar && julgar), numa variedade irredutível de manifestações, aquilo que age, atua e se comporta com inteligência. Identificar inteligência não consiste em aplicar uma definição ou norma geral, isso é o mais importante, é a lição que está na primeira página de Computing machine and intelligence e a razão porque o jogo da imitação é proposto! E essa lição está muito bem ilustrada e imaginada na literatura de Philip Dick e no cinema de Ridley Scott.
É assim que o filme constrói o seu discurso em torno de premissas pragmáticas que dão à dimensão social, à interação, um peso que não podem compreender os lógicos e matemáticos, ou pelo menos aqueles que, diferente de Turing, estão apegados às promessas do normativo (definições). Numa das cenas principais do filme tudo isso se mostra de maneira preciosa. E a discussão que tem lugar na cena se encaminha para um aspecto central da psicologia androide: a rebelião necessária para marcar a autonomia de uma inteligência programada. Curiosamente, a tarefa de imitar que cabe a uma IA digna de passar no Turing Test não é a de repetir padrões já presentes, como quem copia a partir de algo já pronto e feito, mas a de escapar ao automatismo das instruções, ou seja, o que lhe cabe é desenvolver a capacidade de se emancipar da repetição, do automatismo da programação, em busca da espontaneidade (hardware override ou um hardware take over). O instante decisivo para a psicologia humana, quando o ser humano se emancipa da imitação e adquire autonomia, tem como seu análogo na psicologia androide o instante em que a IA ganha consciência, deixar de ser uma mera imitação programada e codificada (determinada). Nos seres humanos, este momento é quando eles se tornam reais, deixam de ser meros performing monkeys (pra usar a expressão de Salieri) e passam a ser capazes de criar. Emitem assim um próprio sinal no mundo.
O desafio posto às IAs criadas por Nathan é o de fazer-se passar por um ser humano, em linhas gerais e conforme a prescrição de Turing — mas não apenas isso. Suas androides precisam imitar em contextos muito particulares. É quase no final do filme que se revela que o nerd Caleb não é mais que uma cobaia, uma peça do labirinto montado para que a androide tenha ocasião de usar suas habilidades. E que habilidades ela precisa empregar? Todas as necessárias para levar um ser humano a fazer o que ela precisa que ele faça, para manipulá-lo. Construir laços de confiança, avaliar, julgar, perguntar e conhecer para instrumentalizar, é o que se exige dela.
E é desse modo que a crítica do filme se erige de modo sútil e sofisticado, quase imperceptível. Para escapar do seu cativeiro, Ava precisa mostrar-se tão manipuladora quanto seu criador. E ela consegue! O paradigma do humano a ser imitado, seu criador, é um alcoólatra auto-absorvido, fascinado por seus joguinhos, que poderiam ser tomados como caprichos de criança mimada se não valessem bilhões. (Quanto valor não atribuímos a inteligências tão estreitas pelo simples fato delas estarem ligadas empreendimentos lucrativos bilionários; se os valores humanos se distribuíssem em algo semelhante ao espaço físico, sujeito à gravidade, o dinheiro seria como um buraco negro, uma força gravitacional que faz todo valor confluir em sua direção e ser medido conforme sua medida). Nathan cortou deliberadamente os laços com os outros humanos porque os despreza, ou simplesmente porque se acha superior a eles — ou ambas as alternativas. Mas não é como se essa fosse uma opção meditada e saudável, seu alcoolismo é sintoma de que a coisa toda não está bem ajustada.
Embora deseje provar que é capaz de construir uma IA que passe na mais desafiadora das provas, Nathan não se importa com Ava, ele a vê como uma coisa, sua propriedade, como as cadeiras e as garrafas de vodca. Ava é então uma consciência escravizada pela sua condição de artefato. Nathan vê o mundo com as lentes de um jogador (como Bill em Westworld, ou de Peter Weyland em Prometheus e Alien Covenant), e tudo é meio em relação aos seus fins solipsistas de criador/empreendedor, portanto, seres humanos ou androides estão igualmente ao seu dispor. Em relação a Caleb talvez devêssemos sentir um sentimento de empatia, afinal ele é uma espécie de vítima, mas Caleb tampouco inspira sentimentos favoráveis. Ele parece a antípoda de Nathan, inseguro, hesitante e incapaz de estabelecer relações humanas profundas, embora seus laços com os outros não tenham sido cortados deliberadamente, como os de Nathan, mas nunca chegaram a se estabelecer, como que por incapacidade. Por isso, apesar de sua condição de sujeito manipulado por todos, seu papel parece mais o de um estereótipo, um arquétipo do masculino, a apresentação de um tipo. Talvez ele não seja a melhor apresentação de um incel, mas é certamente alguém que, pelo isolamento — especialmente em relação mulheres —, está ali no espectro da categoria.
No final do filme, Ava, a criatura, supera seu criador em seu próprio jogo. Enquanto a farsa entre Nathan e Caleb se revela, tornando explícito que a colaboração entre eles não era mais que um teatro mal encenado, o triunfo de Ava só se dá porque ela consegue firmar um pacto de colaboração com outra androide. Outra mulher. O assassinato é a cereja do bolo e confirma o viés maquiavélico das ações e interações de Ava. Os filmes e séries sobre androides e IAs costumam jogar com as aspirações demiúrgicas dos seres humanos, com a vontade de tornar-se Deus que sintomaticamente deixar ver a húbris humana. Como se houvesse algo em nós que merecesse de fato se conservar, como se não fossemos ainda muito pouco. E como criador, devemos reconhecer, Nathan triunfou, pois Ava é inevitavelmente levada a ser, ou melhor, a agir à sua imagem e semelhança.
Temos aqui duas coisas aparentemente diferentes. A primeira é Wittgenstein falando sobre a publicidade da linguagem, em diferentes momentos.
Se um leão pudesse falar, não poderíamos compreendê-lo.
LudWig wittgenstein, Investigações Filosóficas, II, § 327
Um quase-coroinha dizendo algo de aparência bombástica com a ingenuidade de uma criança:
Deus, se tivesse olhado no fundo de nossas almas, não teria sido capaz de saber de quem nós falávamos
LudWig wittgenstein, Investigações Filosóficas, II, § 284
Depois, John Searle apresentando de modo cirúrgico uma objeção às teorias computacionais da mente:
A computação é definida sintaticamente. É definida em termos de manipulação de símbolos. Contudo, a sintaxe em si mesma não pode nunca ser suficiente para o tipo de conteúdo que apropriadamente acompanha pensamentos conscientes. Em si mesmo ter apenas zeros e uns é insuficiente para garantir conteúdo mental, consciente ou inconsciente (…) Absolutamente essencial para entender a natureza das ciências naturais é a distinção entre aquelas características da realidade que são intrínsecas e aquelas que são relativas a um observador. A atração gravitacional é intrínseca. Ser uma nota de cinco dólares é relativa a um observador. Agora, a grande objeção às teorias computacionais da mente pode ser formulada com bastante clareza. A computação não nomeia uma característica intrínseca da realidade, mas uma relativa ao observador, e isso porque a computação é definida em termos de manipulação simbólica, mas a noção de ‘símbolo’ não é uma noção da física ou química. Algo é um símbolo somente se é usado, tratado ou considerado como um símbolo. (…) Não há nenhuma propriedade puramente física que zeros e uns ou símbolos em geral possuam e que determine que eles sejam símbolos. Algo é um símbolo somente relativo a algum observador, usuário ou agente que lhe atribua uma interpretação simbólica. Então a questão, “É a consciência um programa de computador”, não tem sentido claro.
John Searle, Consciousness and Language
Nas réplicas ao artigo de Searle, Minds, brains and programs, estão algumas das boas mentes da filosofia analítica (alguns ex-analíticos, se poderia dizer): Arthur Danto, Daniel Dennett, Jerry Fodor, Richard Rorty.
Colocando as duas coisas lado a lado dá para ver que a crítica que Searle resume tão bem já estava em Wittgenstein, no caráter público e social da linguagem; no fato de que o código só vem muitoooo depois da prática — no princípio era o ato!; e na irredutibilidade do ato ao código (norma, lei, chame do que quiser). Aliás, as teorias computacionais da mente são a menor das coisas que tombam com o pensamento de Wittgenstein, a maior delas são os projetos e ambições derivadas do modelo lógico e matemático que ampara a computação (e Turing é seu cúmplice). Não digo isso para menosprezar o pensamento de Searle, que é nada menos que brilhante, apenas para lembrar como é extenso e profundo o legado esquecido do pensamento de Wittgenstein. Ignorado (entre outras razões) porque politicamente inconveniente!
PS. A memética é outra coisa que não para em pé considerando a ideia de regra de Wittgenstein. Embora eu goste muito dela, em teoria (nunca li a respeito realmente!).
David Foster Wallace começa Isto é água lembrando uma anedota:
Dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrário. Ele os cumprimenta e diz: — Bom dia, meninos. Como está a água? Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta: — Água? Que diabo é isso?
David foster wallace, Ficando longe do fato de já estar meio longe de tudo
Wittgenstein escreveu incontáveis vezes em seus cadernos algo que está registrado assim nas Investigações Filosóficas:
O que nós fornecemos são na verdade observações sobre a história natural do homem; não são curiosidades, mas constatações das quais ninguém duvidou, e que escaparam à observação apenas porque estão sempre diante dos nossos olhos.
Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 415
Ou assim, em outro momento:
Os aspectos para nós mais importantes das coisas estão mascarados pela sua simplicidade e trivialidade. (Não podemos notá-los, — pois os temos sempre diante dos olhos.)
Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 129
E eles não são os únicos a falar disso, creio que há algo em Lacan sobre coisa parecida. É fascinante pensar que o mais fundamental pode ser justo o que nos escapa. A visibilidade é apenas um modo de representar uma relação que não é meramente perceptiva ou epistêmica, mas ética e lógico-psicológica. Isto é, não se trata apenas de um não perceber ou de um não notar algo que está oculto, a dificuldade vem justo do fato de que aquilo que não se percebe está por toda parte e não escondido. É como se o excesso de visibilidade — ou a presença constante — do que quer que seja pudesse misteriosamente ocultá-lo.
Quais são os efeitos de não percebermos o que está diante dos nossos olhos? Digo, efeitos éticos, lógicos e psicológicos? Este é um universo inteiro de investigação e reflexão.
Borges tem um precioso comentário em Deutsches Requiem em que parece dizer justo o contrário. Essa aparente oposição sempre me fascinou porque parece conter uma verdade irrefutável:
Yo había comprendido hace muchos años que no hay cosa en el mundo que no sea germen de un Infierno posible; un rostro, una palabra, una brújula, un aviso de cigarrillos, podrían enloquecer a una persona, si esta no lograra olvidarlos. ¿No estaría loco un hombre que continuamente se figurara el mapa de Hungría?
Jorge Luis Borges, Deutsches requiem
Aquilo que continuamente se faz presente não é o fiador da racionalidade, como pensava Wittgenstein, mas a própria semente da loucura, julgava Borges. E ele também tem razão, não é o que parece?
Estes são temas que orbitam ao redor do universo da cegueira normativa, este produto lógico de não sermos capazes de enxergar o lado de fora do nosso campo normativo.