Transmitindo super-poderes

Uma perspectiva sobre o poder e a propriedade

Os super-poderes dos babies de Skottie Young

Invento e proponho um faz-de-contas bobo, uma ficção, uma fantasia, algo não real, não verdadeiro, você só precisa entender o sentido do que eu vou escrever, não importa que não seja verdade.

<ficção> Vamos imaginar que toda pessoa tem algo que podemos chamar de super-poder. Não que todos tenham um poder singular, não!, muitos poderes se repetem, muitas pessoas tem o mesmo poder, e algumas tem muitos poderes. Mas ninguém tem todos os poderes que existem. Cada pessoa, no entanto, tem um super-poder universal, comum a todos os seres humanos, o poder de ceder voluntariamente — e apenas voluntariamente — seu poder a outra pessoa.

Agora vamos imaginar que você sabe pintar, ou programar, ou conversar com outros seres humanos, ou que você toca trombone de vara como Rita Payés1, e que você é capaz de transmitir essa competência, esse saber fazer, a outra pessoa, como quem passa um arquivo num pendrive. Imagine que isso fosse possível!

A primeira coisa que me vem a cabeça quando penso nessa ficção é: se tivéssemos de fato esses poderes nós criaríamos um circuito livre de transmissão de poderes ou nós mercantilizaríamos nossas competências? Eu acho que nós criaríamos um mercado e venderíamos os nossos super-poderes e que essa seria a forma preferencial de transmissão de super-poderes, dada a força e a influência do capitalismo na vida e na visão humana — constatar isso me dá uma enorme tristeza! </ficção>

Por outro lado, no mundo real e não fictício, na chamada realidade (para quem acredita nela), independente do modo como cada um responde a essa sandice que eu inventei, a cultura de desenvolvimento de software tem uma atitude claramente anticapitalista diante de uma situação parecida a que eu criei.

A ideia de (software livre || código aberto) não é de nenhum modo uma ideologia comunista e na verdade aplicações open source estruturam todo o rentabilíssimo mercado de clouding computing e o futuro da transição digital; não por outra razão, e eu não canso de repetir, a IBM comprou a Red Hat, qualquer sistema Windows hoje em dia pode abrigar um subsystem Linux dentro de si e a Azure depende fundamentalmente do Linux. E pra se ter uma ideia da importância estrutural do open-source pra economia de uma sociedade digital, eu vou citar apenas quatro projetos open-source importantíssimos para toda infra-estrutura de clouding e Big Data, vinculados a uma única entidade, a Apache Foundation: Apache HTTP server (naturalmente), Apache Hadoop e Apache Spark, Apache Kafka.

A cultura de desenvolvimento de software está visceralmente articulada ao sistema capitalista, é verdade, mas é um mundo onde a propriedade privada não entra. Tudo é de todos e o fato de que tudo seja de todo mundo é decisivo pra que os softwares open-source sejam o que são hoje, um paradigma de desenvolvimento e uma certa atitude diante do código que se escreve e das inteligências que terão acesso a esse código. Nada, absolutamente nada, do que o poderoso mercado e o Capital podem comprar ou fabricar consegue superar a força e a magnitude do trabalho colaborativo. (Como se nos faltasse provas de que a colaboração é o melhor) Não falta dinheiro a Bill Gates para contratar os melhores engenheiros de software do mercado.. e durante muito tempo ele certamente teve os melhores que o dinheiro pode comprar. Mas como superar a força de uma coletividade voluntária quase-anônima e torrencial? (Mesmo que apenas uma parcela dos desenvolvedores do kernel Linux seja efetivamente voluntária, não é essa a questão)

A força quase inconsciente e inadvertida dessa colaboração — que tem alimentado na internet uma vontade de ensinar cada vez mais abundante e alegre, e de disponibilizar ferramentas para os outros gratuitamente — me faz sonhar e imaginar o que poderíamos fazer se, ao invés de criar um mercado, nós resolvêssemos (distribuir || transmitir || repassar) nossos super-poderes e nossas competências de forma igualmente aberta (não mercantilizada).. tendo a amizade como o elemento que nesse sistema não-mercantil cumpre função semelhante à do dinheiro no sistema mercantil.

Juro, meu coração vagabundo transborda e não aguenta pensar nessas coisas!


1 “Vamos supor agora que você sabe (pintar || programar || conversar com outros seres humanos || que você toca trombone de vara como Rita Payés) e que você é capaz de transmitir essa competência, esse saber fazer, a outra pessoa, como quem passa um arquivo num pendrive. Imagine que isso fosse possível!”

Eu gosto muito da lógica booleana e ela é muito importante na computação, incluir a estranheza da sintaxe de um cálculo de booleanos no texto é um recurso enfático (inspirado por && que me faz lembrar) a necessidade, comum a Wittgenstein e Foucault, de repetir suas ideias uma e outra vez, como recurso enfático, mas, sobretudo, como abordagem pedagógica e modo peculiar de edição e apresentação do pensamento.


Tudo isso me faz lembrar também o micro-conto El mundo, de Eduardo Galeano, que está no Libro de los abrazos.

Un hombre del pueblo de Neguá, en la costa de Colombia, pudo subir al alto cielo.
A la vuelta contó. Dijo que había contemplado desde arriba, la vida humana.
Y dijo que somos un mar de fueguitos.
—El mundo es eso —reveló— un montón de gente, un mar de fueguitos.
Cada persona brilla con luz propia entre todas las demás.
No hay dos fuegos iguales. Hay fuegos grandes y fuegos chicos y fuegos de todos los colores. Hay gente de fuego sereno, que ni se entera del viento, y gente de fuego loco que llena el aire de chispas. Algunos fuegos, fuegos bobos, no alumbran ni queman; pero otros arden la vida con tanta pasión que no se puede mirarlos sin parpadear, y quien se acerca se enciende.

Tolkien e a corrupção pelo poder

O anel de Sauron, o Um anel

Naqueles que o detém, o poder provoca quase inevitavelmente uma espécie de degeneração, algo que se pode chamar de corrupção pelo poder. A expressão me parece auto-explicativa, mas ainda assim admite, como qualquer expressão da linguagem, um novo modo de ser ilustrada, uma nova apresentação. A variedade de expressões de um conceito muito geral, como é o caso no conceito de poder, às vezes dificulta seu entendimento. Para ilustrar a generalidade de uma ideia usando símbolos — o fato de que ela parece mover-se entre coisas tão heterogêneas quanto os itens da enciclopédia chinesa — é invariavelmente melhor usar a literatura. E que melhor imagem do poder e do seu ônus que a história da corrupção de Sméagol?

Uma compilação que ilustra a transformação de Sméagol em Gollum no cinema.

O que é o poder? Em Senhor dos anéis, o símbolo do poder é o anel feito por Sauron para controlar os outros anéis do poder. O um anel é tão poderoso que em certa medida abriga a própria alma de Sauron e é como se contivesse sua presença. Como resultado, seus portadores sentem o peso de seu poder e pouco a pouco tem lugar uma transformação em suas personalidades, como se estivessem submetidos a outra vontade que não a do seu próprio ego. Tudo começou com Isildur, depois de ter conseguido arrancar o anel da mão de Sauron, ele hesita em lançá-lo no fogo de Mordor, decide tornar-se seu portador e convertê-lo em seu instrumento. Em pouco tempo Isildur está perdido e assim começa a história de dois dos seus mais importantes portadores, Gollum e Frodo Bolseiro.

A história dos portadores do anel é a história de sua contínua consumição pela presença maligna de Sauron, é como se o desejo do poder do anel gradativamente os convertesse em outros, submetendo sua vontade à vontade de Sauron. Mas só em Sméagol esse outro se materializa, por assim dizer, nele o outro torna-se Gollum. Sméagol era de uma raça que lembrava um hobbit, talvez fosse, diz o próprio Tolkien. Uma criatura pequena, ágil, mas que em nada se assemelha à detestável imagem de Gollum. O primeiro indicativo de sua corrupção é o assassinato de seu amigo Déagol, motivado pela disputa do anel. Daí em diante o anel se assenhora de Sméagol até torná-lo Gollum e, surpreendentemente, é Gollum quem se vangloria de possuir o anel. Sua psicologia se afunila a ponto de importar-se somente com o que concerne ao poder e o medo de perder seu precioso anel instala em sua cabeça a paranoia incompatível com laços de amizade e confiança.

É iluminador juntar a clara apresentação do poder em Tolkien às considerações de Étienne de la Boétie sobre o tirano e a tirania. Se uma persona aparentemente inofensiva como Sméagol pode transformar-se, pela influência corruptora do poder, na figura aviltante de Gollum, imagine então o que se pode dar no caso do sempre infame e pequeno Jair Bolsonaro. Bem, infelizmente já sabemos no que isso pode dar. As observações de La Boétie continuam precisas mesmo quase 500 anos depois de terem sido escritas:

Quando um rei se declara tirano, tudo quanto é mau, a escória do reino (não me refiro aos larápios e outros desorelhados que no conjunto da república não fazem bem ou mal algum), os que são ambiciosos e avarentos, todos se juntam à volta dele para apoiarem-no, para participarem do saque e serem outros tantos tiranetes logo abaixo do tirano.

Étienne de la boétie, discurso sobre a servidão voluntária

Difícil encontrar uma descrição mais apropriada de tudo que orbita ao redor de Bolsonaro. Assim também se representa a sedução do poder, sua capacidade atrativa, a atmosfera que se instaura em seu entorno e a constelação de interessados/interesseiros que mobiliza, todos eles figuras patéticas e já previamente corrompidos pelas promessas do poder.

Os que giram em volta do tirano e mendigam seus favores, não se poderão limitar a fazer o que ele diz, têm de pensar o que ele deseja e, muitas vezes, para ele se dar por satisfeito, têm de lhe adivinhar os pensamentos. Não basta que lhe obedeçam, têm de lhe fazer todas as vontades, têm de se matar de trabalhar nos negócios dele, de ter os gostos que ele tem, de renunciar à sua própria pessoa e de se despojar do que a natureza lhes deu.

Étienne de la boétie, discurso sobre a servidão voluntária

Isso não traduz muito bem tudo em seu governo, especialmente a atitude em relação ao Ministro da Saúde? Aliás, o Porta dos fundos fez um vídeo em que tudo isso se representa de maneira cômica. A exigência de uma obediência incondicional, a anulação da mais mínima pluralidade em nome de uma adesão cega a ideias notoriamente estúpidas, está tudo aí. Depois de um tempo, mesmo os estúpidos são capazes de enxergar a estupidez, e se não se afastam do governo (como é o caso dos militares) é porque lhes fascina o poder, porque são criaturas vis cujas almas degeneraram-se complemente até torná-los presenças tão ignóbeis quanto a do próprio Gollum.

Sobre os tiranos convém registrar uma última observação de La Boétie:

A verdade é que o tirano nunca é amado nem ama. A amizade é uma palavra sagrada, é uma coisa santa e só pode existir entre pessoas de bem, só se mantém quando há estima mútua; conserva-se não tanto pelos benefícios quanto por uma vida de bondade. O que dá ao amigo a certeza de contar com o amigo é o conhecimento que tem da sua integridade, a forma como corresponde à sua amizade, o seu bom feitio, a fé e a constância. Não cabe amizade onde há crueldade, onde há deslealdade, onde há injustiça. Quando os maus se reúnem, fazem-no para conspirar, não para travarem amizade. Apóiam-se uns aos outros, mas temem-se reciprocamente. Não são amigos, são cúmplices.

Étienne de la boétie, discurso sobre a servidão voluntária

O poderoso se encanta com o próprio poder e logo já não sabe medir o mundo senão com sua própria medida, por isso o poder e a tirania andam juntos. É fácil (auto) investir-se de legitimidade quando se crê patologicamente em seu próprio poder.

A corrupção pelo poder não é nada mais que a distorção de uma auto-imagem. Distorção não parece a palavra mais adequada, porque ela nos faz pensar que há um objeto real, verdadeiro, não ilusório, em relação a qual podemos determinar objetivamente o que é uma distorção. Não há nada disso! Distorção é apenas uma expressão usada pra fazer entender o sentido de uma ideia. Falando em termos genéricos, a distorção é a alteração da percepção de algo ou alguma coisa pela presença de outra coisa. Não é preciso ter um parâmetro original para determinar o que é verdadeiro e o que é falso, basta pensar a distorção como uma relação, como elo que envolve duas coisas (não importa determinar o que elas sejam para entender a ideia). Uma relação entre algo e outra coisa que o distorce. Você não precisa ter um exemplo, sei lá, da relação entre os gases e nossas percepções visuais, ou sonoras, para entender a relação funcional entre uma coisa e outra coisa que altera o modo como essa primeira é percebida. A distorção envolve sempre uma percepção. No caso do poder, a percepção de si mesmo. O poder distorce a imagem que cada um faz de si mesmo, corrompe essa imagem. Não há tendência mais comum, numa sociedade orientada ao indivíduo, do que as distorções da auto-imagem.

A participação no poder é um elemento indispensável na criação, na emancipação, no florescimento de todo o ser humano, como bem sabem todos aqueles que lutam por partilhar o poder, por fazer sentir que também participam do poder mesmo os mais vulneráveis e sujeitos à arbitrariedade. Aretha Franklin e Nina Simone não cansam de lembrar, de gritar com firmeza para que os jovens negros não se esqueçam que são young, gifted and black. All power to all the people, como enfatiza Spike Lee em BlacKkKlansman. O poder não é um demônio a ser evitado, ele atravessa também tudo que é bom e belo. Mas o ensimesmamento, o encerrar-se em si mesmo do poderoso torna-o insensível aos outros e a tudo que não seja espelho.

Xerxes é um bom exemplo de um certo modo de lidar com o poder. Um conquistador do mundo, se encontrasse um homem agourento, poderia matar a ele e ao seu filho — é o que conta Nietzsche. Matava pessoas como quem mata moscas, porque era muito importante pra ser preocupar com o destino de um sujeito qualquer. Como todo homem poderoso Xerxes acreditava que era o próprio poder, pensava a si mesmo como o portador do poder, ou melhor dizendo, agia como se fosse. Os jogos nos quais um poder simbólico se constitui são imensamente importantes, mas os poderes (simbólicos ou não) não se constituem nesses jogos. A fonte do poder não está no tempo, ou melhor, não está na cadeia causal (logo temporal), embora suas manifestações se expressem temporalmente (logo causalmente). Todo portador do poder, ganancioso, insatisfeito com seus limites, alterará a si mesmo de modo a conseguir conter o máximo possível de poder. Seu ideal, sua meta, era ter para si a totalidade do poder. Na falta dessa opção, lhe satisfaz o máximo de poder possível.

Não passa pela cabeça dos que anseiam todo o poder do mundo a possibilidade de uma relação diferente com o poder que não seja a de portador, possuidor, dono, senhor, mestre, etc. Cada portador tem um limite que o impede de experimentar todo o poder e que condiciona sua força. A totalidade do poder, no entanto, está integralmente disponível para quem não está interessado em portá-lo como um dono, para quem está livre da tentação da tirania e para os tem uma relação saudável com a arbitrariedade. Isso significa participar do poder e não meramente instrumentalizá-lo, canalizá-lo em favor de seus propósitos. Assim se manifesta nos encantamentos, na magia, na psicologia das massas e numa infinidade de outras ocasiões uma força amorfa e de magnitude incomensurável. O poder tem uma dimensão holística incompatível com as pretensões egocêntricas e com anseios de instrumentalização dos ambiciosos e enquanto estes insistirem em tentar abarcá-lo como um todo seguirão corrompendo-se como se estivessem possuídos por um demônio e já pudessem mais distingui-lo de si mesmos.

A ficção e a fantasia podem ensinar mais sobre o (dito) mundo real do que muitos propósitos analíticos e suas pretensões abstratas e universais.

Esquerda: Espirais de poder e prazer

Esse é o primeiro de uma série de posts reunindo críticas à esquerda. E o primeiro tema da série não podia ser outro senão o poder — embora em realidade o poder seja o fio que costura e atravessa todos os temas.

Uma das contribuições mais fascinantes de Foucault à filosofia é o seu modo de conceber o poder. Tenho em vista especialmente a Vontade de saber, primeiro volume da sua História da Sexualidade, ao qual eu não me canso de voltar. O mais importante aspecto dessa concepção é a crítica dirigida aquela que talvez seja a única concepção de poder existente, a que todo mundo conhece e usa, o modelo binário. O modelo binário apresenta duas posições numa relação de poder: a do opressor e a do oprimido. É um paradigma altamente explicativo, como a própria dicotonomia entre bem e mal. Com ele você pode organizar o mundo muito claramente, se posicionar em relação a ele, agir e reagir. Segundo esse paradigma, toda relação de poder se apresenta como um certo disnível de forças que constitui o quadro no qual o oprimido se encontra submetido ao arbítrio do opressor.

Foucault não nega esse modo de representar o poder, sua posição é muito mais cuidadosa e sofisticada que um simples desejo de falsificar. O que ele nos diz é que a relação de poder é mais complexa que isso. O poder se constitui em todos os lugares — e mais do que isso, ele se mantém não apenas pela força e arbítrio do opressor. É aí que as coisas começam a ficar incômodas.

Foucault diz: e se pensarmos o poder como uma espiral? E se não houver apenas dois polos de força lutando entre si, como num cabo de guerra, mas uma [mesma] força que vai e vem conjuntamente e que se reforça nesse movimento contínuo? Só quando algo mais concreto se apresenta é possível entender o que significa essa imagem e o que ela pode acrescentar de novo. Foucault diz, o oprimido também tem prazer em resistir. E ainda: a resistência gera poder. Assim, o rebelde também tem interesse na manutenção da ordem contra a qual luta. Uma vez desfeita a ordem opressiva (o modelo da sexualidade repressiva é o exemplo privilegiado), o rebelde perde também seu poder (e seu status) nessa configuração de forças — o poder de resistir e tudo que isso envolve, o que não é pouca coisa.

Aí então se vê que a força vetorial do modelo binário, que lança o arbítrio e o poder do opressor contra o oprimido, não representa bem tudo que está em jogo nessa dinâmica, em especial a capilaridade da dinâmica do poder. Não é como se o oprimido fosse um sujeito alheio e indiferente ao poder e prazer instaurados pela dinâmica de resistência. Se você perde de vista esse fator, se você deixar de notá-lo, não saberá quais são as regras que governam a experiência do poder em suas múltiplas expressões. Por consequência, você não poderá ser um agente eficiente na luta pelo poder, porque está vendo menos fatores determinantes do que [existem]. Desculpem pelo vocabulário determinista e realista, mas eficiência causal implica controle e influência sobre fatores determinantes (mesmo que estes sejam intencionais). Se você não quer ter controle sobre os fatores que determinam o poder ou se você acha que há formas não-causais de controle e eficiência, bem, boa sorte, eu simpatizo com a sua posição mas é sempre difícil argumentar nesse sentido numa sociedade cientificista.

Assim, é claro que um dos mais centrais problemas da esquerda é não ser capaz de enxergar a corrupção da sua própria alma, isto é, a fascinação que o poder/prazer de resistir gera naqueles que o exercem. Por consequência, ela não pode ver tampouco como isso dá lugar aos tribunais e à intimidação que parecem a regra da ação política da esquerda, fazendo com que uma agenda tão nobre* quanto a sua seja preterida em favor de coisas tão hostis, toscas, violentas e rasteiras quanto as ideias de gente como Bolsonaro ou Trump. O afastamento das pessoas que não se sentem unidas por um laço de identidade é uma consequência natural da cegueira para o uso e o abuso do poder dentro da esquerda. (Unidade entre os iguais é certamente importante, mas é ainda muito, muito pouco.) Tenho a impressão — e talvez seja uma grande ingenuidade da minha parte — que pra que as pessoas se sintam inclinadas a escolher tudo que representa Trump e Bolsonaro é preciso que algo não esteja funcionando bem no maquinário das nossas ideias e práticas.

*  Não deixo de sentir um incômodo ao apresentar assim, tão romanticamente, a agenda da esquerda. É porque eu tenho um certo otimismo antropológico (anti-hobbeseano) de que as pessoas sempre preferirão a fraternidade (o amor) ao ódio (e ao medo), desde que a gente construa as condições adequadas para isso. Pois é muito mais fácil cultivar o medo que o amor, e muito mais fácil encontrar inimigos que amigos, mas o amor ainda assim é uma força poderosa quando bem utilizada. Mas é isso, desculpa a pieguice.

Variedades do poder: desejo de influenciar

Nos cadernos de Wittgenstein há essa anotação:

Eu só posso me tornar independente do mundo — e em certo sentido dominá-lo — renunciando a qualquer influência sobre os acontecimentos. / O mundo é independente da minha vontade.

Poder e influência — duas palavras que andam juntas. No entanto, não é disso que Wittgenstein está falando. O que ele insinua em sua nota é o desejo de controle sobre os acontecimentos do mundo. E a renúncia a esse desejo, necessária para tornar-se independente do mundo. Talvez possamos deduzir do desejo e da renúncia o sentimento de impotência diante da multiplicidade de sistemas sobre os quais não temos domínio. Na vida de cada pessoa a realidade dessa abstração — a impotência diante da multiplicidade de sistemas que se cruzam — se materializa de modo diferente, concretamente diferente, como uma avalanche de eventos sob os quais não temos controle. E é este o espaço da sorte (e da tragédia). Que sentimento ou circunstância pode inspirar o desejo de se tornar independente do mundo? Alguém que se sente potente diante do fluxo do acontecer, capaz de influenciar os acontecimentos, poderia desejar ser independente do mundo?

Acho que o desejo de independência tem origem no esmagamento e na sobrecarga dos acontecimentos e, portanto, só pode surgir em quem constata a futilidade do desejo de controlá-los. É como se o (domínio|controle|poder) só se consumasse negativamente, não pela realização efetiva do controle, mas pela renúncia quase estoica ao desejo de controlar os acontecimentos. É isso: há algo de estoico no comentário de Wittgenstein, algo que parece se assemelhar à receita da apatia.

O mais interessante, no entanto, é a oportunidade de constatar a obviedade mascarada por estar diante dos nossos olhos: a relação entre poder e influência. Não sem razão influencer/influenciador são palavras em voga nos últimos tempos na internet. O desejo de influenciar é uma das variedades do poder, é parte do indeterminado conjunto das suas expressões.

Desejo de influenciar, vontade de influenciar. Vontade de controlar, desejo de controlar. Desejo de poder.

Influenciar o modo como as pessoas veem suas vidas e experiências, o que elas desejam, o que pensam e o que lhes interessa. Num mundo cujo eixo principal é a Publicidade (e não a Razão), difícil encontrar expressão mais forte de poder. E este é um poder que está ao alcance de qualquer um, pois qualquer um pode se tornar um influenciador. Quem consegue influenciar o que as pessoas pensam e querem tem poder sobre elas. O poder sobre as pessoas é um tipo de poder sobre o mundo (e sobre os acontecimentos), sobre aquilo que está fora de nós. (A renúncia ao desejo de influir sobre o mundo, no pólo contrário, manifesta o poder sobre nós mesmos.) Não é disso o que se trata esse desejo de influenciar, da vontade de poder e potência? A vontade de ser capaz de ter domínio e poder sobre algo externo a nós mesmos? A vontade visceral e corruptora de se sentir poderoso e potente para fazer coisas e pessoas dobrarem-se à sua vontade?

PS. O contrário desse desejo de talhar o mundo conforme a vontade é o amor fati. Ao menos assim me parece. Uma aceitação não resignada, um dizer sim às coisas como se elas fossem necessárias.

PPS. Toda essa conversa me lembra a vontade de dominar, a representação que os fracos fazem do poder, na leitura deleuziana de Nietzsche.

O poder é isso. E isso. E isso!

A pergunta “O que é o poder?” — que Gérard Lebrun respondeu com sua maestria habitual na Coleção Primeiros passos — tende a nos levar a um tipo de resposta. Não necessariamente, claro, mas nós tendemos a buscar algo comum às distintas manifestações de poder. O que há em comum no poder manifesto, por exemplo, pelo presidente americano e aquele que um traficante expressa ao determinar o fechamento de uma via ou região de uma cidade? A procura por algo comum a expressões tão distintas de poder nos leva inevitavelmente à generalização que dá lugar a uma resposta de carácter abstrato, às vezes difícil de compreender. O gosto pelo geral e, consequentemente, pelo abstrato, é marca de grande parte das filosofias anteriores à Wittgenstein. Talvez seja a marca da própria filosofia. Vejam, por exemplo, o que Kant diz a respeito do “exemplo” na sua Crítica da razão pura:

Pois, no tocante ao rigor e precisão dos conhecimentos do entendimento, os exemplos são, geralmente, mais prejudiciais que vantajosos, porque é raro cumprirem adequadamente a condição da regra (como casus in terminis) e enfraquecem, além disso, muitas vezes, o esforço do entendimento para apreender (…) Assim, os exemplos são as muletas da faculdade de julgar de que nunca poderá prescindir quem careça desse dom natural. (B173-4)

Para Kant o exemplo é um estorvo (às vezes útil) que mima e estraga nosso entendimento e dificulta o desenvolvimento da nossa capacidade de julgar — que, para ele, exigia que fossemos capazes de abstrair as circunstâncias particulares que o exemplo oferecia. A generalidade do conceito, da regra, não era concebida então como resultado da experiência, de tal sorte que pudesse ser identificada pelo lexicógrafo, como supunha Quine ao atacar a analiticidade. Era antes algo de natureza transcendental (ligada ao entendimento) e, embora não pudesse dispensar a relação com a sensibilidade e a experiência, não era derivada delas como acreditava Quine ao submeter a epistemologia a uma psicologia. Portanto, o particular (o exemplo) só podia nos ensinar sobre o geral se não fossemos capazes de, sem ele, apreender o mais geral. Soa como uma deficiência, não? É o que Kant dá a entender.

Que outra opção temos para pensar o poder já que buscar o que é comum a todas as suas expressões nos leva a uma resposta abstrata, de difícil compreensão? Podemos pensar o poder conforme Wittgenstein nos sugere que pensemos os conceitos. O que Wittgenstein sugere quando diante de um conceito tão heterogêneo quanto o conceito de poder, como o conceito de jogo? Primeiro, ele pergunta o que todos os casos de jogos tem em comum. Sua pergunta, retórica, tem como propósito fazer-nos desistir, fazer-nos enxergar que o objetivo de encontrar algo comum pode nos levar a um beco sem saída. Em certo sentido o propósito dessa pergunta é semelhante ao propósito de perguntar “O que é o tempo?” Isto é, seu objetivo consiste em mostrar que o uso da palavra tempo — assim como o uso da palavra jogo ou poder — não supõe nenhum conhecimento sobre aquilo que é comum às suas diferentes expressões, mais ainda: nem sequer exige que saibamos defini-la. Podemos usar corretamente a palavra tempo (ou poder) sem ser capaz de definir o que isso significa e podemos empregar corretamente a palavra jogo sem ser capaz de identificar o que há em comum aos diferentes casos de jogos. O que é o poder então? O poder é isso; e isso; e isso. O que significa poder se mostra nos distintos casos e exemplos de poder e a medida que eu vou colecionando manifestações de poder eu contribuo para o entendimento da variedade do conceito. O exemplo, neste caso, não é nenhum obstáculo, é em realidade o melhor caminho para o entendimento (na verdade, diferente do que pensava Kant, é o único caminho, mas isso não importa agora).

O indexical “isso”, no entanto, ainda é muito abstrato. Ele é só uma maneira de dizer que o entendimento sobre o que é o poder se manifesta não numa regra ou num conceito geral (abstrato) que recorta aquilo que é comum a todas as manifestações de poder, mas numa coleção de casos particulares que vai dando expressão à regra, que vai nos familiarizando com ela. Vejamos então um par de exemplos e manifestações variados relacionadas ao poder. Comentando sobre sua juventude difícil nos subúrbios de Miami, na década de 80, Carl Hart dá uma imagem nítida de como jovens negros podem sentir nos ombros o peso de algo pelo qual não foram responsáveis, isto é, eles sentiam que apenas pelo fato de serem negros era desvalorizados, tinham menos oportunidades, e, consequentemente, menos instrumentos com que enfrentar os desafios normais de vida, que todos temos que encarar. Nesse contexto social, nota Hart, ter uma arma parecia devolver o poder perdido injusta e incompreensivelmente. Essa era um pouco da dinâmica dos guetos da sociedade americana, dinâmica que Carl Hart teve a sorte de poder escapar em grande parte graças às mulheres de sua vida. Eu acho que essa é uma boa imagem do poder, do poder que a arma restitui ao trazer de volta o respeito que os negros não encontravam em certos cenários. Podemos imaginar também o exemplo geral e fictício de um policial que, em nome da justa luta contra a criminalidade e a violência (contra o mal), sente que por isso é legítimo e justificado praticar qualquer ação. A legitimidade de uma boa causa nos investe de um poder quase discricionário, não? Não é por motivo semelhante que o presidente dos EUA, sentindo-se o dono do mundo, julga não ser necessário colocar nenhuma barreira entre as idiotices que pensa e aquelas que expressa? Mas essas expressões de poder moldam uma imagem tendenciosa. Alguma variabilidade é necessária.

Esses dias eu vi um vídeo que reunia chegadas de Neymar aos estádios (pena não ter encontrado o vídeo). Ele chegava sempre impecavelmente vestido e com aquele andar que se pode caracterizar usando a palavra marra — lembram da marra de Romário? Não me levem a mal, esta não é uma crítica, mas uma descrição. (Usain Bolt tem a mesma marra). A marra de Neymar (como a de Romário) é o reflexo de sua confiança, da sensação de potência própria ao poder. Assim como para entender o conceito de jogo é preciso familiarizar-se com a variedade irredutível de jogos, para entender o conceito de poder é preciso familiarizar-se com a complexa rede de conceitos e ideias que perfaz essa teia conceitual aberta. Tendo tudo isso em vista, consideremos uma vez mais quão atraente é a ideia de tentar reduzir essas diferentes expressões a um mesmo denominador comum. Agora, no entanto, não se trata de supor uma marca articulante que costura as diferenças, mas de descobrir ou propor, hipotética e teoricamente, à maneira científica, um aspecto comum. Assim, esse poder manifesto em casos tão distintos poderia ser reduzido a sensação de poder aparentemente comum a todos os agentes. Por exemplo, àquela combinação destacada por Amy Cuddy entre um alto nível de testoterona e um baixo nível de cortisol. Essa combinação nos torna audazes, mas também calmos, serenos (efeito do baixo nível de cortisol no sangue). Enfim, confiantes e poderosos. Eu sou fã declarado de abordagens técnicas como essa, da talentosíssima Amy Cuddy, e acho que há inumeráveis aplicações para perspectivas semelhantes. Mas é claro que, uma vez de posse de um instrumento redutor, é fácil cair da armadilha da tendência à confirmação (que em certo sentido é natural, diga-se de passagem), pois é fácil se fechar à variedade de casos (e ao que ela tem de transformador). Talvez um dos melhores efeitos do novo modo de enxergar a generalidade que Wittgenstein nos ofereceu é que ele nos predispõe a uma abertura, muito bem vinda, à revisão de nossos paradigmas. Uma vez que o geral depende da constância do particular*, se institue deste modo uma instabilidade inconcebível para (certas) perspectivas científicas ou transcendentais, pois estas acreditam, cada uma ao seu modo, poder justificar suas posições**. Ao prestar atenção mais àquilo que exemplifica a regra — que à regra ela mesma, como queria Kant —, estamos mais propensos a admitir a possibilidade de flexibilizá-la, de alterá-la. Quando pensamos já possuir a essência da regra ou quando julgamos saber aquilo que é comum a todos os seus casos, tendemos a preservar essas lentes e rejeitar propostas de revisão, em favor da preservação do controle instrumental cuja perda tendemos a evitar. A essência é um norte: estável e controlável. Para mim — e essa é apenas a minha opinião —, está muito claro que precisamos escolher a abertura ao invés da atraente promessa de uma estabilidade absoluta, como forma de combater a tendência à confirmação, o insulamento, e como um modo de nos abrir à possibilidade de transformações e conversões.


* Nas filosofias anteriores à Wittgenstein (essa é uma generalização!), o particular é sempre um caso de um aspecto geral, o particular está sempre determinado em algum nível de generalidade: seja numa natureza, seja numa forma (lógica).
** A ideia de que algo comum articula as diferenças dentro de um certo campo conceitual parece sempre apontar para a possibilidade de justificar essa perspectiva. A realidade, naturalmente, a justificaria (seja ela entendida como natureza, seja ela entendida como forma lógica e seus derivados). A pragmática de Wittgenstein instala a historicidade nesse terreno realista e assim dá lugar à possibilidade de revisão.

Foucault: o poder e a psicanálise

Talvez vocês não saibam, mas eu escrevi minha monografia sobre a interpretação e o uso que Marcuse fez de certas ideias freudianas. Marcuse se apossa da noção de repressão e dá voz e consequência à ideia de que uma espécie de repressão incide sobre sobre as energias libidinais, fazendo-as funcionar em favor dos dispositivos culturais. A contribuição de Marcuse consiste em destacar uma ruptura entre o agenciamento das energias sexuais e as finalidades a que elas foram afiançadas, dando lugar assim à noção de mais-repressão, que se caracteriza por uma quantidade de repressão adicional necessária para encobertar o giro no vazio da sexualidade, isto é, para mascarar o fato de estarmos submetidos à repressão, ainda que ela não mais sirva aos dispositivos culturais, mas antes à manutenção da máquina cega de produção capitalista.

Já no desenvolvimento da monografia encontrei um artigo de Foucault, publicado na coleção Ditos e escritos e, salvo engano, intitulado de A psicologia de 1850 a 1950, contendo uma afirmação que insinuava uma crítica interessante e corrosiva à teoria freudiana (e, claro, às leituras que se serviam dela). Lá, ele dizia que a psicologia freudiana tinha um caráter normalizador. Só agora, lendo o primeiro volume da “História da sexualidade”, A vontade de saber, encontrei a ideia plenamente desenvolvida.

Quero apresentar três aspectos — dos muitos pontos mobilizados por Foucault — que me parecem especialmente interessantes e ilustram breve e suficientemente o alcance da crítica dirigida à Freud (mas não somente a ele), bem como a maneira como o poder alinhava os mais distintos momentos da sua reflexão.

1. Atribui-se ao sexo uma (suposta) causalidade geral e difusa. As consequências implicadas nesse postulado bastam para justificar o emprego dos mecanismos e dispositivos subordinados à análise minuciosa que se encarrega de produzir a verdade do sexo. Da infância até a velhice, ao longo de toda a vida humana é imputado ao sexo um poder inesgotável e múltiplo capaz de produzir doenças, induzir comportamentos, definir costumes, etc. Somente à luz desse postulado algo controverso se justifica toda a engenhosa arquitetura da teoria frediana, a necessidade de investigar as práticas sexuais em busca de algum controle (poder) sobre essas variáveis.

2. A noção de poder que se representa também nas ideias de Freud enfraquece substancialmente a explicação da sua capacidade organizadora e reguladora, na medida que reconhece apenas a face negativa do poder: a interdição, a repressão e todas as restrições que lhe são derivadas. Para Foucault, é indispensável pensar a feição produtiva do poder, aquilo que ele alimenta, incita, estimula. O sexo e a sexualidade, reconhecidos como fatores determinantes na configuração do comportamento dos indíviduos e da espécie, passam à condição de elementos a serem regulados, submetidos às técnicas designadas por Foucault como expressões do “biopoder” (da biopolítica), técnicas não necessariamente restritivas mas de naturezas variadas.

3. O sexo e a sexualidade fazem parte de um domínio independente cuja investigação cabe a uma ciência desinteressada e livre. Extraído a partir da observação do domínio da sexualidade, o conhecimento científico é então coordenado pelas instâncias de poder que fazem pesar sobre ele suas exigências e que se valem dos seus achados (esse tópico é menos freudiano e mais endereçado a certas leituras que se fazem a partir da psicanálise, como a de Marcuse). O poder que pesa sobre o sexo é independente do saber que ele é capaz de alimentar.

As dependências que Foucault salienta geram, ao meu ver, danos permanentes não só à teoria freudiana, mas à todo a maquinaria discursiva que postula os mesmos pontos. A multiplicidade do poder que ele apresenta revela não só seu caráter positivo e produtivo, mas também os objetos que ele fabrica: como o próprio sexo, que ao invés de ser a matéria e base da sexualidade, é, aos olhos de Foucault, o seu produto elementar.