Pós-nacionalismo

Quando estamos longe dos conflitos étnicos ou nacionais é fácil falar em pós-nacionalismo, porque não há nada que faça nosso sangue ferver, e falamos situados na paz. Mas eu quero falar de ideias — não de soluções, não de deveres e princípios, nem de nada concreto —, eu quero falar de uma ideia não como um instrumento, mas como algo abstrato e muito vago. Ainda que as ideias assim abstratas não possam se transformar magicamente em instrumentos, elas alimentam pensamentos que um dia saberão fabricar os instrumentos necessários quando for conveniente e extrair dessa ideia tudo o mais que for necessário. Mas é difícil acreditar em ideias e apostar nelas na Tecnosfera, num mundo onde até a filosofia quer ser mero instrumento de controle da cadeia de causas e efeitos.

Voltemos então à ideia. Numa sociedade globalizada os nacionalismos nos enfraquecem, porque as economias já são transnacionais, mesmo que estejam atreladas a lastros jurídicos nacionais (e as offshore, hein?). É como se as pessoas jurídicas pudessem ser facilmente pós-nacionais, mas às pessoas físicas ainda lhes custasse enxergar as vantagens do pós-nacionalismo. A razão, Freud cantou essa bola: o narcisismo de pequenas diferenças, tudo aquilo que pode brotar dos Outros nascidos e criados a partir da constituição de uma identidade: identidade nacional ou de qualquer outro tipo. É por meio desse inconsciente endosso à hostilidade dirigida ao estrangeiro (ao Outro) que é escoada a violência de pessoas que nunca admitiriam que sentem muito menos agem com violência; e assim o medo e a sabedoria fascista mantêm-se vivos e voltam a se manifestar de tempos em tempos, como vemos agora. (Dizer também é agir, nos lembraria muito oportunamente Austin, sobre formas violentas de ação/discurso.) Mas como convencer as pessoas de que os outros não são apenas esses bárbaros que eles veem por toda parte? Não há nenhum caminho, nenhuma resposta certa.

No entanto, há setores da cultura de uma sociedade global onde as identidades vão se mesclando e se aproximando, de modo silencioso e desapercebido. Um desses setores é a culinária. Há pouco mais que um par de séculos ingredientes de todo o mundo começaram a circular longe de seus ambientes originais, essa história é muito longa pra contar aqui e se você se sentir curioso pode chegar tão longe a ponto de regressar até o que relata Levi-Strauss sobre a contribuição das Américas para a so called civilização ocidental:

Para apreciar esta obra imensa, basta medir a contribuição da América para as civilizações do Velho Mundo. Em primeiro lugar, a batata, a borracha, o tabaco e a coca (base da anestesia moderna) que, a títulos sem dúvida diversos, constituem quatro pilares da cultura ocidental; o milho e o amendoim que deveriam revolucionar a economia africana antes talvez de se generalizarem no regime alimentar da Europa, em seguida, o cacau, a baunilha, o tomate, o ananás, a pimenta, várias espécies de feijão, de algodões e de cucurbitáceas. E finalmente o zero, base da aritmética e, indiretamente, das matemáticas modernas, era conhecido e utilizado pelos Maias pelo menos meio milênio antes da sua descoberta pelos sábios indianos, de quem a Europa o recebeu por intermédio dos Árabes.

Claude Lévi-Strauss, Raça e história

Hoje em dia, em qualquer cidade grande da Europa se encontra sem dificuldade uma imensa variedade de ingredientes e temperos estrangeiros. As pessoas comem em restaurantes de países de toda a parte do mundo e cozinham, elas mesmas, pratos e receitas de outros países com enorme facilidade. Nós, aqui em Madrid, comemos e temperamos tudo com temperos asiáticos: chineses, coreanos, japoneses. Criamos pratos que misturam elementos baianos com sabores de outras culturas, é uma loucura!

Óleo de chili e molho de pato

Integrar ingredientes, rituais e sabores estrangeiros nos nossos hábitos na cozinha é um modo de criar uma ética pós-nacional! E esse o ponto de partida também da constituição de uma ética pós-capitalista — que já existe e sempre existiu em muitas formas de vida, como nos lembra Carlos Taibo e David Graeber, pra ficar em dois dos que eu gosto. E o amor pelo estrangeiro como força, admiração, vontade de se apropriar de um super-poder (metaforicamente, claro) funciona como antídoto ao arquétipo do estrangeiro como causa do medo, que alimenta o fascismo e é obstáculo a uma verdadeira ética pós-nacional. Enfim, essa é apenas uma ideia, frágil e inofensiva (ou não!), que eu acho que tem um grande futuro pela frente e que a gente deveria levar muito a sério. Mesmo que a culinária não seja uma epistemologia, uma lógica ou uma física. — pois é em realidade muito melhor que elas!

Foto que eu tirei no museu Pergamon, em Berlim

Há algumas semanas eu vi um post do El País libros sobre essa filósofa chilena que escreve sobre temas afins, deve ter muita gente escrevendo sobre isso hoje em dia.

Egocentrismo natural e básico

O aspecto central do texto mais famoso de David Foster Wallace é o que ele chama de “egocentrismo natural e básico” ou “egocentrismo profundo e literal” ou simplesmente “configuração padrão”: a tendência a pensar a si mesmo como o centro do universo. E em certa medida o texto é uma reflexão e um convite a que a gente combata a nossa “configuração padrão”: tente pensar nos outros, tente amar os outros, com tudo de simplesmente desinteressante, tedioso e nada excitante que isso implica. Para DFW essa era uma questão de saúde mental, de não ser escravo da nossa própria mente, do nosso próprio egoísmo! A imagem que ele usa para se referir a sensação que caberia às pessoas que não conseguem se livrar da sua configuração padrão é a coisa mais bonita que li nos últimos 20 anos: “a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita”.

Esse tipo de liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros – no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita.

David Foster Wallace, Isto é a água

Quão difícil é apresentar temas espinhosos como o egoísmo e o egocentrismo de modo tão simples, tão natural? Os inegáveis vínculos de DFW com Wittgenstein me fazem pensar que ele atualizava bem um sentido do pensamento de Wittgenstein. Wittgenstein se queixava de tudo, mas ele era especialmente crítico dos limites da sua imaginação (apesar da força e do caráter marcante das suas ficções, a ficção do xadrez sem o rei é brilhante), e ansiava encontrar pessoas que pudessem dizer da forma certa aquilo que ele aspirava dizer, mas sem sucesso (aos seus olhos!). Como escritor, DFW transforma reflexões filosóficas em imagens da vida, reflexões que geralmente circulam em atmosferas muito rarefeitas.

[Creio que poderia interessar a um filósofo, que saiba pensar, ler as minhas notas. Porque, mesmo que eu só tenha acertado no alvo raramente, ele reconheceria os alvos aos quais eu apontava incessantemente].

Wittgenstein, Sobre a certeza, §387

A filosofia se torna uma coisa natural no texto de DFW, na sua escrita, algo acessível, de todos, e ela é forte! E é mesmo natural apresentar temas espinhosos quando você sabe com que imagem (verdadeira ou ficcional) ilustrar os conceitos e as práticas envolvidos no significado do tema. A imagem da fila do supermercado, da impaciência que ela gera em certos contextos, é perfeita. Filosófica mas também pop.


Lembrei de um filmaço que discute a questão geral do egoísmo e do compromisso com os outros. The Sunset Limited, com atuações assombrosas de Samuel L. Jackson e Tommy Lee Jones (que também dirige o filme) e roteiro que é pura encenação de dilemas éticos. Salvar ou não salvar o outro, essa é a questão. Interferir? Como interferir?

Revolução, radicalidade e instabilidade

A única maneira de dispensar e de prescindir da energia das revoluções, do que elas têm de incontrolável e violento, sem abrir mão do que elas têm de rapidamente transformativo é admitindo uma dimensão de radicalidade em si mesmo, é entendendo o papel da destruição e da instabilidade — dentro e fora de si mesmo.

Nietzsche sobre as revoluções:

Uma ilusão na doutrina da subversão. — Há visionários políticos e sociais que com eloqüência e fogosidade pedem a subversão de toda ordem, na crença de que logo em seguida o mais altivo templo da bela humanidade se erguerá por si só. Nestes sonhos perigosos ainda ecoa a superstição de Rousseau, que acredita numa miraculosa, primordial, mas, digamos, soterrada bondade da natureza humana, e que culpa por esse soterramento as instituições da cultura, na forma de sociedade, Estado, educação. Infelizmente aprendemos, com a história, que toda subversão desse tipo traz a ressurreição das mais selvagens energias, dos terrores e excessos das mais remotas épocas, há muito tempo sepultados: e que, portanto, uma subversão pode ser fonte de energia numa humanidade cansada, mas nunca é organizadora, arquiteta, artista, aperfeiçoadora da natureza humana. — Não foi a natureza moderada de Voltaire, com seu pendor a ordenar, purificar e modificar, mas sim as apaixonadas tolices e meias verdades de Rousseau que despertaram o espírito otimista da Revolução, contra o qual eu grito: “Ecrasez l’infâme [Esmaguem o infame]!” Graças a ele o espírito do Iluminismo e da progressiva evolução foi por muito tempo afugentado: vejamos — cada qual dentro de si — se é possível chamá-lo de volta!

Nietzsche, Humano, demasiado humano, § 463

Inteiro ou metade

Half or double: formas não individuais de unidade/identidade

Cena da fabulosa série Dead Ringers (Amazon Prime)

Quando a gente precisa de outra pessoa para se sentir inteiro, completo, pleno, alguém poderia dizer que por isso, sozinhos, nós somos incompletos, apenas metade, e que algo nos falta para a unidade — para sermos um. Será que alguém, algum dia, já chegou a ser um? A ser um consigo mesmo ou com outra pessoa? Isso é desejável?

O que nos falta para formarmos unidade e “sermos um” está nos Outros seres — não em um ou dois, mas em todos eles. A unidade com os outros nos permite nos reconhecer por toda parte, em todos os outros seres e até mesmo: reconhecer-se também no inimigo! Admitir identidades com o inimigo nos aproxima da unidade, de uma plenitude que parecemos ansiar.

Estar à vontade

Semana passada eu saí com o pessoal do meu novo trabalho, a empresa montou o que se conhece como um Team building. Na atividade espontânea do final de um dos dias, tomamos muitas cervejas num bar e fomos até um karaokê continuar enchendo a cara. Depois de muitas doses de licor, gin tonic e toda a sorte de bebida o ambiente e as pessoas eram outras. É uma platitude surpreendente constatar o quanto de inibição nos reprime, o quanto ela afeta nossas relações. (Isn’t it a pity?)

Isso me lembrou o maravilhoso Mais uma rodada, filme que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2021. A premissa do filme é a ideia do psiquiatra norueguês Finn Skårderud que alega que nós temos um pequeno deficit de álcool no sangue (0,05%), de tal maneira que, uma vez compensando esse desequilíbrio, nós nos sentiríamos mais à vontade e mais relaxados. O filme é a deliciosa exploração dos efeitos do experimento de tentar corrigir esse deficit, um elogio ao álcool — a droga socialmente mais aceita na Europa — e à sua orgânica ligação com a cultura dos países escandinavos.

Nos meus utópicos delirantes sonhos cosmopolitas não há nada tão importante quanto cultivar (cultura) um ambiente onde os outros possam se sentir a vontade para serem quem são, para descobrir quem são — esse é o espaço da amizade. (Ser o solo onde o outro pode medrar.) Enquanto esse lugar (topos) não chega, acho que vale a ajuda do álcool ou de qualquer outra substância.

Há textos que mudam a gente

Helly na “Break Room”, série: Severance (Apple TV)

Há textos que mudam a vida da gente, ninguém é o mesmo depois de ter lido Dostoiévski, por exemplo. Dostoiévski apresenta situações que ou 1) você não conhece, às vezes nem sequer imagina, e aquilo te choca, ou 2) você as conhece e aquilo te redime. E eu gostaria de forçar as pessoas a lerem certos textos. Especialmente ensaios e aforismos.

Forçar literalmente, como no “Break room” de Severance (Apple TV), ou na famosa cena de Laranja Mecânica, obrigar (a ver && a ler), fazer ler compulsoriamente até que, quase que por osmose, o que estivesse dito ali pudesse ser entendido, sentido, integrado, imaginado. Um dos textos que eu obrigaria os outros a ler seria “Isto é água” (em PDF no Google Drive, pra quem quiser voluntariamente ler), de David Foster Wallace — até os átomos deste teclado sabem disso. Outro texto seria o de um amigo dele, Jonathan Franzen, “A dor não nos matará” (aqui também, em PDF no Google Drive). Um texto do livro Como ficar sozinho.

É um texto belíssimo, cheio de uma capacidade de ver as articulações entre o mundo eletrônico e nossa vida cotidiana, uma capacidade que todo mundo finge que tem — como fingiam aqueles que diziam ver a roupa nova do rei — mas que muito pouca gente tem de fato. O texto de Franzen trata de uma maneira bastante pessoal sobre o amor, suas dores e delícias, num mundo digital e globalizado, no qual parecemos estar conectados aos outros, mas cuja virtualização das conexões humanas mal disfarça a solidão e o distanciamento que correm por baixo da fachada simbólica da conectividade.

Quando ficamos trancados em nossos quartos, bufando, caçoando ou nos sentindo indiferentes, como fiz durante tantos anos, o mundo e seus problemas parecem desafios impossíveis. Mas quando saímos às ruas e temos relacionamentos reais com seres reais, ou mesmo animais reais, há o perigo bastante real de amarmos alguns deles. E então quem saberá dizer que rumo a vida tomará?

Jonathan Franzen, “A dor não nos matará”, Como ficar sozinho