Pós-nacionalismo

Quando estamos longe dos conflitos étnicos ou nacionais é fácil falar em pós-nacionalismo, porque não há nada que faça nosso sangue ferver, e falamos situados na paz. Mas eu quero falar de ideias — não de soluções, não de deveres e princípios, nem de nada concreto —, eu quero falar de uma ideia não como um instrumento, mas como algo abstrato e muito vago. Ainda que as ideias assim abstratas não possam se transformar magicamente em instrumentos, elas alimentam pensamentos que um dia saberão fabricar os instrumentos necessários quando for conveniente e extrair dessa ideia tudo o mais que for necessário. Mas é difícil acreditar em ideias e apostar nelas na Tecnosfera, num mundo onde até a filosofia quer ser mero instrumento de controle da cadeia de causas e efeitos.

Voltemos então à ideia. Numa sociedade globalizada os nacionalismos nos enfraquecem, porque as economias já são transnacionais, mesmo que estejam atreladas a lastros jurídicos nacionais (e as offshore, hein?). É como se as pessoas jurídicas pudessem ser facilmente pós-nacionais, mas às pessoas físicas ainda lhes custasse enxergar as vantagens do pós-nacionalismo. A razão, Freud cantou essa bola: o narcisismo de pequenas diferenças, tudo aquilo que pode brotar dos Outros nascidos e criados a partir da constituição de uma identidade: identidade nacional ou de qualquer outro tipo. É por meio desse inconsciente endosso à hostilidade dirigida ao estrangeiro (ao Outro) que é escoada a violência de pessoas que nunca admitiriam que sentem muito menos agem com violência; e assim o medo e a sabedoria fascista mantêm-se vivos e voltam a se manifestar de tempos em tempos, como vemos agora. (Dizer também é agir, nos lembraria muito oportunamente Austin, sobre formas violentas de ação/discurso.) Mas como convencer as pessoas de que os outros não são apenas esses bárbaros que eles veem por toda parte? Não há nenhum caminho, nenhuma resposta certa.

No entanto, há setores da cultura de uma sociedade global onde as identidades vão se mesclando e se aproximando, de modo silencioso e desapercebido. Um desses setores é a culinária. Há pouco mais que um par de séculos ingredientes de todo o mundo começaram a circular longe de seus ambientes originais, essa história é muito longa pra contar aqui e se você se sentir curioso pode chegar tão longe a ponto de regressar até o que relata Levi-Strauss sobre a contribuição das Américas para a so called civilização ocidental:

Para apreciar esta obra imensa, basta medir a contribuição da América para as civilizações do Velho Mundo. Em primeiro lugar, a batata, a borracha, o tabaco e a coca (base da anestesia moderna) que, a títulos sem dúvida diversos, constituem quatro pilares da cultura ocidental; o milho e o amendoim que deveriam revolucionar a economia africana antes talvez de se generalizarem no regime alimentar da Europa, em seguida, o cacau, a baunilha, o tomate, o ananás, a pimenta, várias espécies de feijão, de algodões e de cucurbitáceas. E finalmente o zero, base da aritmética e, indiretamente, das matemáticas modernas, era conhecido e utilizado pelos Maias pelo menos meio milênio antes da sua descoberta pelos sábios indianos, de quem a Europa o recebeu por intermédio dos Árabes.

Claude Lévi-Strauss, Raça e história

Hoje em dia, em qualquer cidade grande da Europa se encontra sem dificuldade uma imensa variedade de ingredientes e temperos estrangeiros. As pessoas comem em restaurantes de países de toda a parte do mundo e cozinham, elas mesmas, pratos e receitas de outros países com enorme facilidade. Nós, aqui em Madrid, comemos e temperamos tudo com temperos asiáticos: chineses, coreanos, japoneses. Criamos pratos que misturam elementos baianos com sabores de outras culturas, é uma loucura!

Óleo de chili e molho de pato

Integrar ingredientes, rituais e sabores estrangeiros nos nossos hábitos na cozinha é um modo de criar uma ética pós-nacional! E esse o ponto de partida também da constituição de uma ética pós-capitalista — que já existe e sempre existiu em muitas formas de vida, como nos lembra Carlos Taibo e David Graeber, pra ficar em dois dos que eu gosto. E o amor pelo estrangeiro como força, admiração, vontade de se apropriar de um super-poder (metaforicamente, claro) funciona como antídoto ao arquétipo do estrangeiro como causa do medo, que alimenta o fascismo e é obstáculo a uma verdadeira ética pós-nacional. Enfim, essa é apenas uma ideia, frágil e inofensiva (ou não!), que eu acho que tem um grande futuro pela frente e que a gente deveria levar muito a sério. Mesmo que a culinária não seja uma epistemologia, uma lógica ou uma física. — pois é em realidade muito melhor que elas!

Foto que eu tirei no museu Pergamon, em Berlim

Há algumas semanas eu vi um post do El País libros sobre essa filósofa chilena que escreve sobre temas afins, deve ter muita gente escrevendo sobre isso hoje em dia.

Cosmopolita tendencioso: sobre patriotismo e nacionalismo

Cosmopolítica relativista (e tendenciosa)

Nasci em São Paulo, me criei na Bahia (a Bahia me deu régua e compasso), mas não sou nacionalista nem patriota. Se eu me apresentasse assim a todas as pessoas, dizendo que não sou nacionalista nem patriota, quanta confusão não causaria. Não apenas porque as pessoas não gostam de discutir nada — elas gostam de sentenciar e esperam ansiosas uma validação, ai daquele que discorda —, mas também porque dificilmente eu encontraria alguém que não se declarasse patriota. Minha depravação começou na infância, com os Beatles, com a percepção de que havia muitas coisas interessantes criadas por outras identidades (não brasileiras). A fortuna brasileira já estava garantida pela herança e pela presença constante em minha casa de Beth Carvalho, Paulinho da Viola, Chico Buarque, Vinícius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, etc., de sorte nunca fui atraído ou adepto do vira-latismo tão popular no Brasil.

A medida que fui envelhecendo minha degenerescência foi se agravando, primeiro pela exposição ao pensamento de Che Guevara sobre a América Latina, depois, com a internet, com gosto pela música latino-americana, com a Negra Sosa, Violeta Parra, Victor Jara, Buena Vista Social Club e outros que tais; Neruda e Gabrielle Mistral reforçaram meus laços com o Chile e essa admiração me permitiu também fazer muito amigos aí usando o mIRC.

É certo que antes de tudo isso o colombiano Gabriel Garcia Marquez já me havia fisgado com Cem anos de solidão, mas a verdade é que foram os argentinos e argentinas os responsáveis por consolidar meu afastamento do justo caminho do patriotismo (e tudo isso em grande parte graças ao meu ensaboado amigo Felipe Ribeiro). Nunca fui capaz de sentir o ímpeto da rivalidade, nem mesmo no futebol, nem mesmo depois de Maradona e Caniggia em 1990. Pertencendo a um grupo/identidade, nunca senti a necessidade de prevalecer sobre outro grupo, por isso o sentimento patriótico nunca fez morada em meu corpo, especialmente o patriotismo brasileiro, que é menos um orgulho pelas coisas brasileiras do que um imperativo sádico de se afirmar perante o Outro (aquele outro do qual Freud fala comentando o narcisismo das pequenas diferenças). O vira-latismo e o patriotismo brasileiros andam de mãos dadas, como bem ilustram os bolsonaristas.

Um patriota brasileiro fazendo o melhor que sabe, acusando o país de não seguir o único parâmetro que ele reconhece como válido, o EUA.

(Durante curto tempo, na adolescência, eu tive predisposição ao elitismo, à aristocracia, mas ao encontrar ou ler as pessoas que se proclamavam elite, ou parte de uma classe aristocrática [mesmo na condição de membros desgarrados], não enxerguei nem inteligência, nem sabedoria, apenas uma atitude pedante e caricata que lhes parecia suficiente para justificar a pomposo título de melhores (aristoi). Foi então que minhas suspeitas contra as identidades começaram a encorpar-se.)

Depois de me mudar para a Espanha, em 2013, senti discreta e ligeiramente julgamentos sobre meu compromisso com o meu país, julgamentos que vinham de diferentes partes do espectro político. Essas pessoas pensavam — sem me dizer diretamente, claro — que eu devia alguma coisa ao meu país, pois deve haver um compromisso entre um cidadão e sua pátria, sua nação, de tal sorte que abandoná-la pareceria algo condenável. Mas a que país eu devia o compromisso patriótico, ao Brasil ou ao Brazil? Minha dívida era ao Brasil real ou o Brasil burlesco? — para usar a expressão de Ariano Suassuna (a frase é de Machado de Assis).

Brasileiros patriotas que nos enchem de orgulho; só cristãos e pessoas do bem, cheios de amor e generosidade em relação aos outros #sqn

Antipatizar com argentinos é parte essencial da cartilha do bom patriota e os patriotas, quando questionados, se apressam em reunir exemplos da marra portenha, como se assim pudessem nos convencer de acreditar no que creem. Mas alguém não poderia igualmente formar uma opinião desfavorável dos brasileiros, reunindo exemplos de patriotas asquerosos? Um preconceito e um juízo justo podem ser igualmente justificados e nenhuma verdade pode resolver a contenda pela simples razão de que a ética não é um mero derivado do conhecimento (saber agir não é o mero resultado de se ter acumulado conhecimento). O conhecimento não pode nos dar o que esperamos dele porque a justificação (que constitui sua base) não é fim da cadeia de razões; tudo pode ser justificado como nós quisermos [a inescapabilidade do arbitrário]. E essa difícil lição (que eu não espero que ninguém entenda assim tão facilmente) está no núcleo do que Kripke denominou o paradoxo do seguir a regra:

Nosso paradoxo era este: uma regra não poderia determinar nenhum modo de agir, pois todo modo de agir pode ser posto em conformidade com a regra.

Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 201

Naturalmente, o erro de Kripke não é tão importante quanto a inventividade de sua proposta e, sobretudo, a sua ênfase sobre a importância do tema. Esse simples comentário é absolutamente bombástico, se chegamos a compreender a radicalidade do que ele diz sobre a normatividade e a determinação. E é por isso que o próprio Wittgenstein se apressa em tentar remendar a quase inevitável medo de um relativismo epistêmico que parece dizer: “qualquer coisa é verdade, basta a cada um querer!”, uma espécie de post-truth entre as décadas de 30 e 40 do século XX. Por isso um pouco mais a frente ele escreve:

“Então, o que você diz é, portanto, que a concordância [Übereinstimmung: acordo?] das pessoas decide o que é correto e o que é incorreto?” – Correto e incorreto é o que as pessoas dizem; e as pessoas concordam na linguagem. Isso não é uma concordância de opiniões, mas de forma de vida.

Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 241 (minha dúvida)

Não é por outra razão que o pensamento de Wittgenstein sofre uma deriva antropológica que o leva a confrontar e criticar (James Geor) Frazer, e cuja força vai alimentar, entre outros, Peter Winch, em The Idea of a Social Science and Its Relation to Philosophy e em toda sua obra (Muniz Sodré é alguém que, no Brasil, eu sei ter sido influenciado por esse viés do pensamento wittgensteiniano). Mas não dá pra discutir tudo isso agora, o que importa dessa digressão é o sabor relativista que fica. Esse sabor que nos lembra o que há de incontornável em nossas perspectivas, por mais importância que emprestemos à ideia de fato e à noção de objetividade. A pragmática instaurada pelo entendimento de Wittgenstein sobre regras não rejeita a verdade, apenas destaca a subordinação dos jogos de justificar a verdade de proposições a outros jogos pragmáticos, a domínios não-proposicionais, não objetivos, regido por valores e elementos que não necessariamente estão determinados; além de nos lembrar que o padrão de correção muda com o tempo.

Essa discussão importa porque qualquer adjetivo que você associe ao conceito de “argentino” — essa categoria que nomeia uma generalidade que engloba (subsume é mais palavra mais adequada, mas quem usa o verbo subsumir?) particulares cujas características parecem determinadas pelo adjetivo — pode ser revisto, reconstruído, questionado, redefinido, rearranjado… relativizado, posto em perspectiva. Não que esse ou aquele adjetivo atribuído aos argentinos seja errado, o afastamento do campo epistêmico nos afasta de dicotomias como erro/acerto, verdade/falsidade. Isso significa que naquilo que dizemos de uma categoria, de uma identidade qualquer, de um conceito bastante geral e abstrato (como o de argentino), é menos importante a verdade do que se diz do que a justiça que anima a vontade de dizer. Mais uma vez, esse é o sentido da posição de Aristóteles frente a Platão a respeito da relação entre ética e conhecimento. É mais importante uma vontade de levar em consideração o particular que se esmera tanto em notar as nuances e singularidades do caso que é como se quisesse renegar a própria generalidade dos conceitos e construir para cada indivíduo sua própria lei e norma (o que parece abolir a própria função do que é geral, mas não abole, pois é esse o próprio sentido inerentemente pragmático [não-normativo] da justiça e da ética).

É preciso admitir que isso não significa que todo patriota seja a caricatura que poderíamos conceber a partir do que eu disse até aqui, isto é, uma figura atavicamente apegada a um identidade nacional que manifestaria irrefletida e automaticamente rechaço por todas as expressões de alteridade. No entanto, os patriotas capazes de olhar os outros com justiça são raros e não testemunham nem oferecem motivos convincentes para seguir alinhado a perspectivas nacionalistas. O nacionalismo está inescapavelmente contaminado com o problema central de toda forma de identitarismo, aquele que melhor se expressa no narcisismo de pequenas diferenças que assinala Freud. É difícil escapar a uma força que, ao mesmo tempo que constitui um sentido de unidade e pertencimento, permite o escoamento da hostilidade e da violência, além de dar feições claras ao inimigo, àquele que deve ser combatido.

Ao subordinar a conquista da união e da força política da unidade à segregação que instaura em relação ao outro, toda e qualquer expressão de identitarismo se arrisca num caminho perigoso que em nada difere de outras expressões de identitarismo notoriamente condenáveis: como o fascismo e certas manifestações de nacionalismo (Mate todos os Outros — em Electric Dreams — apresenta tais expressões identitárias de forma radical e brilhante). O único meio de evitar a tendência fascista e linchadora que o identitarismo traz latente consigo é se a união identitária vier matizada por um espírito reflexivo, como aquele salientado por bell hooks em sua ênfase sobre a necessidade do amor e da justiça como práticas, mas vocês hão de concordar que essa não é a tônica do ativismo em nenhum lugar do planeta. (De qualquer modo, é bom enfatizar que meu argumento não depende de uma avaliação correta da situação do ativismo no mundo.) E o ativismo identitário é, em si mesmo, uma forma branda de anti-intelectualismo justificada pela necessidade de intervenção [ação], e o que ele diz indiretamente é: “pense e reflita o quanto você quiser, desde que isso não te impeça de agir com a imediaticidade que as circunstâncias exigem (e segundo as regras de atuação que nós lhe ditamos), a menos que você seja um desses privilegiados que não entende a necessidade real de intervenção em razão do sofrimento de classes às quais você não pertence”. O comedimento que a reflexão imprime à ação é, para o ativismo, punheta intelectual das classes privilegiadas.

Um mundo forçosamente empurrado a uma globalização digitalizada (instalada no marco de uma economia digital e financeira) coloca diante da diversidade da espécie humana um tipo inédito de convivência e parece como se não nos restasse senão a necessidade de pensar e agir segundo uma cosmopolítica que dilua a força das identidades nacionais; mas não uma cosmopolítica universal, como a belíssima proposta de Kant para uma filosofia da história. Como é possível unir o imensamente diverso, o irredutivelmente plural senão por meio de aspectos comuns (ainda que naturais)? Não é o fio condutor da natureza o único artificie dos nossos caminhos, como nos sugere Kant? Uma comunidade de aspectos naturais ou culturais não é o que deve unir os seres humanos, e em realidade não estou certo de que devemos buscar união/unidade nesse sentido forte; aqui eu tenho escrito sobre confluência. A inevitabilidade do relativismo provoca dois efeitos ético-políticos mutuamente entrelaçados, efeitos que caracterizam uma cosmopolítica relativista e articulam precariamente esse emaranhado de temas: 1) a aceitação de um perspectivismo que bloqueia a busca ilusória de dimensões universais sem cair no individualismo; nesse contexto, a recusa à identidade universal é mais uma preocupação em não se fechar na estabilidade do padrão, além da necessidade de aprender a viver com a precariedade de identidades provisórias, sempre renovadas, misturadas a outras novas ou formando novas identidades a partir dessa mistura; diante disso, devemos aceitar o que há de incontornavelmente tendencioso em nossas perspectivas: eu, por exemplo, sou incontornavelmente baiano, ou melhor, um soteropolitano cosmopolita, e num sentido radical não posso ser madrilenho ou berlinense; 2) a substituição do anseio de encontrar o que há de comum no diferente, a busca pela universalidade que subsume o diferente e nos iguala em algum nível mais geral, por uma atitude maleável em relação à nossa própria identidade. É como se devêssemos absorver a instabilidade, torná-la parte do que nós somos a ponto de que possamos sempre que necessário nos transformar em outros, mudar de pele, assimilar o que nos inspiraria medo, reconhecer no desconhecido o familiar, pois o espírito é apenas um. Tendo tudo isso em conta podemos ver na mestiçagem a ética de um mundo globalizado — não a pureza!, a mestiçagem, a mistura!

As identidades nacionais são espaços de acolhimento que, ao mesmo tempo, criam canais de escoamento de uma hostilidade que de outro modo talvez ficasse patologicamente represada (pois não aceitamos ser conscientemente cruéis e sádicos, não aceitamos nossa maldade e é preciso que tudo aconteça inconscientemente). No entanto, hoje nossa relação com os outros já não é tão distante, de sorte que o bálsamo nacionalista representa, acima de tudo, um obstáculo à compreensão de Outros cada vez mais próximos e, ainda assim, igualmente distantes e temidos, afigurados por meio de preconceitos (sem o olhar da justiça). Parece que não nos resta senão superar o nacionalismo como meio de olhar (e ver) os outros seres humanos com mais justiça e para nos tornar capazes de aprender com eles, de usar a proximidade que a globalização desavisada e forçosamente nos impôs como ferramenta para escapar do medo e da desconfiança que nos separa.

Ser e parecer

Na sociedade capitalista a ideia de pluralidade, tão cara ao ideário liberal, raras vezes significa a pluralidade do ser, mas a do parecer. Assim se expressa a necessidade de individualização, de diferenciação estética, de singularização da aparência e do modo como se é percebido, mas essa diferença não se expressa com a mesma força nos valores e ideias que animam as ações. (Acho que não é necessário lembrar o papel do capitalismo nesse predomínio do meramente aparente). Se pudéssemos quantificar o aprofundamento das diferenças do ser e do parecer ao longo do tempo, e compará-las, veríamos que a contínua diferenciação estética não acompanha diferenças significativas de ideias, fazendo com que a aposta liberal na pluralidade nunca de fato leve água pro moinho dos melhoramentos que poderiam ter lugar na sociedade humana se nós efetivamente pensássemos de modo diferentes e se fossemos abertos às diferenças de pensamento. Para que a pluralidade produza efeitos mais que aparentes seria necessário construir uma outra relação com a estabilidade.

O plural da identidade

Toda identidade define um lado de fora e assim se determina aquilo que não lhe pertence. Mas há muitas identidades, de tal sorte que não raras vezes pessoas postas em lados distintos segundo uma identidade mais adiante se reconciliam sobre o eixo de outra. Este pântano de abstração se ilumina com uma mais-que-oportuna consideração de Freud. Em O Mal-estar na Civilização, a hostilidade em relação aos Outros funciona como uma espécie de válvula de escape para a agressividade humana, uma agressividade que não pode ser simplesmente anulada. E é por isso que em certo sentido Freud zomba das pretensões comunistas, porque vê neste projeto um impulso ingênuo de submeter uma energia indomável (ao invés de utilizá-la como força motriz, como faz a competição liberal). Nessa ilustração quais são as identidades e quais são os outros que estão do lado de fora?

Certa vez discuti o fenômeno de justamente comunidades vizinhas, e também próximas em outros aspectos, andarem às turras e zombarem uma da outra, como os espanhóis e os portugueses, os alemães do norte e os do sul, os ingleses e os escoceses etc. Dei a isso o nome de “narcisismo das pequenas diferenças”, que não chega a contribuir muito para seu esclarecimento.

Sigmund Freud, O mal-estar na civilização

Um fino discernimento de identidades se apresenta na consideração freudiana. De um ponto de vista mais geral estão as identidades nacionais, que por serem bastante gerais englobam muitos. Acreditamos que todo ser humano nasce num lugar e pertence a um povo, a uma nação. As identidades mais gerais são agregadoras, mas também excludentes, elas definem um imenso lado de fora, onde estão os outros. Os pares em disputa são apenas um modo de apresentar a dinâmica entre o eu e o outro: “os espanhóis e os portugueses, os alemães do norte e os do sul, os ingleses e os escoceses” — os brasileiros e os argentinos, acrescentaríamos; essa lista pode se estender infinitamente. Esse conjunto de pares quase opositivos e de identidades que definem muito claramente seus outros está dissolvido pela percepção de que essas supostamente gigantescas diferenças são verdadeiramente muito pequenas. É como se Freud dissesse: “na verdade não são tantas as diferenças entre espanhóis e portugueses, as semelhanças (identidades?) são abundantes e significativas, elas se cruzam em domínios menos gerais, mais locais. Entretanto, essas pequenas diferenças são convertidas num eixo fundamental, numa lente a partir da qual uma identidade se orienta e define os seus outros”.

Sempre é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que restem outras para que se exteriorize a agressividade.

É como se, a partir da percepção de um interesse instintivo em canalizar a agressividade em direção a grupos particulares, pudesse ser divisada uma série de outras identidades (semelhanças?) mascaradas pela prevalência de um certo recorte simbólico que privilegia as pequenas diferenças e que as maximiza.

A identidade que determina o que é semelhante (ou o que é igual) está sempre numa rede de identidades indeterminadas. Seu lugar simbólico, o fato de que ela seja um elemento fundamental numa visão de mundo, depende em grande parte de heranças culturais (adestramento) e do modo como elas se articulam para formar essa perspectiva. E a emancipação dessas identidades que funcionam como eixos de visões de mundo depende apenas da vontade. Isso significa que não pode haver nenhum elemento coercivo que constranja nossa perspectiva a orientar-se ou a reorientar-se segundo diferentes eixos. Apesar da pretensão alentada pelo predomínio da palavra, e sobretudo pela crença na verdade, é o próprio verbo que nos lembra o que é mais próprio ao fundamento:

Não é essa a questão: “E se você tivesse que mudar de opinião mesmo sobre aquelas coisas mais fundamentais?” E a resposta a essa questão parece ser: “Você não tem que mudar. Isso é exatamente o que ser ‘fundamental’ significa”.

Wittgenstein, Sobre a certeza

Mas por que importa a pluralidade das identidades? A possibilidade de decompor as identidades, de enxergar em grandes elementos organizadores outras identidades locais, componentes regionais que podem servir de eixos de novas visões de mundo, abre nossos olhos para uma oportunidade de escapar às armadilhas não apenas do narcisismo de pequenas diferenças, mas de todas as formas de instrumentalização pela identidade (como é o caso do fascismo). Pois assim se multiplicam os eixos possíveis de orientação de uma visão de mundo. Isso não significa, é óbvio, que a mera multiplicação de eixos de orientação estimule a plasticidade das nossas autodefinições identitárias. Mas eu acredito na força espontânea do discernimento das identidades.

Não que eu acredite que ações e pensamentos espontaneamente convirjam e confluam a um mesmo ponto consensualmente predefinido, sem que necessariamente estejam amarradas por identidades. Quem precisa se preocupar com eficiência e estratégia é quem busca o controle, e a visão dirigista é própria do instrumental materialista. Não confio no controle e na determinação, na aspiração a controlar toda a cadeia causal, nem na intervenção dirigista da palavra pela linguagem — linguagem entendida como instrumento e cálculo. Se crer na espontaneidade do mundo é o contrário de crer na possibilidade de controle dos fatos (isto é, na determinação suficiente e na previsão a níveis funcionais dos sistemas complexos que correspondem aos fatos), talvez não seja assim tão mal acreditar no espontâneo. Francamente, por mais interessantes e engenhosos que sejam, os projetos intelectuais alentados pela aspiração ao controle e pela ânsia de generalidade me parecem implicar um significativo empobrecimento simbólico que se dá em nome de um domínio técnico. Supõem, além disso, um esvaziamento de toda experiência num conjunto de regras, exigem a aniquilação da vagueza, o banimento da arbitrariedade e, no fundo, a subordinação da psicologia à lógica. Não é à toa que nas sociedades liberais, essas que exibem cenas caricatas de defensores da liberdade, tem se falado cada vez mais no mito da liberdade. Isso tem sido continuamente discutido e apresentado em filmes e séries.

O que eu quero dizer é: se somos afetados não apenas pelas grandes identidades nacionais, mas também por outras identidades mais locais (eu estou falando em termos territoriais, mas não é necessário, é apenas um modo de ilustrar distintos graus de generalidade), há uma boa chance de que isso nos transforme. Mais uma vez: não falo como quem monta uma boa estratégia, eu apenas gosto do efeito da mistura. Quem gosta da singularidade tem que saber apreciar a mistura, o singular não se repete. É o caldo da mistura o que nos imuniza contra o feitiço das identidades. Ser outro é misturar-se com outros. Em Máquinas como eu, Ian McEvan lembra uma frase de Kipling: “E o que podem saber da Inglaterra os que só conhecem a Inglaterra?”

Ser inglês atrai, não é? Digo, é uma identidade da qual se orgulhar. Ou ser norte-americano ou japonês? Ser alemão ou francês? Parece que cada uma dessas coisas já basta, porque são identidades que construíram seu valor na história que se conta. Por mais universalidade que os conhecedores se arroguem possuir, eles nunca conseguirão contornar a verdade inabalável da observação de Kipling. E é por isso que o conhecimento da natureza se viu alentado calorosamente pela viagem de Alexander von Humboldt ao Chimborazo, viagem que depois inspirou profundamente Charles Darwin. Esse impulso em direção ao estrangeiro tinha uma dimensão mais ampla do que o estreito horizonte do que hoje se reconhece como atividade científica. O impulso científico de Humboldt o transformou, transformou suas convicções, de um modo significativamente diferente daqueles que optaram por ver o mundo desde um referencial identitário fixo. E é nesse sentido que Lévi-Strauss lembra Rousseau, fundador da ciência do homem, ao sublinhar a variedade dos tipos humanos e o novo mundo que se abriria se o conhecêssemos:

A terra inteira está coberta de nações das quais apenas sabemos os nomes, e nos intrometemos a julgar o gênero humano! Suponhamos que homens do porte de um Montesquieu, de um Buffon, de um Diderot, de um d’Alembert, de um Condillac, viajando para instruir seus compatriotas, observando e descrevendo, como sabem fazer, a Turquia, o Egito, a Berbéria, o império do Marrocos, a Guiné, o país dos Cafres, o interior da África e suas costas orientais, as Malabares, o Mogol, as margens do Ganges, os reinos de Sião, de Pegu e de Ava, a China, a Tartária, e sobretudo o Japão: depois, no outro hemisfério, o México, o Peru, o Chile, as terras Magelânicas, sem esquecer os Patagãos, verdadeiros ou falsos, o Tucumã, o Paraguai, se possível o Brasil, e enfim o Caribe, a Flórida e todos os rincões selvagens, viagem a mais importante de todas e que seria preciso fazer com muito cuidado, suponhamos que esses novos Hércules, retornando dessas memoráveis perambulações, em seguida fizessem à vontade história natural, moral e política do que teriam visto, nós mesmos veríamos surgir de seus escritos um mundo novo e aprenderíamos assim a conhecer o nosso […]

Claude Lévi-Strauss, Discurso sobre a origem da desigualdade, nota 10

Conhecer essa variedade é abrir-se à possibilidade de ser afetado, é abrir-se à possibilidade de desestabilizar os referenciais identitários que nos orientam, mesmo o elusivo e fantasmático referencial do próprio eu. A estabilidade das identidades dá lugar tanto à mobilização política benéfica (a luta do movimento negro pelos direitos civis nos EUA, ou a causa feminista, por exemplo) quanto à nefasta (como é o caso do fascismo). Quando digo que acredito na força espontânea do discernimento de identidades não suponho que o espontâneo tem uma agenda, que traz em si uma teleologia mística e insondável, ou natural (como a da história em Kant). Ser outro não é um projeto materialista ou utilitarista. Ser outro não é um projeto iluminista de formação, é uma ideia para quem aceita e ama as coisas, como se tudo que nos pudesse acontecer fosse necessário.

Somos muito pouco

A sábia visão do futuro de PoolyDrawnLines

Não me leve a mal, eu não sou dos que gostam de identidades. Nem identidade nacional, nem identidade de espécie, nada. O que não significa que não tenha as minhas, sou corinthiano, por exemplo. Corinthiano, mas nunca deixei de torcer por outro time porque não devia. Como não torcer pelo São Paulo de Telê Santana no Mundial em 92 e 93? Em alguma medida isso reflete minha relação com as identidades. Mas o que eu queria dizer era que apesar de não gostar muito de identidade, eu penso com frequência na identidade humana. Não como humanista, mas como alguém que se pergunta: isso que nós somos como coletivo é algo apreciável? Tem valor?

Não importa que as pessoas se sintam apenas indivíduos, ou que no máximo formem um agregado de indivíduos atomizados e amarrados frouxamente entre si por identidades que os igualam a poucos, enquanto sobre os outros, os diferentes, a maioria, recai sua agressividade — como lembrava Freud. Essas pessoas que nós encontramos apenas acidentalmente no mercado, na feira, na rua, nas vias de transporte, são para boa parte dos outros animais criaturas a serem evitadas. Se os animais tivessem nossa capacidade para o preconceito, não escutaríamos nem mesmo o arrulhar das pombas. O mero vislumbre da silhueta de um humano inspiraria o nojo e a repulsa em todos os outros animais. Mas como não têm nossa enorme capacidade para o mal, os animais ainda se aproximam de nós, como se não fossemos, para eles, o mal a ser evitado. Se considerarmos essa insólita ficção que eu inventei, em que os animais nos identificam como humanos a partir de tudo que nós fizemos com eles, nós poderíamos condenar esses animais, esses reminiscentes de outras milhares de espécies que extinguimos, por ter nojo de nós? Quero dizer, ainda que a gente se sinta tão individual? É isso o que eu me pergunto quanto à identidade humana.

E por que nós haveríamos de cuidar dessa identidade, se somos apenas indivíduos? Se somos, quando muito, um nacional, um cidadão que pertence a um país, ou a algum continente (ou parte de continente) a que atribuímos importância em nosso próprio proveito. Os outros humanos são nossos únicos adversários, os únicos cuja opinião importa. Não temos Deus, não respeitamos os animais a ponto de nos afetar o que eles poderiam pensar de nós (eles não pensam!), e não nos importa o que eles possam sentir. O que então nos faria valorizar o humano e zelar por essa identidade? Um competidor externo, certamente. Assim, sonhamos com extraterrestres. Sonhamos com androides (e os androides sonham com ovelhas elétricas?). Em nossos sonhos nós projetamos a superioridade que não podemos enxergar em nós mesmos e que precisa ser projetada porque nós não podemos assumi-la. A quem mais seríamos superiores, aos animais? — Grande merda! Eles são estúpidos! Os sádicos podem até sentir prazer torturando a quem a eles julgam inferior, mas não superioridade. A superioridade é o triunfo sobre um inimigo que se respeita e estima, não é o caso. Não, nós só respeitamos as inteligências com que sonhamos. Diante delas, o cinema e a literatura nos contam, podemos às vezes até vislumbrar o melhor de nós, como se todas as criaturas inteligentes do universo fossem um derivado, feitas a partir da nossa costela. No entanto, isso significa que aquilo que nos é superior já não pode ser humano — deve necessariamente ser outra coisa.

Nem todos os filmes de Ridley Scott são bons, ou pelo menos tão bons como Blade Runner, mas é difícil dizer que alguém refletiu e imaginou melhor que ele as inteligências artificiais, os androides — mesmo contando com Philip Dick, Isaac Azimov e Ewan McGregor, recentemente. Mesmo Alien Covenant, que é um filme bem meia boca, tem insights incríveis.

Por medo de ser rebanho, aceitamos ser meros indivíduos, não com resignação, mas como se nos fosse dada a maior das virtudes. A singularidade do indivíduo — é verdade — é a fonte de todas as virtudes (ainda que elas tenham começado nos povos). E o que nos tornamos? Rebanho! Ou não somos? Quem ainda é otimista diante dos rebanhos é porque ainda crê nos sonhos que sonha, mesmo que o sonhador seja cientista. Aliás, principalmente se for. Os cientistas já não tem a mesma imaginação para sonhar novos sonhos.

A cooperação foi o que nos trouxe até aqui, ainda que alguns digam que foi a competição¹, mas isso que nos tornamos ainda me parece muito pouco. Observemos os estorninhos no céu, como é incrível o que eles fazem juntos. — Eles são apenas animais, tudo que eles fazem é simples comparado à complexidade do nosso pensamento, não temos nada que aprender deles.

Há muitos vídeos da dança dos estorninhos, mas eu gosto especialmente desse vídeo porque dá pra ouvir (apesar da música) a reação e o som das asas dos pássaros.

Nós também já fizemos coisas incríveis juntos, ao nosso modo, claro. Eu sou apaixonado pelo Linux, pra ficar num exemplo de um projeto cooperativo do nosso tempo. Mas tudo que fizemos até aqui ainda é muito pouco, dada nossa inteligência. Às vezes eu penso se poderíamos agir como uma rede de computadores, como uma botnet. A mente não é um software, é verdade, embora essa analogia seja muitas vezes útil. Ainda assim poderíamos nos coordenar de modo análogo. A botnet não é a melhor das imagens, porque é um sistema centralizado e determinado pela lógica master/slaves. As máquinas são nada mais que zombies dirigidos para realizar uma mesma operação computacional². Precisaríamos formar um sistema descentralizado e a única tecnologia que me vem a cabeça é o blockchain. Mas como é possível coordenar ações sem um sistema centralizado de execução, sem um master? — alguém me perguntaria. Bem, eu só estou relatando uma sandice que às vezes me passa pela cabeça, não sugerindo uma panaceia. A coordenação dos pensamentos, no entanto, talvez seja o que basta para que saibamos (juntos) o que fazer (tenhamos o poder executivo de um master).

O certo é que ainda somos muito pouco porque como indivíduos somos egoístas e como membros da sociedade, gregários. E acreditamos que devemos escolher entre ser indivíduos ou ser parte do rebanho. A individualidade impede a coordenação social e a sociabilidade ameaça estrangular a singularidade do indivíduo. Sem dúvida, os nossos conceitos nos enfeitiçam.

Talvez um dia alguma nave espacial desça na Terra e nos mostre uma superioridade que não poderemos reconhecer como tal, uma superioridade diferente daquela que aparece em nossos sonhos (ou pesadelos).


¹ Isso mostra que não convém deixar que uma verdade determine qual é a realidade onde um valor deveria ser o elemento determinador. Nada impede que prevaleça um valor inferior, por assim dizer, indesejável, injusto, cruel até. Sim, nada impede. Mas pelo menos estamos sem máscaras e subterfúgios, sabemos o que escolhemos. A verdade exclui e logo se desinteressa pelo que foi excluído como falso (ela finge que não existe história e que tudo é progresso linear, não há circularidades). Se depois de tanto tempo no mercado nós ainda acreditamos que os valores da sociedade de mercado devem ser os elementos axiais da sociedade, assim deve ser, mas não por convicção democrática ou coisa parecida. Cada vida, como cada espécie, tem seu tempo e seu potencial, se os humanos aceitarem que isso é o melhor que podemos ser, nada pode mudar isso. Aliás, estava me referindo Hayek quando falei de competição, aos liberais e ultraliberais.

² Os dois únicos usos que conheço em que uma rede coordena computadores para trabalhar juntos (além das aplicações de Big Data e do paralelismo computacional) em algum objetivo comum são o ataque de Negação de Serviço (Denial of Service Attack, DoS) e as tentativas de minerar bitcoins. Entretanto, nenhum dos dois usos tem uma conotação positiva, de tal sorte que valem mais como uma analogia das potencialidades.


Em Filosofia da Consciência algumas ideias têm sido resgatadas para falar Panpsiquismo, isso me parece muito estimulante.


Atualização: por coincidência, encontrei poucos dias depois essa matéria sobre o novo livro de Miguel Nicolelis. Ele usa o termo Brainet:

Tudo indica que a “Brainet” não é mera metáfora. O trabalho do brasileiro na Universidade Duke (EUA), bem como o de outros neurocientistas, está mostrando que a atividade cerebral de indivíduos diferentes engajados na mesma tarefa de fato acaba ficando sincronizada, podendo até ser usada para controlar avatares virtuais ou aparatos robóticos de forma conjunta.

Tenho enormes diferenças com Nicolelis, mas esse pensamento é muito estimulante e tem tanta gente pensando isso em áreas tão diferentes hoje em dia que é curioso constatar essa coincidência.

Mudar de pele

Cigarra trocando de pele

A linguagem é como uma pele, como uma casca, um exoesqueleto — ela nos enforma e define nossa relação com o mundo, marca a fronteira que nos separa do lado de fora. Para formar essa pele é preciso muito fingimento, muita imitação. A relação de dependência com o Outro nos escraviza porque nos condiciona a uma forma de heteronomia. Ou seja, para dominar uma linguagem devemos necessariamente, ao longo de um tempo de duração indeterminada, repetir e imitar, como bons animais que somos. Imitamos o que estiver mais perto — esse é o grau de sofisticação do “critério”. Ou quem parecer mais adaptado dentre todos aqueles que estão por perto.

Como nós, o macaco que precisa do apoio do outro macaco mais velho, ele aprende repetindo

Durante esse tempo não somos mais que uma máscara e um rosto sem expressões próprias. Aquela máscara que Clarice Lispector dizia ser o primeiro gesto humano solitário. E em que momento surge a autonomia? — Quem disse que a autonomia precisa surgir?

Do ponto de vista do indivíduo, a autonomia do pensamento não é uma etapa necessária e obrigatória do processo de construção simbólica. A heteronomia sim é necessária, logicamente necessária (quase redundância [?] imprescindível), mas a autonomia não. A autonomia é pouco adaptativa. O que não significa dizer que ela seja sem valor, seu valor é imenso. Uma parte significativa, se não a totalidade, de tudo que tem valor na cultura depende das expressões da autonomia do pensamento. A cultura é um trabalho coletivo, mas o pensamento é sempre individual, ainda que se beneficie tremendamente da cultura. A importância da cultura pra formação do pensamento dos indivíduos é inquestionável, herdamos a linguagem por meio da cultura, e a linguagem é esse lugar onde o Eu pode nascer. Até o afeto do corpo é uma linguagem que se aprende. Uma linguagem não proposicional, claro, um jogo. É preciso lembrar dessa parte não proposicional pra entender o primado da prática sobre as regras e normas. Mas isso não vem ao caso agora. O caso agora é que o pensamento individual, tortuoso, pode legar os mais belos frutos à cultura e nem por isso deixar de ser vivido como um traço pouco adaptativo. Bem, essa tese é discutível! É certo que há por aí quem pense a autonomia como um dom divino capaz de tornar nítida, lúcida e serena toda a percepção da realidade. No entanto, minha percepção das expressões da autonomia na cultura pinta um retrato bem diferente, mas as duas perceptivas são perfeitamente compatíveis. Na verdade, o que importa nessa história toda é constatar que do ponto de vista lógico e histórico o indivíduo não é obrigado a se tornar autônomo e se libertar desse inescapável vínculo que nos liga aos Outros que imitamos e repetimos (por que não dizer: que nós papagaiamos?). Nesse contexto, se nos fosse dado escolher se queremos ou não nos emancipar e nos libertar desse vínculo, essa seria uma escolha à qual poderíamos dizer não. Agora imagine a cena, você anda pela calçada de uma rua próxima à sua casa e uma pessoa te aborda, do nada:

— Olá, tudo bem?
— Tudo… e contigo? — você responde meio confuso.
— Tudo ótimo, eu só queria te fazer uma pergunta rápida, em certo sentido eu queria te oferecer uma escolha: você prefere pensar por conta própria ou você prefere pensar como os outros? Nietzsche fala em rebanho, mas eu acho a expressão depreciativa pra falar de uma condição pela qual a gente necessariamente tem que passar. E ela meio que enviesa a escolha em favor da autonomia quando tira um pouco da dignidade e do valor da escolha pelo rebanho.

Supondo que foi sugado pra dentro de um filme do Wim Wenders, você pensa sobre a questão em silêncio por tanto tempo que a espera começa a tornar aquela situação ainda mais desconfortável e sem sentido (como se isso fosse possível). E então finalmente você responde:

— Eu prefiro pensar como os outros.
— Você tem certeza?
— Sim — você diz, convicto.
— Tá bom, obrigado, bom dia!
— Bom dia!

Ninguém nos aborda assim pelas ruas (se alguém abordassem logo pensaríamos que essa pessoa é louca — ou não? O louco fala sozinho). Mas se alguém de fato nos perguntasse, nós poderíamos perfeitamente dizer não sem represálias, sentindo que demos uma resposta perfeitamente válida. Há boas razões para preterir a autonomia, mas a heteronomia não se pode evitar, não temos escolha, quem nunca chegou a ser heterônomo nunca participou de uma linguagem — é como se já tivesse nascido à margem de toda a comunidade de usuários da linguagem. Acho que há boas razões para seguir o rebanho, eu compreendo essa escolha.

Quem escolhe o rebanho, no entanto, está condenado a repetir o que lhe foi ensinado, sem ser capaz de questionar as próprias regras que o instruíram. E o medo de mudar pode ser paralisante, pode emprestar cores muito fortes às nossas verdades fundamentais [conservadorismo]. É quando as coisas se tornam dogmas. [Mesmo a democracia pode ser um dogma, nos lembrava Ortega y Gasset. E é verdade que em nome da implantação de certos modelos econômicos (e o neoliberalismo é também um way of life, não é o que dizia Tatcher?) aqueles que pregam a centralidade do mercado e da competição na vida humana tem convenientemente tolerado versões bem questionáveis da democracia.] Não mudar implica viver toda a vida sob a sombra do pensamento dos outros.

Mudar é um processo doloroso, mas a única lei do mundo é a lei da mudança (esse oxímoro imprescindível). Toda mudança nos coloca na rota do abandono da heteronomia, da aquisição da autonomia (e da liberdade). E o mais importante: não é possível mudar sem deixar de ser heterônomo, sem abandonar o rebanho. Mas não há rotas, nem fórmulas. Nunca abandonamos inteiramente as referências anteriores, mas elas já não são suficientes, é preciso um modo próprio de articular essas referências. Novos eixos e valores. E até um novo modo de ação. É verdade que circulam e vigoram respeitosas instituições que certificam e atestam a autonomia do pensamento na forma de argumentos, conclusões, teorias e hipóteses científicas. Com títulos, condecorações, reconhecimento e todos os meios possíveis constroem-se medidas públicas respeitadas por meio das quais é possivel constituir uma reputação comunitária, como acontece na comunidade acadêmica. Entretanto, a conquista da autonomia do pensamento é um processo solitário, solipsista, antigregário, pois nenhuma medida exterior pode determiná-la. Somente nós mesmo podemos saber o quanto cada um de nós ainda deve aos pensamentos que guiaram nossa fase heterônoma (e o verbo saber aqui é inadequado porque não se trata de um saber epistêmico e proposicional). Nenhuma medida externa pode determinar o momento em que nos tornamos autônomos e como o conseguimos. É a honestidade de cada um que determina se isso aconteceu ou não. Há pessoas que, visivelmente enfeitiçadas pelo pensamentos dos outros, juram e berram a todos que são autônomas e que tem ideias próprias. Tolo é quem acredita que pode convencê-las do contrário — mas pra esse beco sem saída fomos todos arrastados pelo racionalismo.

Saber em que ponto, em que momento, nós deixamos de ser heterônomos, dependentes do condicionamento, das regras e instruções a que tivemos cega e passivamente que nos submeter para entrar na linguagem é também o primeiro dilema da psicologia androide. Assim, o drama do nascimento da consciência artificial é também o drama da conquista da autonomia. E essa dificuldade desemboca no problema de mudar, de aceitar o abismo que necessariamente se segue ao desgarramento do rebanho e a possibilidade de que o desespero desse afastamento nunca verdadeiramente se dissipe.

PS. Ridley Scott é quem melhor concebe os dramas da psicologia androide. Westworld tem feito muito bem, mas não dá pra comparar. Mesmo que Prometheus e especialmente Alien: Covenant não sejam a pérola que foi Blade Runner, está ali ainda o problema da autonomia, em David, como uma premissa incontornável de toda consideração dessa psicologia. E claro que pra ele o problema da inteligência é o problema da criação.