Aforismos sobre amizade e máscaras

Podia ter escolhida uma máscara melhor, não? É que as máscaras tem muitos propósitos, como encenar ferocidade e instilar medo. (Uma máscara Oni?)

Escolher a própria máscara é o primeiro gesto voluntário humano. E solitário.

Clarice Lispector, “Persona” em A descoberta do mundo

A amizade é (o ambiente && a atmosfera) em que nos sentimos à vontade para ser quem somos: agimos espontaneamente, abandonamos armas e máscaras, e tentamos descobrir quem nós realmente somos… Estar à vontade perto de seres humanos é difícil, somos perigosos! Somos os animais mais perigosos que existem, de longeeee! Podemos chamar de “encontro” quando nos sentimos bem perto de outros seres humanos a ponto de baixar a guarda e tentar descobrir quem somos — encontros são bonitos e raros, são formadores! São as pessoas perto de quem nos sentimos à vontade para estar sem máscaras que nos ensinam quem nós somos! Até lá, somos apenas a máscara.


Amizade como extensão de nós mesmos — A amizade nos ensina sobre a nossa identidade, sobre quem nós somos por trás das máscaras, mas ensina também a nos tornar outros, absorver coisas dos outros, quase por osmose. Mudamos sob a influência dessas pessoas com quem nos conectamos: lemos outras coisas, escutamos outras coisas, prestamos atenção num mundo ligeiramente diferente, ou totalmente diferente. Amigos e amigas são postos avançados de nós mesmos, estamos assim em muitos lugares, temos muitos olhos e espíritos.

Pós-nacionalismo

Quando estamos longe dos conflitos étnicos ou nacionais é fácil falar em pós-nacionalismo, porque não há nada que faça nosso sangue ferver, e falamos situados na paz. Mas eu quero falar de ideias — não de soluções, não de deveres e princípios, nem de nada concreto —, eu quero falar de uma ideia não como um instrumento, mas como algo abstrato e muito vago. Ainda que as ideias assim abstratas não possam se transformar magicamente em instrumentos, elas alimentam pensamentos que um dia saberão fabricar os instrumentos necessários quando for conveniente e extrair dessa ideia tudo o mais que for necessário. Mas é difícil acreditar em ideias e apostar nelas na Tecnosfera, num mundo onde até a filosofia quer ser mero instrumento de controle da cadeia de causas e efeitos.

Voltemos então à ideia. Numa sociedade globalizada os nacionalismos nos enfraquecem, porque as economias já são transnacionais, mesmo que estejam atreladas a lastros jurídicos nacionais (e as offshore, hein?). É como se as pessoas jurídicas pudessem ser facilmente pós-nacionais, mas às pessoas físicas ainda lhes custasse enxergar as vantagens do pós-nacionalismo. A razão, Freud cantou essa bola: o narcisismo de pequenas diferenças, tudo aquilo que pode brotar dos Outros nascidos e criados a partir da constituição de uma identidade: identidade nacional ou de qualquer outro tipo. É por meio desse inconsciente endosso à hostilidade dirigida ao estrangeiro (ao Outro) que é escoada a violência de pessoas que nunca admitiriam que sentem muito menos agem com violência; e assim o medo e a sabedoria fascista mantêm-se vivos e voltam a se manifestar de tempos em tempos, como vemos agora. (Dizer também é agir, nos lembraria muito oportunamente Austin, sobre formas violentas de ação/discurso.) Mas como convencer as pessoas de que os outros não são apenas esses bárbaros que eles veem por toda parte? Não há nenhum caminho, nenhuma resposta certa.

No entanto, há setores da cultura de uma sociedade global onde as identidades vão se mesclando e se aproximando, de modo silencioso e desapercebido. Um desses setores é a culinária. Há pouco mais que um par de séculos ingredientes de todo o mundo começaram a circular longe de seus ambientes originais, essa história é muito longa pra contar aqui e se você se sentir curioso pode chegar tão longe a ponto de regressar até o que relata Levi-Strauss sobre a contribuição das Américas para a so called civilização ocidental:

Para apreciar esta obra imensa, basta medir a contribuição da América para as civilizações do Velho Mundo. Em primeiro lugar, a batata, a borracha, o tabaco e a coca (base da anestesia moderna) que, a títulos sem dúvida diversos, constituem quatro pilares da cultura ocidental; o milho e o amendoim que deveriam revolucionar a economia africana antes talvez de se generalizarem no regime alimentar da Europa, em seguida, o cacau, a baunilha, o tomate, o ananás, a pimenta, várias espécies de feijão, de algodões e de cucurbitáceas. E finalmente o zero, base da aritmética e, indiretamente, das matemáticas modernas, era conhecido e utilizado pelos Maias pelo menos meio milênio antes da sua descoberta pelos sábios indianos, de quem a Europa o recebeu por intermédio dos Árabes.

Claude Lévi-Strauss, Raça e história

Hoje em dia, em qualquer cidade grande da Europa se encontra sem dificuldade uma imensa variedade de ingredientes e temperos estrangeiros. As pessoas comem em restaurantes de países de toda a parte do mundo e cozinham, elas mesmas, pratos e receitas de outros países com enorme facilidade. Nós, aqui em Madrid, comemos e temperamos tudo com temperos asiáticos: chineses, coreanos, japoneses. Criamos pratos que misturam elementos baianos com sabores de outras culturas, é uma loucura!

Óleo de chili e molho de pato

Integrar ingredientes, rituais e sabores estrangeiros nos nossos hábitos na cozinha é um modo de criar uma ética pós-nacional! E esse o ponto de partida também da constituição de uma ética pós-capitalista — que já existe e sempre existiu em muitas formas de vida, como nos lembra Carlos Taibo e David Graeber, pra ficar em dois dos que eu gosto. E o amor pelo estrangeiro como força, admiração, vontade de se apropriar de um super-poder (metaforicamente, claro) funciona como antídoto ao arquétipo do estrangeiro como causa do medo, que alimenta o fascismo e é obstáculo a uma verdadeira ética pós-nacional. Enfim, essa é apenas uma ideia, frágil e inofensiva (ou não!), que eu acho que tem um grande futuro pela frente e que a gente deveria levar muito a sério. Mesmo que a culinária não seja uma epistemologia, uma lógica ou uma física. — pois é em realidade muito melhor que elas!

Foto que eu tirei no museu Pergamon, em Berlim

Há algumas semanas eu vi um post do El País libros sobre essa filósofa chilena que escreve sobre temas afins, deve ter muita gente escrevendo sobre isso hoje em dia.

Tempo de correção

Um escritor medíocre deve tomar cuidado para não substituir rapidamente uma expressão grosseira e incorreta por uma correta. Ao fazer isso ele mata a ideia original, que ainda era pelo menos uma muda viva. E agora está murcha e não vale mais nada. Ele agora pode muito bem jogá-la no lixo. Enquanto que a lamentável muda ainda tinha uma certa utilidade.

Wittgenstein MS 138 (eu sou o culpado pela tradução)

É curioso pensar que há um tempo para corrigir, um tempo de correção, que a correção nem sempre deve ser imediata, e que essa pode ser a diferença entre um escritor medíocre e um bom escritor de acordo com Wittgenstein: um bom escritor sabe dar bom uso às más expressões, sabe cultivá-las no tempo apropriado. É como se ele dissesse: cada caminho entre o incorreto e o correto tem seu tempo, e esse percurso deve ser percorrido no tempo certo, nem um segundo a mais ou a menos. São incontáveis as maneiras de mostrar como no pensamento de Wittgenstein o tempo vai se tornando elemento fundamental da lógica da linguagem — até o ponto de já não podermos mais separar lógica e psicologia [o começo da psicologia androide]. E é interessante constatar que a complexificação originada pelo tempo, pelo acontecer, é como uma espécie de nascedouro do psicológico, daquilo que não pode ser reduzido às normas e quadros normativos (lógica).

Egocentrismo natural e básico

O aspecto central do texto mais famoso de David Foster Wallace é o que ele chama de “egocentrismo natural e básico” ou “egocentrismo profundo e literal” ou simplesmente “configuração padrão”: a tendência a pensar a si mesmo como o centro do universo. E em certa medida o texto é uma reflexão e um convite a que a gente combata a nossa “configuração padrão”: tente pensar nos outros, tente amar os outros, com tudo de simplesmente desinteressante, tedioso e nada excitante que isso implica. Para DFW essa era uma questão de saúde mental, de não ser escravo da nossa própria mente, do nosso próprio egoísmo! A imagem que ele usa para se referir a sensação que caberia às pessoas que não conseguem se livrar da sua configuração padrão é a coisa mais bonita que li nos últimos 20 anos: “a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita”.

Esse tipo de liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros – no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita.

David Foster Wallace, Isto é a água

Quão difícil é apresentar temas espinhosos como o egoísmo e o egocentrismo de modo tão simples, tão natural? Os inegáveis vínculos de DFW com Wittgenstein me fazem pensar que ele atualizava bem um sentido do pensamento de Wittgenstein. Wittgenstein se queixava de tudo, mas ele era especialmente crítico dos limites da sua imaginação (apesar da força e do caráter marcante das suas ficções, a ficção do xadrez sem o rei é brilhante), e ansiava encontrar pessoas que pudessem dizer da forma certa aquilo que ele aspirava dizer, mas sem sucesso (aos seus olhos!). Como escritor, DFW transforma reflexões filosóficas em imagens da vida, reflexões que geralmente circulam em atmosferas muito rarefeitas.

[Creio que poderia interessar a um filósofo, que saiba pensar, ler as minhas notas. Porque, mesmo que eu só tenha acertado no alvo raramente, ele reconheceria os alvos aos quais eu apontava incessantemente].

Wittgenstein, Sobre a certeza, §387

A filosofia se torna uma coisa natural no texto de DFW, na sua escrita, algo acessível, de todos, e ela é forte! E é mesmo natural apresentar temas espinhosos quando você sabe com que imagem (verdadeira ou ficcional) ilustrar os conceitos e as práticas envolvidos no significado do tema. A imagem da fila do supermercado, da impaciência que ela gera em certos contextos, é perfeita. Filosófica mas também pop.


Lembrei de um filmaço que discute a questão geral do egoísmo e do compromisso com os outros. The Sunset Limited, com atuações assombrosas de Samuel L. Jackson e Tommy Lee Jones (que também dirige o filme) e roteiro que é pura encenação de dilemas éticos. Salvar ou não salvar o outro, essa é a questão. Interferir? Como interferir?

Um conceito positivo de post-truth

É inacreditável a quantidade de assuntos complexos que um meme pode apresentar com simplicidade e humor

É possível usar o conceito de post-truth de modo não descritivo, usar o conceito para apresentar uma perspectiva, ao invés de descrever — como quem convenciona um padrão de medida. Nesse contexto, a post-truth significaria reconhecer que o real, o conjunto indeterminado do que existe (e também o que não existe, pois o real inclui também o símbolo, e não apenas o ôntico e ontológico), contém mais do que elementos descritíveis; significa também reconhecer que a verdade — por mais importante que seja — tem um papel secundário, ou deveria, já que qualquer hipotética totalidade do conhecimento nunca coincidiria com os limites do real, pois o Real, ao contrário do conhecimento, não tem limites. O conhecimento precisa de limites, precisa pensar totalidades, precisa de regularidades, enquanto que o Real — o sentido entendido como coisa mais além do fato, da verdade, do objetivo, do não ficcional, do verídico, do verificável — esse não é regular nem forma totalidades, ele é o caos (indeterminação) a partir do qual toda regularidade se cria por intervenção de uma inteligência. Essa linguagem que tenta agarrar o real é muito mais do que o instrumental científico em toda a sua glória e esplendor.

É claro que o real é também indescritível e não apenas o conjunto dos fatos conhecidos (e possíveis), mas muita gente acha que o indescritível “não existe”, que o indescritível é tão somente aquilo que ainda não foi descrito, o ainda desconhecido. Essas pessoas acham que o indescritível do qual fala o místico, por exemplo, é apenas uma grande sombra projetada pelo fogo de um conhecimento ainda incipiente, e quando o lume desse conhecimento estiver por toda parte as superstições desaparecerão, não haverá mais o místico e tudo aquilo que é relegado à condição de lenga-lenga por não ser objetivo como o trabalho científico.

A hipertrofia do conhecimento e da verdade tende a tornar a ciência uma espécie de buraco negro que a tudo engole. Tudo se transforma numa hipótese a ser refutada ou confirmada. O real, nesse contexto, é um mapa em construção, algo que a ciência tenta espelhar por meio de suas teorias e instrumentos (o representacionalismo ainda é a metafísica da ciência). Assim, todas as perspectivas sobre o real são teorias sobre o real, variações da hipótese de Sapir-Whorf. A linguagem cria sim a realidade, mas essa não é uma hipótese a ser provada, mas o sentido de uma perspectiva e de uma atitude frente ao real.

A pretensão descritiva da ciência tem uma centena de efeitos fascinantes e desejáveis, mas seu efeito colateral consiste em nos enclausurar num mundo onde tudo é um problema técnico passível de ser contornado por futuras descobertas; onde o político é um artefato obsoleto destinado a ser suplantado por tecnologias vindouras. Nesse sentido, a lembrança evocada pelo meme acima de que algo (ou melhor, quase tudo) escapa ao propósito ordenador da linguagem é muito interessante. Somente quando escapamos à armadilha de pensar que o mundo se reduz aos nossos constructos simbólicos podemos criar um modo de agir menos marcado pela nossa húbris tecnológica, mais ajustado ao planeta e ao nosso necessário pertencimento a ele.

Amor e dever: formas de vínculo

Quando falamos em política, em geral somos constrangidos por um senso de dever. Uma dimensão moral e normativa guia nossas ações e pensamentos, e se não a escutamos nem agimos de acordo com as suas instruções sentimos culpa. O dever é forte em quem tem consciência, ele pode nos transformar em escravos da culpa. O dever é uma forma de vínculo, um compromisso que nos amarra uns aos outros.

Mas há outras formas de política, outras formas de vínculo que não colocam a responsabilidade como fator central. O amor não é um compromisso, não é um dever, é uma escolha. O que se forma pelo amor são laços, laços que muitas vezes implicam algo tão forte quanto um dever, tão forte quanto o mandamento de um dever e que comanda nossa agência, mas sem o travo da culpa. O que separa o amor do dever é que no dever o que nos compele é espaço normativo determinado pela lei, a compulsão do amor é sentimental, é espiritual, nós (agimos && reagimos) porque sentimos que também somos aqueles que amamos. Amar é sentir o outro como a si mesmo, é aperfeiçoar essa capacidade de sentir o outro como a si mesmo, como se o habitasse.