Fraternidade de Caim

Ainda nos resta muito tempo antes que possamos dizer que vencemos o fascismo e tudo que ele representa. Vencer o fascismo significa superar as condições que o fazem medrar, que o alimentam e o fazem crescer dentro do corpo social. E uma das razões porque é tão difícil extirpar o fascismo se mostra na ética bolsonarista. Os bolsonaristas, como exemplares de um gênero do fascismo, empunham com o orgulho um tipo de sabedoria, aquela que diz que toda desconfiança entre seres humanos está plenamente justificada.

Há um tipo muito comum de ser humano que está sempre acumulando razões para não acreditar nos outros, que faz desse reservatório de desconfiança não um mero conhecimento acumulado por experiência, mas uma ética e uma sabedoria. Uma sabedoria a ser não apenas protegida, mas divulgada e defendida como se estivéssemos sempre diante do perigo iminente de esquecer algo muito importante. É essa ética, essa sabedoria do fascismo aquilo que os bolsonaristas e os fascistas de maneira geral têm de mais forte, porque é profundamente atraente. É a sabedoria do ressentimento, que a maioria de nós está sempre tão disposta a reconhecer, pretensamente por prudência — mas em realidade apenas por medo. O medo e a desconfiança são os alicerces da ética fascista e a base do seu inegável sucesso!

Como responder a isso? Como responder à lembrança e à sugestão de que devemos desconfiar uns dos outros? Não se trata apenas de contrapor casos, de dar motivos para confiar e ilustrar circunstâncias diferentes. O medo está sempre justificado, não há o que possamos fazer, não há como vencê-lo no terreno do discurso e da proposicionalidade.

É surpreendente constatar que no centro de uma das histórias principais da Bíblia esteja um fratricídio, o assassinato de um irmão por outro irmão. A história de Caim e Abel tem algo de profundamente perturbador e, ainda assim, ela está perfeitamente encaixada em nossa vida, de tal sorte que parece perder o status de tabu. É como se fosse o abominável familiar, que nós toleramos por massificação, efeito semelhante o que acontece com a obra de arte, conforme nos conta Walter Benjamin. Mas o que há de tão perturbador na história do assassinato de Abel? Para mim, o mais perturbador é constatar que já no início do livro a própria ideia de fraternidade é lançada por terra, ou danificada, e a força simbólica dos laços de sangue (tão importante para o grupo conservador de onde costumam sair os fascistas) seja em certo sentido posta em questão.

O que nos sobra quando a desconfiança contamina até mesmo os laços de sangue? A história de Caim e Abel é uma versão mais crua e hardcore de Sangue Negro (There will be blood), ou se você quiser, Sangue negro é uma versão suavizada da história de Caim e Abel. O que nos sobra uma vez que a desconfiança contamina os laços de sangue são os outros, os estranhos, os desconhecidos, os estrangeiros, os bárbaros — os Outros, a quem devemos matar por serem radicalmente diferentes de nós.

Parece imprescindível, para escapar ao fascismo, forjar outra ideia de fraternidade, uma ideia que eu chamo de Fraternidade de Caim. A fraternidade de Caim é a ideia de um irmanamento que não é bobo ou ingênuo sobre os perigos representados pelos outros (como conservadores acusam a esquerda), mas que nem por isso deixa que o fel da desconfiança consuma seu coração. É a prática de amar, apesar dos defeitos, apesar de tudo de terrível que podemos ser, e de reconhecer, como Thoreau, que não há nenhum homem pior que ele mesmo, que não há nenhum ser humano pior do que nós mesmos. (É preciso amar Caim e sua força violenta, assassina, destrutiva, reconciliar o amor e a violência que temos em nós.)

Pensando melhor, não é a ideia da fraternidade de Caim que precisamos forjar, mas uma prática, uma ética, um modo de agir natural e espontâneo, só assim podemos reconciliar a bondade com algo que se deixa passar por ingenuidade aos olhos dos que idolatram a desconfiança como forma de sabedoria, só assim poderemos exibir em nossas ações uma confiança que os fascistas dirão cega, uma confiança que os fascistas, escandalizados, alertarão que está em iminência de ser traída — e de ter as falsas razões que a fundamentam reveladas.

No mundo das ideias, na ficção, a fraternidade de Caim já está presente na Casa da Farinha, em Viva o Povo Brasileiro, nessa sabedoria que a fervente e generosa inteligência de João Ubaldo soube realçar. Quem sabe um dia possamos ver isso também na prática, quando soubermos aprender com nós mesmos, com a nossa história e a história dos nossos povos, quando sentirmos que também temos coisas que ensinar aos civilizados, aos superiores, à Metrópole.

O caso Matadero

2018 foi um ano estranho, mais de uma vez topei com pessoas que me pediam orientação — logo a mim? O caso Matadero foi apenas um desses casos e em certa medida ele está relacionado àquilo que eu insinuei no post anterior. Naquele dia nós decidimos passear pelo Matadero, um centro cultural com espaços de exposição, cinemateca, bares, que fica numa imensa área às margens do rio Manzanares. Foi quando nós estávamos parados na faixa de pedestres esperando que o sinal abrisse que um senhor me abordou perguntando em que direção ficava a Ronda de Valencia, ou coisa do tipo. Eu disse que não sabia, mas que olharia no smartphone e lhe diria em um minuto. Ele não queria me incomodar, mas eu lhe disse que não custava nada. A verdade é que meu smartphone então estava um pouco velho e respondia numa velocidade muito menor do que eu gostaria, o GPS demorava especialmente para identificar a localização. O sinal abriu e eu sugeri que fossemos pro outro lado. Chegando no outro lado, nós paramos e eu já estava quase identificando o local, tentando me situar em relação a ele (o que ainda hoje me custa), quando um homem se aproximou de nós e me pediu dinheiro. Eu tirei um ou dois euros que tinha no bolso e dei pro sujeito, ele seguiu e o senhor que me acompanhava disse: “Que buena persona eres!”, e eu continua buscando, estarrecido pelo comentário de um sujeito que mal sabia o sacana que eu sou.

Esse é exatamente o ponto onde o senhor me abordou.

Poucos segundos depois outro sujeito para diante de nós, com a aparência de quem estava drogado e de quem tinha apanhado, e me pergunta qual era a letra que aparecia na capa de um livro. Era visivelmente um M, razão porque a pergunta parecia ainda mais insólita. Eu respondi e ele continuou me perguntando pela letra, e outras coisas mais, e eu que até então tinha mantido a paciência lhe disse em tom sério que estávamos conversando e que não queríamos mais ser incomodados. Ele se foi. Daí eu finalmente me orientei e disse ao senhor a direção que ele deveria seguir. Nós demos mais alguns passos juntos, enquanto ele me agradecia como se eu lhe tivesse dado um rim, até que nos separamos.

O caso ficou na minha cabeça porque me pareceu inacreditável o espanto e a surpresa do senhor diante da minha simples solicitude. Eu não havia levado um morador de rua para morar comigo, nem qualquer uma das coisas sugeridas pelos bolsonaristas e outros que tais quando querem denunciar o evidente limite do compromisso entre seres humanos (e justificar assim sua atitude filha da puta); eu havia simplesmente me disposto a orientar uma pessoa usando esse dispositivo que hoje em dia todo mundo carrega no bolso. O que então me surpreendeu constatar, uma obviedade, é o quanto é verdadeiramente incomum e infrequente mesmo o menor dos cuidados. Eu pensei comigo mesmo, a vida é tão dura, estamos incontornavelmente expostos à tragédia e ao sofrimento, como é possível viver se não nos dispomos a nos ajudar nem mesmo nas menores coisas e se isso nos causa espanto? Quando atitudes tão insignificantes são sentidas como demonstração de bondade e não de senso comum (de coisas que deveriam ser começo de conversa), é sinal de que estamos muito distantes de virtudes que seriam um bálsamo, pelo menos no que diz respeito à dimensão social da vida. Fiquei um pouco triste por me dar conta do quanto temos naturalizado o egoísmo e o egocentrismo capitalista.

Sociologia da fofoca

Meme do Melted, creio.

É estarrecedora não só a falta de discussão sobre a fofoca como também a enorme condescendência com que o tema é tratado. Bem, talvez Georg Simmel tenha escrito sobre o assunto. O que é a fofoca senão um exercício do julgamento e da faculdade de julgar, um modo de contar histórias ou de inteirar-se sobre a vida alheia essencialmente marcado por um enfoque judicativo; um uso deliberadamente superficial do juízo, mais comprometido com a produção de sentenças (a conclusão de julgamento jurídico) do que com o processo de reunir elementos para o juízo. O hábito de colecionar elementos para o juízo deveria ser o construtor do compromisso com a justiça, essa palavra já tão abstrata e vazia de significado. No entanto, se o que predomina no exercício do julgar é o açodamento e uma certa ostentação da sentença assim rapidamente proferida, como é possível que a justiça tenha lugar?

A condescendência com que a fofoca é tratada faz supor que se trata de algo tolerável e inofensivo. E no que diz respeito à fofoca todas as distinções parecem se desfazer, pois dela tomam parte indistintamente sujeitos os mais variados, sem que se possa encontrar qualquer critério objetivo que indique maior ou menor propensão a fofocar. E tudo se passa como se não houvesse nenhum, nenhum empecilho que pudesse impedir alguém de ser ao mesmo tempo fofoqueiro e justo, e o hábito de fofocar não representasse nenhum impedimento ao exercício justo do juízo. A capacidade de julgar poderia nessas circunstâncias ser compartimentada, de um lado estaria nossa tendência a julgar questões pessoais importantes, temas sociais e políticos, ou temas profissionais relativos à competência de cada um, e do outro estaria nossa tendência a falar mal do vizinho, por exemplo. Os dois campos estariam assim perfeitamente separados, como água e óleo, existindo independentes um do outro. Mas a capacidade de julgar não pode ser compartimentada, ela é um todo sistêmico e este aspecto holístico é fundamental para a justiça.

No que há de propriamente sociológico é curioso constatar o papel que a fofoca desempenha nas relações humanas. Em raras circunstâncias uma afinidade pode ser tão prontamente estabelecida entre pessoas quanto naquela em que duas delas descobrem alegremente que podem falar mal de uma terceira. (Esta deve ser uma derivação da valiosa lição de Freud sobre o lugar da hostilidade na fortalecimento dos laços de afeto.) Nesse sentido, há poucos elementos tão eficientes na produção de laços sociais quanto a fofoca, pois é como se as pessoas se conectassem mais facilmente pela antipatia que pela empatia. Um certo grau de intimidade pode chegar a se formar por meio dessa relação; em pessoas fechadas, a fofoca pode vir a ser uma das poucas vias de expressão da intimidade (em realidade é uma falsa intimidade, a palavra mais adequada aqui é cumplicidade). Desse modo, forma-se uma espécie de sociedade secreta na qual os membros tacitamente se reconhecem como dispostos a falar dos outros. Isso não apenas abre portas, na medida em que permite que novos vínculos sejam imediatamente estabelecidos entre membros desconhecidos, como também produz formas de exclusão, posto que quem não se dispõe a falar dos outros é curiosamente visto com receio e desconfiança. Por cierto, dói constatar que o Twitter (minha rede social favorita) se tornou a rede social da fofoca e do mexerico. Embora muitos pensem que a fofoca está majoritariamente reservada às mulheres, nada poderia ser mais falso, é impossível determinar por gênero a proporção majoritária do engajamento em fofocas. A prática é fundamental não apenas no âmbito pessoal, mas também em ambientes profissionais, e tornou-se um elemento indispensável na articulação política necessária às atividades profissionais as mais diversas. Pensem, por exemplo, no papel da fofoca na Universidade, em centros de pesquisa e em qualquer outro ambiente de uma ampla comunidade profissional.

A fofoca está entre nós desde tempos imemorais, mas é certo que a Tecnosfera tem concorrido para degradar o uso do julgamento. O escanteamento da filosofia, sua servil conversão numa filosofia científica, que começou a ter lugar principalmente a partir do início do século passado, contribui para que todos os domínios antes ligados à ética/política passassem a aspirar a chancela de domínios científicos. Não é à toa que a expressão ciência jurídica circula abertamente entre aspirantes à advocacia como um rótulo desejável que poderia emprestar ainda mais valor à sua atividade. A ciência jurídica sobredimensiona a dimensão normativa do Direito, quase a ponto de fazer esquecer o que há de fundamentalmente (político || arbitrário || convencional) na constituição e aplicação das leis. — Mas o que tudo isso tem a ver com a fofoca? Se a dimensão ética e política do julgamento tem se degradado mesmo nos domínios onde sempre se conservou por questões genealógicas, o que esperar dos ambientes onde, aparentemente, não há nenhuma razão para que as práticas se mantenham ligada a preocupações éticas e políticas? Aí o julgamento pode prestar-se a papéis estritamente sociais e psicológicos como se não tivesse nenhuma outra relação/implicação.

A ideia de justiça está essencialmente ligada ao exercício de julgamento, se por alguma razão essas duas ideias se separam o resultado são práticas sociais (e uma cultura) sem orientação ética. Se isso se dá, além de tudo, num ambiente onde a tecnicidade parece mascarar a degradação ética ficamos também sem critérios para aferir essa perda. O discurso filosófico não apenas é incapaz para indicar essa degradação, posto que não tem valor senão decorativo e acessório, como tampouco pode remediá-lo, pois não pode intervir com eficiência (na falta de melhor expressão) onde é apenas ornamento e não parte axial de uma cultura (a filosofia não é instrumental, mas podemos falar metaforicamente sobre intervenção).

Se a fofoca cumpre um papel social tão importante, a ponto de ser percebida como algo inofensivo ou de azeitar relações sociais entre pessoas que de outro modo não encontrariam pontos de contato, é um imenso desafio conceber uma resposta a tudo aquilo que resulta do afastamento da ideia de justiça na cultura. Se removemos um componente importante de uma maquinaria sem substitui-lo por algo equivalente é inevitável produzir um sentimento de perda, de vazio. O sentimento de perda só poderia ser evitado se houvesse algum tipo de compensação, se a função que a fofoca cumpre na relação entre seres humanos pudesse ser substituída por uma nova forma de relação que substituísse sua superficialidade e imediaticidade por algo ainda mais desejável. O que poderia ser isso? Urge imaginar novas formas de conexão entre seres humanos.


Há poucas populações mais estigmatizadas que a dos moradores de rua, pois ninguém deve a um morador de rua nem mesmo a dignidade de suspender o juízo diante de sua condição. Se é verdade que o se diz e pensa dos moradores de rua não pode ser caracterizado como fofoca, isso ainda assim ilustra um tipo de superficialidade no uso dos juízos que se assemelha à fofoca ao recusar qualquer compromisso com o aprofundamento dos elementos necessários à justiça. Neto é um dos comentaristas esportivos mais populares do Brasil, sua linguagem e meios de expressão são populares, de maneira que preconceituosamente não esperaríamos dele nenhuma elaboração que pudesse nos ensinar algo de valioso sobre qualquer tema relativo à justiça. No entanto, Neto lembra algo essencial que perdemos de vista a todo momento e que mesmo a excelentíssima professora de direito da USP Janaina Paschoal ignora: moradores de rua, viciados em drogas, não são menos dignos que qualquer outra pessoa por sua condição, se perdemos a capacidade de olhar individualmente a história de cada um, se nos apressamos a acomodá-los nas categorias prontas em que facilmente tendemos a encaixar as pessoas, logo nos vemos longe de qualquer coisa desejável e de qualquer senso mínimo de justiça.

Por que soa ingênuo falar de amor?

Essa imagem é uma comédia!

Não há quem possa negar a capacidade mobilizadora do ódio, especialmente na triste circunstância em que nos encontramos, cercados por bolsonaristas. No entanto, mesmo entre soi-disant cristãos, falar de amor parece ingênuo, pois é como se estivéssemos convidando alguém a tomar parte do universo dos ursinhos carinhosos. A crítica da ingenuidade é parte fundamental das tarefas dos homens (do patriarcado), pois cabe às princesas o sonho e a fantasia (a utopia). Aos homens cabe ter medo, mas como homens não devem ter medo (pois assim reza a cartilha), esse medo é devidamente mascarado de tal modo que a desconfiança e malícia dos espertos são os únicos elementos que se veem da superfície. Por cierto, outra coisa que nos faz lembrar o bolsonarismo é que há de caricato (e nefasto) na identidade masculina.

O amor de Jesus é, ou deveria ser, um instrumento revolucionário, mas foi devidamente esterilizado pela hipocrisia capitalista e transformado num discurso vazio, completamente isolado das práticas e ações. Não por outra razão os evangélicos são apoiadores de primeira hora de Bolsonaro e são comuns imagens patéticas de pastores em comunhão com um defensor da tortura e do estupro. A parte que mais concretamente concerne ao capitalismo na esterilização do amor diz respeito à sua transformação num produto, num modelo que pode ser convertido em imagem/totem a ser vendido no mercado. O que se vende no mercado capitalista não são apenas produtos, todos sabem disso, mas também ideias, paradigmas, modos de ser e até de amar. Tudo que é replicável, reprodutível, repetível está à venda. Embora o prazer seja o principal produto do mercado subjetivo capitalista, no mercado intersubjetivo o amor reina. O amor romântico é vendido como experiência partilhada de bem-estar, alegria e felicidade, experiência perfeitamente ajustável ao padrão instagramável de visibilidade. Exposto e vendido como produto, nesse amor se repetem padrões fabricados ou absorvidos pelo mercado com a finalidade de fazer com que qualquer pessoa possa reconhecê-lo como inegável manifestação de sucesso, êxito e realização — de tudo que é pública e consensualmente desejável. No mercado, onde estão todos competindo para serem melhores que os outros, a realização do amor romântico é uma meta das mais valiosas, pois dá prestígio e respeitabilidade a quem a alcança, lhe dá poder simbólico.


A expansão dos serviços que a internet a um só tempo escoa e estimula faz com que o papel das empresas como agentes publicitários seja suplementados pelas próprias pessoas. A capacidade de persuasão (quase coerção) que antes parecia restrita às empresas capazes de bancar gordos orçamentos publicitários agora está também ramificado e expandido no trabalho do influencer, que é uma espécie de terceirização da publicidade. E a vontade de influenciar vai diluindo no nosso sangue mais um pouco do veneno da vaidade capitalista, até que pareça seguro afirmar, e que não nos reste dúvida, de que já nenhuma dimensão da vida humana que está livre da lógica mercantil capitalista.

Enquanto eu escrevia, ou melhor, enquanto eu buscava o artigo de Pierre Dardot e Christian Laval (o artigo citado no link anterior), achei por completo acaso um artigo não lido de Edward Bernays chamado The Engineering of Consent, no meu tablet, onde eu lia os artigos pro doutorado. Vai aqui o trecho inicial sem tradução, por pura preguiça (tá aqui uma tradução boa feita por algoritmos):

Freedom of speech and its democratic corollary, a free press, have tacitly expanded our Bill of Rights to include the right of persuasion. This development was an inevitable result of the expansion of the media of free speech and persuasion, defined in other articles in this volume. All these media provide open doors to the public mind. Any one of us through these media may influence the attitudes and actions of our fellow citizens. The tremendous expansion of communications in the United States has given this Nation the world’s most penetrating and effective apparatus for the transmission of ideas.

Edward bernays, The Engineering of Consent (grifo meu)

Edward Bernays foi o personagem sobre quem a BBC fez o documentário The century of Self. Coincidência? Sinais?

Tudo isso me lembra o Cântico Negro, de José Régio, esse com uma vibe anti-influencer:

“Vem por aqui” – dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

José Régio, Cântico negro

O amor, eu já disse aqui uma vez, é uma experiência real e print('singular ' * 10000) de conexão entre seres humanos. O amor romântico em si não tem nada de censurável, nem mesmo sua artificialidade pode ser condenada, o problema é seu agenciamento pelo mercado capitalista, é a sua transformação em algo não singular, mas repetível — e numa meta almejada por um público em torno do qual distintos mercados florescem, como, por exemplo, o mercado turístico.

Para encaixá-lo no modelo de reprodução capitalista, a simplificação aplaina e transforma o amor em algo insosso. As arestas são mascaradas, porque não são comercializáveis. Talvez poucos o comprassem se soubessem dos custos implicados, se conhecessem suas feições reais. Quem não conhece tais feições pode contemplá-las como a arte as apresenta, por exemplo, nessa preciosa cena de Gênio Indomável, ou como elemento fundamental de A chegada. Aliás, A chegada é um filme nietzscheano, ele encena a forma mais bonita do amor, o Amor Fati, o amar todas as coisas como se elas fossem necessárias, o dizer sim! — se transformar em alguém capaz de dizer sim, um Jasagender.

O amor revela o melhor de nós, mas também nos expõe e nos abre à possibilidade de ser vulnerados. E assim o medo predomina, silencioso e ubíquo, mascarado pela exibição contínua da hostilidade (projeção teatral de uma coragem ausente). Sentimos vergonha do medo que sentimos, da ameaça real e concreta que o ser humano representa para outro ser humano (homo homini lupus) e assim nos envergonhamos também de acreditar em outra coisa, pois isso poderia parecer fraqueza. E o maquiamento (edição) das aparências, central para uma sociedade orientada ao espetáculo e dependente do fomento do egoísmo, cala ainda mais fundo a ânsia de manifestar o amor, pois quem teme a vulnerabilidade do amor teme também parecer ridículo aos olhos dos outros. Nesse cenário, a coragem e a abertura necessárias para assumir os riscos de amar e de acreditar no amor alcançam níveis irreais e tornam quase proibitiva sua experiência e sua expressão.

O medo que atravessa a nossa sociedade, como um fantasma, irreal e indizível, não pode ser combatido instrumentalmente, com ferramentas forjadas em bases epistêmicas, pois como eu insisto em dizer todo o medo está sempre justificado. Só a promessa de algo profundamente desejável pode nos fazer encarar os espinhos e os fantasmas que cercam o amor, só a experiência concreta e singular do amor nos faz acreditar naquilo que disso pode vir a ser. A experiência real da conexão entre seres humanos é o único elemento que pode dissipar a bruma de desconfiança que nos cerca.

Recortei esse depoimento duro e precioso sobre diferentes lições do amor do documentário Humans.

Manual de sobrevivência

Às vezes períodos difíceis da nossa vida, desses que a gente atravessa com perturbação e desassossego, desvanecem na memória e no passado quase como se não tivessem existido, enquanto em outros momentos coisas aparentemente incompreensíveis perduram na lembrança. Eu não esqueço quando pulei uma pessoa numa escada rolante na estação da Lapa. Me senti mal por ter feito aquilo, embora soubesse que era a única coisa a se fazer. O que mais eu poderia fazer? Parar e perguntar, “Cara, cê tá bem?”, pra um bêbado adormecido (ou desmaiado) na entrada da escada rolante de um terminal de ônibus? — Que tipo de idiota tem essa atitude? Vai levar pra casa todos os bêbados, malucos, moradores de rua, todas as pessoas perdidas, todas as solitárias, todas as se fingem de forte para dissimular sua dor? Quem você está querendo salvar agindo assim: ele ou você? Ele não era eu, era um outro, um desconhecido.

Em certo ponto da vida, geralmente quando somos crianças, nos apresentam ao Manual de Sobrevivência. Não somos apresentados formalmente, mas pouco a pouco nos damos conta da sua existência. É certo que as crianças tem uma enorme predisposição sádica, mas elas tem também curiosidade e interesse autêntico. Não raras vezes lhes espanta ver pessoas morando na rua, deitadas ou dormindo no chão onde os outros passam. O que lhes dizemos nessas ocasiões quando elas nos perguntam espantadas? Desconversamos, talvez. Como abordar um tema tão complexo com uma criança? Talvez nem mesmo os adultos a quem as crianças perguntam saibam explicar porque aquelas pessoas estão ali. É muito provável — dado a triste circunstância em que se meteu a sociedade brasileira — que seja dito às crianças que se tratam de vagabundos! Muitos se referem desse modo às pessoas que vivem na rua, como se a vida fosse algo muito simples e bastasse seguir uma série bem definida de regras. E aqueles que não fossem capazes de segui-las à risca seriam não apenas os únicos responsáveis pelo seu “fracasso”, mas pessoas desprezíveis e sem valor. Vagabundos! Assim alguns seres humanos se eximem de qualquer responsabilidade pelos outros e estão livres para pensar somente em si mesmos. A culpa é verdadeiramente terrível, mas não deixa de ser incrível o quão longe as pessoas podem ir para esquivar-se de responsabilidades que ninguém lhes atribue, mas que elas sentem como fardo invisível. Temos importado tanto da metrópole norte-americana que a distinção entre winners and losers já não parece uma ideia fora de lugar, mas algo que está em sintonia com o que há de pior em nós.

O caso é que as crianças são pouco a pouco desencorajadas a se ocupar com as pessoas na rua, a se importar com elas. São adestradas, como bons animais que são, a ter uma atitude “pragmática”, compatível com a vida cotidiana — são ensinadas a ignorá-las! Não dá pra salvar todo mundo. Há um ditado, muito realista, que me encanta: “A morte de uma pessoa é uma tragédia, a morte de um milhão é estatística”. É natural ver o mundo com impessoalidade, pois é francamente compreensível a tendência a evitar a sobrecarga que cada pessoa representa se lhe concedemos a atenção que exige a justiça, se nos colocamos o dever de ser justos ao avaliar a sua história, como se ela fosse uma singularidade (particular) — e não um dos casos de uma regra (geral). É um fardo, a justiça é fardo, é um exercício que pesa (em termos quase computacionais, de recursos de memória). Que as pessoas queiram evitar esse fardo me parece inteiramente compreensível. Além do que, como lembrava Freud, o amor é o sinal de nossa distinção, há sempre algo de incontornavelmente tendencioso nos nossos julgamentos — e por isso o relativismo não representa o perigo que lhe atribuem. Estamos sempre em perspectivas e não há um lado de fora, um real que não seja perspectiva, mas objetividade.

O que é tão difícil de entender pode ser expresso assim. Enquanto permanecermos na província dos jogos de verdadeiro e falso, uma mudança na gramática só pode nos levar de um desses jogos para outro, e nunca de algo verdadeiro a algo falso.

Wittgenstein, gramática filosófica

Mas não é hora de falar disso, o que importa é que existe algo que nos inclina a uma misantropia, a uma insociabilidade, a uma privacidade, a um querer estar longe. Eu não posso dizer que não compreendo quem honestamente se confessa misantropo. Há boas razões para odiar as pessoas em geral. É claro que, se a impessoalidade prevalece e nos distanciamos desses seres odiosos que são os outros seres humanos, nós perdemos a capacidade de senti-los. E assim perdemos a ginga perto deles.

Deixamos de ser capaz de sentir o que é dito por Nai Palm, sobre sua orfandade e sua relação com a natureza.

Deixar de ser capaz de sentir os outros humanos não é uma perda qualquer, muito se perde com isso. Quem já esteve num estádio cheio, no carnaval, num show de música, teve pelo menos ocasião de sentir a força e a beleza da conexão entre seres humanos. No carnaval, quantas vezes a alegria da música nos fez sentir como se nos dissolvêssemos na ressonância desse sentimento coletivo, como se experimentar a alegria como indivíduo não fosse nada perto da experiência de senti-la na rua, com pessoas queridas e os outros desconhecidos. E como se a alegria não pertencesse a nenhum de nós, mas fosse de todos, e por isso mesmo fosse muito maior do que qualquer coisa que pudéssemos experimentar sozinhos. Não ser capaz de sentir isso é uma grande perda.

Nossa dor é que balança o chão da praça!” Chame gente talvez traduza melhor o espírito do carnaval, mas é difícil achar uma versão que espelhe seu caráter incendiário na avenida.

O que quero dizer é: embora afastar-se dos outros (ou manter em relação a eles uma distância impessoal) possa parecer a opção segura, prática e razoável, ela não nos afasta realmente deles, pois nunca deixamos de ser afetados pelas vidas dos outros, por mais esforço que façamos para viver em nossas bolhas. O covid19 talvez tenha nos feito lembrar disso, ou pelo menos esse fantástico texto me fez. Somos animais sociais e a rede que nos une tem laços profundos e tramas que nem mesmo suspeitamos. O que eu ia dizendo antes de começar essa longa digressão é que as crianças são encorajadas a ignorar as pessoas na rua, a fingir que não as veem deitadas nas calçadas, como se adquirissem assim uma espécie de virtude, uma habilidade que lhes torna aptas a viver no mundo. E quem pode negar a dura verdade dessa perspectiva?

O Manual da Sobrevivência, esse compêndio de regras para quem não quer ser esmagado pelo peso do social, não deixa de lembrar a sabedoria do verme, que se encolhe ao ser pisado para diminuir as chances de um novo pisão. Ainda que essa astúcia primitiva seja inegavelmente vantajosa, que tipo de seres humanos ela nutre?

Ser justo não é uma virtude que se ensina às crianças, mas nos parece imprescindível que, cedo ou tarde, os jovens aprendam a lidar com a ingenuidade codificada em sua programação padrão, de modo a evitar que sejam enganados, ludibriados, manipulados, etc. Deve-se substituir a ingenuidade por certo grau de esperteza e de malícia, com o objetivo de nos tornar menos sujeito à maldade humana em geral e à sua propensão parasítica em particular. Longe de mim fazer ressalvas a este aprendizado tão louvado e útil à sobrevivência dos seres humanos nas sociedades capitalistas, mas será que inibir uma propensão quase natural de importar-se com os outros não tem maiores efeitos? É verdade que as pessoas ingênuas chegam a ser irritantes, mas nada se compara àqueles que sentem prazer em confirmar (eles sempre se confirmam) a falibilidade do humano, como se dissessem: “Tá vendo, é por isso que estamos perdidos!”. Tratar todo impulso benéfico como a expressão de uma fraqueza a ser inibida tem nos custado muito.

É simplesmente impossível viver quando tudo nos afeta ou se não nos diferenciamos dos Outros — desde cedo aprendemos estas lições. No entanto, é verdade também que o esforço deliberado para responsabilizar o indivíduo por tudo que lhe acontece cria as condições ideias para o egoísmo e a indiferença. Não creio que devemos reagir a este esforço sistemático com o objetivo de evitar o egoísmo, há algo de inevitável no egoísmo e na egocentricidade. Mas é certo que poderíamos resgatar uma experiência entre seres humanos que se perdeu desde que temos estado sob a sombra dos dogmas liberais da competição e da individualidade atomizante. Talvez essa experiência seja o que se expresse natural e ingenuamente na atitude das crianças, em seu espontâneo interesse pelos outros seres humanos, um interesse não mediado pelos ardis dos sobreviventes e pelo amargor que inevitavelmente contamina suas lições de vida.


O sobrevivente é, acima de tudo, um ressentido e isso inevitavelmente me lembra esse deboche de Chico.

Debochando do cínico

Quanto de verdade cada um pode aguentar?

Sem o pano de fundo de uma psicologia a verdade pode ser a simples peça de um quebra-cabeças, uma parte que ajuda a saturar um espaço lógico (do conhecimento). O fragmento de uma totalidade. Ainda que esse espaço lógico seja infinito, ele pode ser inteiramente determinado porque em certo sentido é um infinito atual e toda sua extensão está determinada conforme as leis naturais que o constituem. Bem, essa é somente uma perspectiva.

Mas quando trazemos a psicologia de volta — e pensamos a verdade — algo novo se acrescenta, algo que não podia estar presente aí onde a arbitrariedade não era permitida, a ideia de intensidade. A verdade então se transforma em um elemento a ser digerido pelas personalidades às quais ela se expõe e um dilema ético se apresenta. Hilda Hilst expressa de modo cristalino como essas dificuldades se colocam para o escritor.

LÉO GILSON RIBEIRO O que é uma grande abertura de intensidade?
HILDA HILST É difícil de definir, talvez fosse mais fácil sentir isso. É mostrar ao outro que ele pode desvendar o seu “eu” desconhecido; é proporcionar ao outro o “autoconhecimento”, uma compreensão definitiva de si mesmo, com suas potencialidades, falhas e virtudes.
 
LGB E isso não seria ampliar o outro, libertá-lo?
HH É justamente o que eu queria discutir com você: eticamente algum escritor, alguma pessoa, pode assumir a tremenda responsabilidade de romper os limites que o outro aceitou, ou porque lhe foram impostos de fora ou porque ele se arrumou diante dessa conciliação com a opressão externa e o condicionamento interno de que foi vítima? Revelar ao outro que ele pode ser muito mais e pode ser ele mesmo com uma liberdade total de qualquer tipo de repressão política, econômica, sexual, religiosa, psicológica etc., eu me pergunto, não pode levar uma pessoa à morte, à loucura sem retorno?
 
LGB Mas por que você pressupõe que as pessoas não queiram se libertar?
HH Talvez algumas queiram, mas poderão aguentar a sua nova condição? Que direito tenho eu de interferir na sua vida burguesa, arrumadinha, na qual, bem ou mal, ela sobrevive? E uma questão eminentemente ética!
 
LGB Você acha que seria uma onipotência ou uma presunção do autor ambicionar isso?
HH Sim, porque talvez depois de se conhecer a si mesma esse destinatário da minha mensagem de autolibertação não suporte a ruptura com o seu mundo anterior de tabus, de repressões, mas um mundo no qual ele pôde sobreviver. E se a descoberta plena de si mesmo for uma descoberta tão maior do que a sua capacidade? Se o levar a um nível de intensidade de autodescoberta que se revele intolerável para ele?

cristiano diniz (org.), Fico besta quando me entendem: entrevistas com hilda hilst

Na terceira temporada de The Sinner, uma situação apresenta o mesmo dilema. Um professor atordoado por seus próprios fantasmas e cansado de assistir impassível à infelicidade da sua aluna decide aconselhá-la. Ele decide lhe falar sobre o quanto a sociedade nos impele ao gregarismo e como é difícil escapar desse impulso, quer estimulá-la a emancipar-se do jugo dos pais tiranos (do pai, pra ser mais exato), sob pena de prolongar sua infelicidade indefinidamente. Mas como fazer isso sem ferir, sem exceder involuntariamente a quota que cada um pode suportar de verdade? Hilda Hilst tem boas razões pra pensar assim.