O caso Matadero

O

2018 foi um ano estranho, mais de uma vez topei com pessoas que me pediam orientação — logo a mim? O caso Matadero foi apenas um desses casos e em certa medida ele está relacionado àquilo que eu insinuei no post anterior. Naquele dia nós decidimos passear pelo Matadero, um centro cultural com espaços de exposição, cinemateca, bares, que fica numa imensa área às margens do rio Manzanares. Foi quando nós estávamos parados na faixa de pedestres esperando que o sinal abrisse que um senhor me abordou perguntando em que direção ficava a Ronda de Valencia, ou coisa do tipo. Eu disse que não sabia, mas que olharia no smartphone e lhe diria em um minuto. Ele não queria me incomodar, mas eu lhe disse que não custava nada. A verdade é que meu smartphone então estava um pouco velho e respondia numa velocidade muito menor do que eu gostaria, o GPS demorava especialmente para identificar a localização. O sinal abriu e eu sugeri que fossemos pro outro lado. Chegando no outro lado, nós paramos e eu já estava quase identificando o local, tentando me situar em relação a ele (o que ainda hoje me custa), quando um homem se aproximou de nós e me pediu dinheiro. Eu tirei um ou dois euros que tinha no bolso e dei pro sujeito, ele seguiu e o senhor que me acompanhava disse: “Que buena persona eres!”, e eu continua buscando, estarrecido pelo comentário de um sujeito que mal sabia o sacana que eu sou.

Esse é exatamente o ponto onde o senhor me abordou.

Poucos segundos depois outro sujeito para diante de nós, com a aparência de quem estava drogado e de quem tinha apanhado, e me pergunta qual era a letra que aparecia na capa de um livro. Era visivelmente um M, razão porque a pergunta parecia ainda mais insólita. Eu respondi e ele continuou me perguntando pela letra, e outras coisas mais, e eu que até então tinha mantido a paciência lhe disse em tom sério que estávamos conversando e que não queríamos mais ser incomodados. Ele se foi. Daí eu finalmente me orientei e disse ao senhor a direção que ele deveria seguir. Nós demos mais alguns passos juntos, enquanto ele me agradecia como se eu lhe tivesse dado um rim, até que nos separamos.

O caso ficou na minha cabeça porque me pareceu inacreditável o espanto e a surpresa do senhor diante da minha simples solicitude. Eu não havia levado um morador de rua para morar comigo, nem qualquer uma das coisas sugeridas pelos bolsonaristas e outros que tais quando querem denunciar o evidente limite do compromisso entre seres humanos (e justificar assim sua atitude filha da puta); eu havia simplesmente me disposto a orientar uma pessoa usando esse dispositivo que hoje em dia todo mundo carrega no bolso. O que então me surpreendeu constatar, uma obviedade, é o quanto é verdadeiramente incomum e infrequente mesmo o menor dos cuidados. Eu pensei comigo mesmo, a vida é tão dura, estamos incontornavelmente expostos à tragédia e ao sofrimento, como é possível viver se não nos dispomos a nos ajudar nem mesmo nas menores coisas e se isso nos causa espanto? Quando atitudes tão insignificantes são sentidas como demonstração de bondade e não de senso comum (de coisas que deveriam ser começo de conversa), é sinal de que estamos muito distantes de virtudes que seriam um bálsamo, pelo menos no que diz respeito à dimensão social da vida. Fiquei um pouco triste por me dar conta do quanto temos naturalizado o egoísmo e o egocentrismo capitalista.

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