Mr Robot: entre a realidade e a loucura

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O texto contém comentários sobre cenas da série.

Em muitas situações Elliott se viu aterrorizado por uma pergunta: “eu sou louco?”. Ter sólidas razões para acreditar que não é capaz de distinguir entre o que é real e o que é ilusório provoca um sentimento ambíguo. Por um lado, ainda continuamos capazes de reconhecer a incompatibilidade entre as nossas crenças e nossas atitudes. Por exemplo, quando Elliott se dá conta de ter beijado sua irmã (Darlene) sem saber, ele constata que suas crenças tem efeitos sobre como ele reage ao mundo. Certas habilidades cognitivas parecem ainda capazes de nos levar de determinadas informações (eu beijei minha irmã) até certos juízos (alguém que não reconhece sua própria irmã não tem condições de entender e distinguir o que é real do que não é). Por outro lado, no entanto, essas habilidades cognitivas parecem ainda insuficientes. A mera capacidade de reconhecer que há um descompasso entre as crenças que temos sobre o mundo e o mundo como ele funciona, a realidade do mundo por assim dizer, não é suficiente para nos oferecer um caminho de volta à realidade. Domínio psicológico em vias de colapso, a cabeça de Elliott é o sistema subjetivo que se entrecruza ao domínio objetivo dos sistemas de computação. A computação é essencialmente determinística e seus procedimentos são orientados por metas. Considerando esses ambientes tão distintos, o que há de realmente fascinante em Mr Robot é sua capacidade de apresentar de maneira tão espontânea e orgânica o cruzamento entre esses dois domínios tão díspares: o domínio subjetivo, mais abrangente, representado pelas lutas internas de Elliott com a realidade, e o domínio objetivo dos sistemas de computação, inevitavelmente subordinado à realidade fabricada pela sua cabeça.

Esse conflito entre dois domínios irredutíveis e em certo sentido inconciliáveis é o próprio mote do seriado. Elliott é não apenas cognitivamente funcional, ele é um prodígio. Alguém capaz de entender como funciona a complexa estrutura de software e hardware da qual depende o fluxo normal das operações financeiras que todo mundo faz cotidianamente sem entender como é possível. Ele não apenas entende, seu conhecimento do modo como o sistema funciona lhe permite identificar vulnerabilidades. Exploit é uma palavra mencionada muitas vezes no seriado. Mencionada como algo inevitável: todos nós temos vulnerabilidades que podem ser exploradas por outros. (Exploit então funciona como um termo chave, que denota esse cruzamento entre dois sentidos da própria ideia de vulnerabilidade.) A questão para Elliott é: será que eu posso esconder minha vulnerabilidade? Será que eu sou capaz de não deixar que as pessoas vejam que eu não sei o que é real, o que não é? Mesmo que não possa ajudá-lo a resolver a questão subjetiva que é distinguir entre a realidade e a ilusão, o senso de objetividade de Elliott lhe permite identificar as vulnerabilidades de seus amigos e inimigos. A história de sua amiga Angela Moss se transforma completamente depois que, apressado para que ela fosse embora, Elliott lhe diz que ela precisa confiar mais em si mesma. Tudo muda depois disso. Elliott diz estritamente o necessário e ela reage adequadamente. Angela entende o sentido do conselho apressado de Elliott e sua vida vai pouco a pouco se adaptando às metas que ela secretamente aspirava sem nunca ter coragem para agir conforme as coisas que acreditava. A transformação na vida de Angela é só mais uma ocasião em que se representa uma espécie de irredutibilidade da vida a uma dimensão estritamente objetiva, orientada por ações que se dirigem a metas (como nos sistemas de computação). A medida que alcança suas metas, que se sente valorizada e reconhecida pela sua inteligência e capacidade, Angela se dá conta que suas metas haviam sido traçadas a partir de uma outra realidade na qual ela mesma não tinha valor e na qual os outros não reconheciam o valor que ela via em si mesma. Sua clareza e inteligência, o senso de objetividade que na série pouco a pouco vai ganhando força só comparável ao do próprio Elliott se mostram igualmente insuficientes para prover novas metas que lhe conduzam a um caminho que não seja o do cinismo. Angela vai se tornando cínica e insensível.

Os computadores (e a computação) são uma metáfora do nosso tempo e Mr. Robot é talvez uma das primeiras manifestações artísticas a entender e representar essa ideia de uma maneira assombrosamente fiel. A capacidade de processamento dos computadores nos fascina porque julgamos que tudo no mundo pode ser ajustado apropriadamente, uma vez que tenhamos informação suficiente e saibamos como tratar (processar) essa informação. Não é esse o fascínio que exerce a ideia de Big Data? Mas acontece que esse mundo objetivo de perguntas e respostas, por mais poderoso que seja, não é suficiente para prover os valores necessários para que saibamos que metas escolher. (Razão porque não apenas Angela, mas o próprio Elliott sofre). É por isso que Aristóteles afirmava (contra Platão) que a ética não é uma questão de conhecimento. Mas é o Wittgenstein que inspirou os positivistas lógicos (Wittgenstein do Tractatus Logico-Philosophicus) — aqueles que acreditavam piamente que o mundo era construção lógica feita a partir de elementos objetivos — quem oferece a ideia mais representativa dos problemas representados em Mr Robot, nos dilemas de seus personagens e no conflito entre as habilidades de um sistema cognitivo perfeitamente funcional e uma realidade cujas variáveis não estão inteiramente dirigidas por elementos objetivos:

6.52 Sentimos que, mesmo que todas as questões científicas possíveis tenham obtido resposta, nossos problemas de vida não terão sido sequer tocados. É certo que não restará, nesse caso, mais nenhuma questão; e a resposta é justamente essa.

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Por Leonardo Bernardes

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