O lado feminino de Don Draper

A situação era a seguinte: o terceiro filho de Betts e Don Draper havia nascido há poucos dias e a filha mais velha deles, Sally, não reagiu bem à presença do irmão, Eugene. Não muito tempo antes do nascimento, o avô de Sally morreu enquanto passava uma temporada na casa de Betts e Don. O nome do avô? Eugene!

Embora Don seja um exemplo paradigmático do masculino e a série esteja centrada nos homens, Betts é também um caso perfeito de um paradigma, de um modelo do feminino do seu tempo — uma espécie de anti-Sylvia Plath, ou melhor, uma anti-Esther. E até a terceira temporada sua relação com Sally parece refletir os limites do que pode oferecer alguém demasiadamente encaixado no modelo que sua persona exemplifica. Betts tenta contornar a situação comprando um boneco (acho que o Ken, da Barbie) e dizendo a Sally que tinha sido seu irmão caçula quem o havia comprado para ela. Um modo comum de contornar preocupações infantis.

Nesse dia Don chega em casa e encontra o boneco no jardim de casa, lançado aí da janela. Ele pega o boneco e o coloca sobre a estante do quarto de Sally, enquanto ela dorme. Pouco depois, quando já está em seu quarto, Don e Betts escutam gritos de medo de Sally, gritos que acordam seu irmão recém-nascido. Esse é o contexto da cena abaixo.

A solução que Don encontra para, digamos, promover uma conciliação entre Sally e seu irmão é notoriamente feminina, aliás, como boa parte de seus atributos. Não se pode negar que Don Draper é bonito e charmoso, ou seja, que também tem atributos que não se reduzem ao feminino, mas estes atributos estão a reboque de outros mais centrais, que instrumentalizam o restante. Nesta situação Don não faz mais do que aproximar os corpos e reuni-los sob o manto do afeto e da intimidade: nada mais feminino. Isso não quer dizer que os homens não possam agir afetivamente, mas nos homens essa não é uma disposição natural nem social; é parte dos atributos próprios a Don, de sua idiossincrasia, saber mobilizar o afeto como parte de suas ações — para o bem e para o mal, diga-se de passagem. A mesma sensibilidade que o faz vulnerável à presença divina de Rachel Menken também o transforma num predador eficiente ante criaturas com menos predicados.

De qualquer modo, é comovente ver um caso tão emblemático do masculino manifestando a força (e a beleza) do feminino. Dá uma boa ideia do que podemos ser de melhor.

Espírito e dádiva

Certa feita ouvi o seguinte comentário ao final de uma palestra de Maria Rita Kehl que eu assisti no Youtube: “Ao expor suas ideias Maria Rita faz a gente se sentir mais inteligente”. Não lembro ao certo, foi alguma coisa assim. Desde então essa ideia volta constantemente, quase como o mapa da Hungria que alguém não pudesse tirar da cabeça (felizmente, ela não é a semente de um inferno possível — mas de algo bom). A ideia ficou na minha cabeça não apenas porque era verdadeira — um modo cuidadoso e bastante inteligente de apresentar uma característica marcante do modo de Maria Rita Kehl lidar com outras inteligências —, mas também porque é muito interessante.

Era como se ela pudesse dar sua inteligência. Não lembro o que então me fez pensar que dar inteligência era uma ideia boba. Na certa foi a impressão de que assim se desvalorizava inadvertidamente o papel dos componentes inatos que constituem o sistema cognitivo. A ideia de dar inteligência parece apresentar a inteligência como algo infinitamente plástico, universal e quase imaterial, como se não houvessem determinações biológicas, químicas, físicas, que fixassem limites pra aquilo que pode ser adquirido no ambiente. Não é um oba-oba. Mas essa é uma falsa impressão, dar inteligência não significa que todo mundo é potencialmente inteligente ou que todos partilham o mesmo espectro de inteligência. A inteligência é uma ideia elusiva, porque embora nós a padronizemos — usando, nos casos mais sofisticados, nossa própria inteligência como uma espécie de padrão — ela tem uma característica emergente, pois desestabiliza os próprios padrões. Pra quem pode apreciá-las, claro, pois se abrir a apreciação da inteligência tem um preço e é uma escolha. Desestabilizados os padrões, mudam também os resultados de nossas medições e estamos num novo mundo. Não é tão simples quanto eu apresento, mas o reconhecimento da inteligência (ser capaz de reconhecer seu caráter emergente, isto é, dispensar os padrões) nos leva a ter que aceitar a instabilidade que ela carrega, junto como o fogo de Prometeu.

Toda pretensão de medir exige uma certa regularidade no comportamento do que se mede, de outro modo a medição se torna impossível.

Apenas em casos normais o uso das palavras nos é claramente prescrito; não temos nenhuma dúvida, sabemos o que é preciso dizer neste ou naquele caso. Quanto mais o caso é anormal, tanto mais duvidoso torna-se o que devemos dizer. Se as coisas fossem inteiramente diferentes de como elas efetivamente são — não haveria, por exemplo, expressão característica da dor, do medo, da alegria. Fosse o que é exceção, regra e o que é regra, exceção; ou se ambas se tornassem fenômenos de frequência relativamente semelhante — com isso nossos jogos de linguagem normais perderiam o sentido (Witz). O procedimento de colocar um pedaço de queijo sobre uma balança e determinar o preço conforme uma escala perderia seu sentido se os pedaços com frequência crescessem ou diminuíssem repentinamente, sem causas óbvias.

Wittgenstein, Investigações filosóficas, § 142

A irregularidade do comportamento do que se deseja medir torna impossível que um padrão de medida siga em vigor, pois a irregularidade colapsa a condição de sua função normativa. Diante de novas situações, novos padrões devem ser forjados, novas normas. E daquilo que desestabiliza o uso dos padrões pode ser dito que tem um caráter emergente. A inteligência tem esse caráter emergente.

Tudo isso só pra dizer que não dá pra entender a inteligência pensando apenas em termos estritamente quantitativos, paramétricos e normativos. Não dá pra entender a inteligência com espectros. O caráter desestabilizador da inteligência é um ônus que acena a uma expressão familiar, a ideia de espírito.

O universo simbólico, que é o ambiente da inteligência, não se reduz a zeros ou uns. E é por isso que a palavra espírito recupera a riqueza simbólica dispensada pela pretensão de generalidade dos zeros e uns. No ambiente do espírito podemos retomar a consideração sobre a ideia de dar inteligência sem maiores restrições, porque a dádiva não é estranha ao espírito.

“Are you free and evil or blameless and helplessly enslaved?”
Aproveitam enquanto o Youtube não derruba vídeo, é a terceira temporada de Westworld.

A dádiva é uma atitude diante da inteligência do outro. A internet está cheia de exemplos de pessoas que são capazes de nos dar um pouco da sua inteligência. É claro que é mais didático mostrar isso em relação a temas que são interessantes, mas distantes do âmbito de competência da maior parte de nós, pobres mortais. Porque assim, pelo contraste, fica mais fácil ver o quanto se alarga nosso campo de visão, para usar uma analogia conveniente. Michael Nielsen imagina um exemplo que é uma verdadeira dádiva quando precisa explicar como funciona um perceptron, que é basicamente uma unidade numa rede de modelos de decisão (uma rede neuronal). Ele explica a construção dos modelos de decisão a partir do exemplo da decisão banal de ir ou não a um festival de queijo. Então ele monta o sistema com pesos diferentes atribuídos a três fatores determinantes para decidir se ir ou não ao festival: x1 Vai fazer bom tempo? x2 Seu namorado ou sua namorada vai te acompanhar? x3 Há algum transporte público até o local do festival (você não tem carro)? Um bom exemplo é uma dádiva de inteligência, assim como uma boa explicação.

O output é a decisão ponderada a partir do que foi determinado como peso de cada fator e do valor de cada input, 0 ou 1.

A dádiva torna possível que os outros, se quiserem, adentrem universos que pareciam inacessíveis. Não estou dizendo nada que ninguém não sabia, estou dizendo o óbvio. O difícil não é conceber que os espíritos têm o dom da dádiva e que a inteligência pode ser dada, duro é entender porque então, se nós sabemos disso, nem sempre aceitamos a inteligência que nos é oferecida? Não é simples responder a essa pergunta e eu acho que pra respondê-la de modo satisfatório seria preciso falar da relação entre poder e inteligência. Falar, por exemplo, sobre como o medo de ser idiota pode ter se tornado uma arma política tão importante e sintomática. Mas não quero falar sobre isso agora, então permitam que eu me atenha a uma certa reação quase natural que nós temos diante da inteligência. Um recuo, uma recusa é um reflexo quase instintivo diante da instabilidade que a inteligência carrega. Por isso a recusa é uma (decisão && escolha), se é que realmente podemos chamá-las assim. Há pessoas e situações que nos permitem acreditar no dizer da inteligência, como quem se permite ouvi um canto de sereia, mas quando somos confrontados com ela assim abruptamente, despreparados, recusamos prontamente seus convites. Recusamos a instabilidade que pressentimos.


A inteligência precisa oferecer algo de convidativo, precisa ser sentida como a cegueira que se segue a um forte clarão, para que olvidemos o chiado que emite a instabilidade que lhe acompanha (eu me pergunto se inteligência e instabilidade são duas coisas, ou uma só). Usei o exemplo de Maria Rita Kehl, da rede neuronal, mas há muitos outros. Outro bom caso é o desse camarada falando de Garota de Ipanema (e da ambiguidade da Bossa Nova). É notória sua formação técnica, sua competência no uso dos conceitos, mas, acima de tudo, a organicidade com que o domínio técnico se articula ao seu uso da linguagem natural. Ele está à vontade, pois sua inteligência é como que parte de seu próprio corpo. Isso potencializa enormemente sua capacidade de se comunicar, atrai e amplia inteligência alheia eclipsando o zumbido da instabilidade que a acompanha. Dá vontade de largar tudo e estudar música.

Mate todos os Outros

O último episódio de Electric Dreams é sublime e tristemente apropriado à circunstância em que nos encontramos no Brasil. É uma boa mostra do quanto a arte pode nos ensinar. O episódio também tem lugar durante uma eleição, a eleição do presidente do MEXUSCAN, um país fictício que engloba o território dos três países do norte num só. O cenário é futurista, como em todos os episódios da série. Vera Farmiga é a candidata em torno da qual tudo acontece e o personagem principal, Philbert, é o trabalhador de uma fábrica altamente robotizada. Salvo engano, só há três funcionários na fábrica. A medida que Philbert toca sua vida, enquanto acontecem os debates e entrevistas com a candidata (essa não se esconde!), pouco a pouco ele passa a ter a impressão quase delirante de estar vendo constantemente a mensagem “mate todos os outros”. Mensagem escrita, como em painéis publicitários, mas também falada, enunciada pela própria candidata. Ele pergunta aos seus amigos de fábrica e ninguém vê, ninguém sabe de nada, só ele. Até que num certo momento ele está parado no sinal e vê uma mulher sendo perseguida. Ele não entende aquilo, pessoas de todos os tipos, raças, cores perseguindo uma mulher como se quisessem linchá-la, o que poderia ter acontecido? Ele sai do carro e vai ajudá-la. E quando pergunta àquelas pessoas o motivo da perseguição, ouve como resposta “Ela é um outro!” Sem entender o absurdo dessa justificativa, ele evita que eles sigam agredindo a mulher e por isso um dos perseguidores diz: “Ele também é um deles”, um outro. Daí em diante ele mesmo começa a se questionar se é ou não um Outro, seus amigos passam a suspeitar que ele seja e o episódio segue essa tônica paranóica.

O importante disso tudo é essa conversão do “outro” numa identidade, num rótulo que pode ser aplicado a qualquer pessoa, sem nenhum critério*. E é exatamente essa plasticidade o que permite que o rótulo “outro” seja aplicada a qualquer um, tornando-se assim um instrumento de intimidação usado para coagir pessoas que não agem de acordo com os padrões do grupo. Quais são os padrões? Não importa, quanto mais indefinido melhor funciona. Se o rótulo for abstrato o bastante, vago o bastante, não importa as ações e comportamentos que caracterizam as pessoas que fazem parte desse grupo inimigo, pois assim sempre se pode moldá-lo de maneira a incluir novos tipos. Se a ação for vista como ameaçadora, a pessoa é imediatamente convertida em outro, isto é, ela é rotulada como parte de um grupo de pessoas com as quais não nos identificamos. O Outro passa então a ser um elemento de fortalecimento da identidade nacional na exata medida em que se identifica um inimigo comum contra o qual lutar. Um inimigo que une todas as pessoas, apesar de suas diferenças. Os Outros, esse grupo amorfo e sem características, é manipulável e por isso politicamente útil para fins de controle e dominação. Um dos muitos momentos brilhantes de Freud é quando ele desvela o que está por trás dessas dinâmicas de identidade que permitem agregar pessoas em grupos e dar a elas um sentido de união.

Evidentemente não é fácil, para os homens, renunciar à gratificação de seu pendor à agressividade; não se sentem bem ao fazê-lo. Não é de menosprezar a vantagem que tem um grupamento cultural menor, de permitir ao instinto um escape, através da hostilização dos que não pertencem a ele. Sempre é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que restem outras para que se exteriorize a agressividade. Certa vez discuti o fenômeno de justamente comunidades vizinhas, e também próximas em outros aspectos, andarem às turras e zombarem uma da outra, como os espanhóis e os portugueses, os alemães do norte e os do sul, os ingleses e os escoceses etc. Dei a isso o nome de “narcisismo das pequenas diferenças”, que não chega a contribuir muito para seu esclarecimento.

Freud, O mal-estar na Civilização

Por meio da agressividade dirigida a um inimigo comum (mesmo que seja imaginário, como em 64 ou agora) se fortalecem os laços entre os indivíduos e é possível dirigi-los a uma guerra em nome da pátria ou do que quer que seja. Não é possível nem mesmo chamar esse tipo de estratégia de efeito colateral do identitarismo, ele é sua própria essência, só que aplicada num outro sentido. O identitarismo é uma estratégia de ação política.

De olho no poder, atores supostamente democráticos aceitaram circular a oportuna simplificação de que o PT é a causa de todos os males do Brasil. Apagaram as nuances para poder dar força simbólica a essa versão e afastar seus aliados da zona de perigo. Anos depois, a simplificação colou até o ponto de alimentar a maior identidade do país, o anti-petismo. O anti-petismo não é uma posição anti-corrupção — a maior parte dos partidos e políticos acusados de corrupção já declararam apoio a Bolsonaro —, é apenas o elo abstrato que une essas pessoas num rebanho e que lhes dá uma esperança de mudança, mesmo que essa esperança não tenha nenhuma razão de ser. É a identidade com que as pessoas serão instrumentalizadas a lutar contra o inimigo até que, muitos anos depois, percebam que as promessas em nome das quais foram mobilizadas eram na verdade um engodo. Só que então será tarde demais. Até lá, aqueles que apostaram nessa identidade a fim de criar as condições para poder dar vazão à agressividade e à violência que trazem dentro de si já terão matado e agredido muitos Outros e imposto o medo em nome de uma paz farsesca.

O Brasil está prestes a experimentar um novo tipo de medo, um medo inédito. Ao medo comumente experimentado em razão da falta de segurança nas ruas — que nunca será mitigado pelo incremento da violência e da vigilância — se somará o medo atroz da arbitrariedade autorizada pela eleição de um fascista (antes ao menos tínhamos ao nosso lado a certeza de uma ruptura institucional). Esse medo afligirá, sobretudo, os Outros, isto é, as pessoas cujo comportamento pode ser visto como inadequado pelos homens de bem que se sentirão autorizados, pela figura simbólica de um presidente, a julgar e executar qualquer ação que, segundo critérios arbitrariamente estabelecidos, comprometa a integridade da nação e dos valores nacionais. Essa é a receita da paz e da união do autoritarismo, o silêncio e a intimidação. Quem serão esses Outros?


* “Outro” deixa de ser uma palavra que designa uma diferença, a partir de uma identidade, para funcionar como o próprio critério negativo da identidade. Por exemplo, quando uso a palavra “corintiano” estou empregando uma identidade a partir do que identifico quem são os outros. Mesmo um conceito tão geral quanto “mulher”, cujos contornos são imensamente disputáveis, deixa ver um conjunto de outros que não fazem parte desse grupo e que, por assim dizer, se derivam dessa identidade. Portanto, no uso normal da palavra “outro”, é como se se estabelecesse primeiro o que está dentro do grupo (da identidade) e só depois os outros se revelassem enquanto tal. Nesse episódio a identidade do grupo nacionalista em questão se constitui negativamente, isto é, a afirmação da identidade não vem primeiro, pelo contrário. A identidade se constitui pela constante busca e identificação dos outros que não fazem parte do grupo e que, por isso, devem ser eliminados. Como a identidade é definida em negativo, por exclusão, as pessoas nessa sociedade vivem o constante terror de serem identificadas com o grupo inimigo. Um grupo que não tem nenhuma identidade, que é a pura arbitrariedade (o contrário da determinação) do ato de identificar o inimigo. E assim se instaura o reino da intimidação, do medo de ser identificado e perseguido como inimigo.

Westworld: identidade e fidelidade

Luciana Coelho publicou uma resenha sobre a segunda temporada de Westworld e me deu vontade de fazer o mesmo. Luciana é a única pessoa que eu leio, e em quem confio, escrevendo sobre séries (salvo a opinião dos amigos, claro).

Não preciso dizer que tenham cuidado com os spoilers.

Gostei muito da primeira temporada de Westworld, escrevi sobre algumas das ideias que me fascinaram, especialmente sobre liberdade e determinismo. O ponto alto da temporada é quando Dolores condescentemente escancara a decadência de Bill. Ela fala como a representante do futuro, daquilo que virá para substituir a prepotência e fragilibidade encarnada na sua figura e no seu império e para colocar em seu lugar algo diferente. Há outros momentos interessantes, mas esse me pareceu o mais marcante, pois é uma imagem interessantíssima da metamorfose que leva William a transformar-se (ou a reconhecer-se, em realidade) como um jogador inescrupuloso, Bill, que não consegue ver a vida senão como um jogo a ser vencido — e ele vence, em certo sentido.

A segunda temporada é oscilante, tem seus altos e baixos. Acho que algumas atuações são nada menos que lastimáveis. Às vezes a série parece perdida num turbilhão de temas e questões cuja conexão não é exatamente clara. A tentativa de fazer ver que o roteiro geral que orienta os hosts se adapta às diferentes culturas, sem perder seus eixos gerais, me parece mal feita, para dizer o mínimo. Chata, pra ser honesto. Mesmo que Maeve seja um dos personagens da série que mais inspira empatia. Apesar disso, certos temas e alguns episódios me fizeram cativo. O principal deles a tentativa de construir (ou reconstruir) a identidade dos visitantes.

Em certo momento ficamos sabendo que Westworld é na verdade um grande experimento e que os atrativos que aquele mundo oferece não são mais do que ensejos para que se produza aquilo em que o parque está verdadeiramente interessado. O parque em realidade se propõe a tentar copiar a identidade dos seus visitantes, a desenvolver essa capacidade tecnológica, e para isso é preciso que eles se mostrem como verdadeiramente são, isto é, que eles se livrem de suas máscaras. Isso por si só já é uma tremenda questão. Se aquilo que nós somos só se revela em nossas ações, em ações livres de constrangimentos sociais (normativos), é como se a série optasse pela posição de Nietzsche no dilema que eu discuti num post chamado: nossas paixões ou nossas ações nos definem. Não é como se a identidade fosse uma essência, escondida no interior de nossa alma. Ela se revela inteiramente na variedade de nossas ações, de tal maneira que é possível reconstitui-la, copiá-la, mediante o emprego de certas técnicas. Se prestarmos atenção, no entanto, veremos que esse modo de entender a identidade tem algo de híbrido. É verdade que a série trata a identidade como algo estreitamente vinculado à ação e ao comportamento, portanto, parece se afastar de perspectivas mentalistas, subjetivas e essencialistas sobre a identidade. Mas ao mesmo tempo a proposta de reduzi-la a uma espécie de algoritmo parece semelhante à ideia de essência, guardadas certas diferenças. Um algoritmo é um código que resolve um conjunto indeterminado de problemas, nesse caso concreto, o algoritmo que copia a identidade de uma pessoa X resolve o seguinte problema: como essa pessoa X reagiria às situações S1, S2, S3…? e assim por diante. Parece como se o algoritmo fosse algo semelhante a uma essência, algo que se conservaria a despeito das mudanças e variações futuras.

O algoritmo que tenta reconstruir a identidade de um visitante precisa ser capaz de fazer a cópia reagir em determinada situação tal como reagiria o original copiado, por isso é constante na série a menção à ideia de fidelidade. A fidelidade é a um outro modo de tratar a identidade. Em computação a ação de verificar a identidade entre dois arquivos (ou a fidelidade entre eles) é um recurso de segurança, e isso se faz geralmente aplicando um algoritmo que gera uma hash única para determinado arquivo. Se o arquivo tiver sido copiado sem modificação (sem adição intrusiva de um código malicioso, por exemplo), a aplicação do algoritmo à copia do arquivo produzirá como resultado a mesma hash (md5sum é um conhecido verificador). No caso da identidade/fidelidade da cópia de um visitante, a verificação se dá pelo confronto direto, esse é o caso da relação entre William (Bill) e James Delos, um dos primeiros a ser a copiado. (Bem, pelo menos até que a gente descubra que Bernard é uma cópia de Arnold cuja identidade foi verificada pela própria Dolores, que virada!) William aparece reiteradamente para Delos, que está enclausurado num espaço repetindo indefinidas vezes uma mesma rotina, talvez a fim de tentar aperfeiçoar sua identidade. William aparece para conversa com Delos em diferentes épocas ao largo da temporada. Delos sempre o recebe com uma indisfarcável ansiedade para se ver livre da situação e questiona o propósito daquela conversa que retarda sua liberdade, a resposta de William é sempre a mesma: fidelidade. Quando William parece fugir do script e confrontá-lo, revelando a razão da conversa, a cópia de Delos tem uma espécie de sobrecarga e revela suas deficiências. Ele não é sequer capaz de articular um discurso. Embora seu gestual pareça reproduzir fielmente o comportamento explosivo e dominador de Delos, sua expressão verbal não acompanha suas emoções e fica evidente que o experimento falhou.

A série lida com temas muito interessantes e suscita questões de todo tipo, questões que às vezes estão colocadas para profissionais que lidam com tecnologias semelhante às apresentadas na série ou pelos teóricos que refletem sobre esses usos tecnológicos ou outros aspectos de fundo. Para mim, uma dessas questões é: a possibilidade de reduzir a identidade de uma pessoa a um algoritmo não supõe em certa medida a impossibilidade de mudança? Isto é, não supõe que a identidade é algo fixo e imutável e que nossas ações não podem escapar às determinações dessa essência? Talvez esse seja o sentido da negação da liberdade que a série sugere em algum ponto da sua parte final, mas ainda assim essa parece ser uma questão espinhosa. Outra questão seria: a redução da identidade a um algoritmo que garante a fidelidade do padrão de comportamento de um pessoa tem algum valor se não for possível copiar também as suas memória originais? Na segunda temporada a série passa à margem, ou pelo menos não se aprofunda, no tema da relação entre memória e identidade, tema que foi fantasticamente abordado na primeira temporada. (O papel da memória na gênese da consciência dos hosts e a função do labirinto nesse quadro de imagens sugere que os roteiristas, ou seus assessores, tem uma relação familiar com temas da filosofia da consciência; eu bem gostaria de escrever sobre esses temas, embora saiba muito pouco sobre eles). As cópias parecem ter pelo menos algum tipo de backup cuidadosamente selecionado da memória dos originais. Bernard, por exemplo, tem como a sua cornerstone a morte do filho e esse é um dos elementos mnémicos herdados de Arnold. Mas a série não aborda como isso se dá, já que essa cópia não pode ser feita por meio de algoritmos (ou seja, não é tecnicamente possível, embora livros, desenhos [e filmes] como Ghost in the shell sugiram essa ideia e nos apresentem como espíritos que pode ser transplantados para diferentes shells). Esse é um dos pontos mais espinhosos de certas discussões sobre modelos de consciência. Nossa tendência quase natural é pensar a memória como dados inscritos no nosso hardware (cérebro), mas essa metáfora, embora útil em muitos sentidos, tem uma dificuldade insuperável que é a necessidade de supor uma linguagem ou “código” em que a memória se inscreve na fisiologia. (Em breve quero escrever sobre essa tendência, natural em nosso contexto tecnológico, de enxergar o humano como um mero agregado de dados ou uma máquina de processamento de dados.)

Se Deus pudesse ver dentro de nossas mentes (Seelen), ele não poderia saber de quem nós estamos falando. — Wittgenstein, Investigações Filosóficas, 284

Nenhum questionamento ou dificuldade lhe desabona, é um imenso mérito da série trazer temas abstratos, afastados da nossa vida, e apresentá-los em situações concretas (ainda que fictícias) para que avaliemos seus efeitos éticos e políticos. Esse é, aliás, o mérito do cinema, bem como das séries de maneira geral, eles tornam palpável e concreto aquilo que mesmo quem está familiarizado com discussões abstratas ou técnicas nem sempre consegue exemplificar (e explicar). A abstração é um obstáculo ao entendimento que foi legitimado pela compreensão de que exemplos e imagens são dispensáveis — muletas, para lembrar de Kant — que devem ser preteridas por quem não tem dificuldade em julgar. As artes visuais tem muito que nos ensinar e deveriam ser instrumentos essenciais em qualquer processo de ensino e aprendizagem. Westworld não apenas nos ensina, nos estimula a aprender e a refletir.

Os androides em Westworld são livres? Nós somos livres?

Spoiler alert: O texto contém (poucos) elementos informativos sobre questões importantes na série.

Se tudo que você tivesse a intenção de dizer fosse simultaneamente impresso na tela de um tablet, se todas as suas falas, passadas e futuras, fossem apresentadas para você numa espécie de timeline, como é que você justificaria pra si mesmo a ideia de que é livre? Se alguém fosse capaz de escrever um uma rotina, um algoritmo que antecipe todas as suas falas, em todas as situações, você seria livre? Eu não estou dizendo que já sejam capazes disso, estou apenas apresentando um caso imaginário. Sei lá, se existisse um algoritmo que pudesse ser aplicado ao banco de dados que o Facebook tem de nós, ou que o Google tem. O Spotify sabe muito sobre mim. Bem, então nesse caso nós seríamos apenas dados. É um pouco isso do que trata o documentário Terms and Conditions May Apply:

O mercado do Marketing digital vale milhões. O documentário da PBS, The human face of Big Data, apresenta o caso de um homem que foi reclamar com uma empresa que havia enviado folhetos indesejados a sua casa. Folhetos de promoções com anúncios de fraldas, algodão, material desse tipo. O homem não queria que a filha fosse influenciada (encorajada) a engravidar por esse tipo de publicidade e por isso fez a queixa. Pois acontece que a publicidade era orientada por data-mining, por análises baseadas em informações armazenadas em banco de dados. Nesse caso, foram analisados (e encontrados) padrões de busca e de compras que procediam da sua rede doméstica e foram enviadas ofertas de acordo com eles. A menina (sua filha) começou um novo padrão de consumo, relacionado à gravidez até então desconhecida pelo pai, e os computadores dirigiram a publicidade a este segmento comercial sem qualquer intenção, porque não pensam. E acertaram! Depois que se inteirou da gravidez então desconhecida, o homem desculpou-se com a empresa que lhe enviou os anúncios. Não lembro qual era a fonte dessa mineiração (se a base de dados de alguma loja de departamento ou de alguma empresa de cartão de crédito), mas é algo semelhante o que aconteceu com o caso da Cambridge Analytica, na eleição de Trump. (Esse caso é mencionado também em Terms and conditions)

Se tudo sobre nós pode ser antecipado, nós estamos num mundo determinístico e não há liberdade. Todas nossas ações podem ser remetidas alguma causa anterior — conhecida ou desconhecida — que as explica e que em tese poderia ser determinada usando certo algoritmo aplicado às informações apropriadas. Talvez quando estivermos produzindo informação na escala apresentada por filmes como Ghost in the shell, quando a internet das coisas estiver de tal modo incorporada ao dia a dia que até as nossas roupas estarão conectadas (se é que isso vai acontecer), talvez nenhuma informação escape à análise dos algoritmos e parecerá então o fim da liberdade. Seremos gestionadas como robôs. Mas talvez algo escape e isso me parece importante. A liberdade não se opõe ao determinismo causal, à ideia de que nós podemos ser controlados uma vez conhecidas as variáveis que nos condicionam. A liberdade é apenas a ideia de que algo simplesmente não pode ser reduzido a esse esquema causal, por mais poderoso que ele seja. E esse algo irredutível corresponde a intencionalidade (por oposição ao reino extensional com que se ocupa a ciência) . A intenção pode ter uma expressão e, portanto, pode também estar sujeita à análise, mas ela não é redutível à expressão. Por exemplo, vamos imaginar uma situação simples envolvendo, não um humano, mas um animal, um gato.

Você consegue ver sua intenção?

Um gato que se esgueirasse atrás de uma presa qualquer poderia expressar a intenção de comê-la, mas em certo sentido essa intenção pode existir mesmo que não tenha expressão. Nós poderíamos tentar reduzir essa intenção a algum elemento objetivo, com o propósito de antecipar sua expressão e realizar assim o propósito científico de reduzir tudo ao extensional, isto é, a uma questão de verdade. Por exemplo, poderíamos pensar que a intenção é uma consequência da fome (sua causa). E assim determinaríamos o estado fisiológico da fome (sei lá, identificando baixos níveis de glicose no sangue) a fim de tentar estabelecer uma correlação entre a objetividade dos indicadores de fome e os atos e ações que manifestam a intenção. Ainda assim, mesmo que aceitemos que a fome poderia ser a causa da intenção, isso não significa que a relação entre a fome e a expressão da intenção (indicador de sua existência) seja como a relação entre a fome e os baixos níveis de glicose. Não é como se um determinasse o outro. Aliás, vejam só, nós falamos que gatos tem intenção, mas como? Eles pensam? Eles tem uma subjetividade? Em realidade nada disso importa, pois nós apenas projetamos em seu comportamento uma intencionalidade ao enxergá-lo como se estivesse num jogo no qual suas ações respondem a ações anteriores, a desejos e propósitos que as animam. Como no xadrez. Você vê o adversário reunindo peças do lado esquerdo e pensa que ele tem a intenção de atacar seu rei antes que você faça o roque. Ver as coisas desse modo não significa vê-las como a ciência as vê, numa relação de causa e efeito, significa vê-las segundo a lógica de razões. Você vê o movimento do gato e o explica a partir de um razão (sua intenção) e não de uma causa. Voltamos ao exemplo do xadrez: Deep blue não viu as intenções das jogadas de Kasparov, ele apenas calculou seus movimentos*. Estou insistentemente tentando destacar dois registros diferentes: o registro causal no qual uma máquina pode operar calculando possibilidades usando um poderoso sistema de computação capaz de prever os lances possíveis, e o registro intencional ao qual os humanos tem acesso mas a máquina não. Mas o que é que tudo isso tem a ver com a liberdade?

A liberdade é esse espaço irredutível ao controle causal, ao cálculo de possibilidades que poderia ser determinado usando um robusto sistema computacional. Isso não significa que nossa liberdade não esteja inevitavelmente misturada, entretecida ao emaranhado causal, apenas que ela (pode) não se reduzir a nenhuma regra. O que me fascina em Westworld não é que a série ameace a nossa liberdade ao permitir que nos perguntemos, no atual contexto tecnológico, se todas as nossas ações já não podem ser determinadas uma vez que as grandes empresas tem um estoque incomensurável de informações sobre nós. O que fascina na série é justamente o contrário: a tendência a ver no impulso de autodeterminação dos androides o próprio germe da consciência, que nos leva a perguntar seriamente: será que eles não são como nós? A partir de quando podemos dizer que eles são como nós, ou por que não poderíamos dizê-lo? A série nos convida a sentir um enorme respeito por essa vontade de se determinar até o ponto em que nos questionamos se aqueles robôs não são, em alguma medida, também humanos. E isso é liberdade. Um espaço de indeterminação perfeitamente compatível com um mundo determinístico.

PS. Bem, eu estou tratando como se o mundo determinístico fosse um ponto pacífico, mas a verdade é que enquanto a física quântica não puder ser compatibilizada com certos aspectos da física clássica, o sonho da determinação absoluta não será mais do que isso, um sonho.

* Quando você pode ver múltiplas possibilidades e tem capacidade de armazenamento, é possível propor uma infinidade de hipóteses para as jogadas possíveis num jogo de xadrez. Cada novo lance do jogo vai confirmando certas hipóteses e descartando outras. É como se o computador dissesse pra si mesmo: “Então ele quer fazer isso e não isso”. Mas o tratamento computacional do jogo é meramente hipotético e não intencional. Ele não vê as jogadas do homem como manifestações da sua intenção, ele as enxerga como dados que vão alimentar sua base de dados, de modo a contribuir para confirmar ou refutar certas hipóteses sobre a estratégia do jogo de seu adversário. É essa diferença é que é fundamental.

A falta de alguma certeza pode levar à loucura?

ALERTA: o texto contém spoilers do capítulo 8 da primeira temporada de Mr Robot.

https://www.youtube.com/watch?v=fgNv76x_PCc
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“Se você realmente sabe que esta é uma mão, nós te garantiremos todo o resto”. O que significa essa enigmática frase, a primeira do livro Sobre a certeza, de Wittgenstein? Significa que as certezas são como as cartas na base de um castelo de cartas. E o exemplo utilizado para ilustrar uma certeza é a proposição “Esta é minha mão”. Se essa carta não estiver lá embaixo, se alguém retirá-la dali, todo o resto cai. No entanto, uma certeza não é um conhecimento! Ela é algo óbvio, que justo pelo fato de ser óbvio nós quase nunca notamos ou expressamos. Imagine que eu estivesse diante de você e dissesse: “Está é minha mão”. Você certamente perguntaria o que eu quero dizer com isso. É possível fantasiar e imaginar um contexto no qual essa frase tenha algum sentido, mas na maioria dos casos ela não tem. As certezas (o que é óbvio) não precisam ser mencionadas, porque elas estão sempre manifestas nas nossas ações e expressões, como condições (indeterminadas) de todos os usos significativos da linguagem.

Talvez essas distinções fiquem mais claras se aplicadas a um caso concreto. E aqui entra o fragmento de Mr Robot que eu coloquei acima. (A cena em que Elliot beija sua irmã.) Até quase a metade da cena Elliot reage normalmente. É importante realçar esse aspecto pragmático: ações, reações, atitudes — as certezas que nós temos ou não temos se manifestam fundamentalmente em nossas ações. Ele é capaz de responder a um chamado, interagir, elaborar frases complexas, manifestar desejo, reconhecê-los, toda uma série de ações e reações que identificamos em pessoas  “normais” em contextos em que a linguagem está sendo utilizada. Quando tudo isso muda? Quando ele perde sua capacidade de reação? E o que provoca isso? Tudo muda quando ele dá o beijo. Como o beijo pode ser o catalisador de uma mudança tão grande na sua percepção de si mesmo e na percepção que as outras pessoas têm dele? Como um beijo pode fazer com que ele e os outros pensem que ele pode estar louco? O beijo mostra que ele não tinha uma certeza: a certeza de que ele estava diante de sua própria irmã. Na maioria das situações o verbo saber atrapalha mais do que ajuda, porque nós tendemos a dizer que ele não sabia que ela não era sua irmã. Mas não. Não é que lhe faltasse um conhecimento, o que lhe faltava era uma certeza. A falta de certos conhecimentos nos leva a produzir afirmações falsas e agir de acordo com elas, mas a falta de algumas certezas nos leva a agir como loucos. O conhecimento (e a ciência) está associado ao binômio verdadeiro e falso — a certeza, por sua vez, está relacionada ao binômio sentido e o nonsense, e por isso também não raras vezes se associa ao par razoável e louco. A certeza é o fundamento de toda a linguagem e de todo o conhecimento, ela é tão fundamental que a própria dúvida pressupõe a certeza (só pode duvidar quem tem alguma certeza, quem não tem certezas não tem “objetos” aos quais aplicar a dúvida). Sem algumas certezas, nós não somos ignorantes, não estamos errados, mas corremos o risco de ser taxados de loucos.

Esse trecho de Mr Robot é muito interessante porque ilustra as consequências práticas da falta de uma certeza fundamental. Ele nos permite compreender de maneira muito clara que nossas ações se determinam segundo as coisas que nos parecem óbvias — e que algumas coisas têm que ser óbvias. Para todo mundo que estava assistindo o episódio o beijo de Elliot pareceu então perfeitamente significativo, normal — pois não supunha nada demais. Pensamos: “Ele se encantou por Darlene e, num determinado contexto, assumiu uma atitude mais ousada”. Mas até aquele instante o espectador, como o próprio Elliot, não sabia que Darlene era sua irmã. O espectador, no entanto, tinha razões para não ter um certo conhecimento (“não nos foi apresentado nada que nos fizesse supor um vínculo de irmãos entre eles”, seria uma razão sólida). Que razões alguém pode oferecer para, em circunstâncias normais  (sem estar drogado ou coisa que o valha), não ter a certeza de estar diante da própria irmã mesmo depois de ter falado com elas por dias a fio? As cenas que se seguem mostram Elliot pensando quase convulsivamente. Que prova mais incontestável de que estamos ficando loucos do que passar dias falando com uma pessoa sem reconhecê-la como alguém tão próximo como sua própria irmã? É uma mísera certeza, mas sua perda produz efeitos tremendos.

PS. É claro que pensar certezas nessa chave ajuda a entender a loucura desde um ponto de vista lógico (sistêmico). Seria possível até arriscar uma representação topográfica de um sistema de certezas, mas bem, não vou chegar a tanto. O caso é que certas excentricidades estão sempre no limite da loucura, porque elas nos fazem questionar e refletir sobre a própria ideia de realidade.