Lie to me

L

Descobri por acaso o seriado Lie to me, da FOX. Temi prontamente que meus numerosos fantasmas se multiplicassem. Sou homem da seguinte qualidade: se me levanto da mesa para ir ao banheiro do bar ao lado, portanto, para cometer o crime incofessável de me servir de préstimos pelos quais não paguei, vai se adensando em mim, tão logo eu me ponho de pé, a sensação de que cada ser vivo naquele espaço conhece meu maligno intento. Os garçons me olham com olhos de reprovação e seguem meus passos para verificar o já sabido. Mas eu insisto, pois já faz tempo desde que aprendi a lidar com os fantasmas da paranóia e da obsessão. (Nota: essa história me faz lembrar uma tirinha de Wagner & Beethoven. Muito engraçada! O pesadelo de todo paranóico). Parece até perigoso registrar assim publicamente tais comportamentos. Nunca se sabe quando um psiquiatra, numa pesquisa pouco ortodoxa pela internet, aportará por aqui. Temo as consequências de sua avaliação. Uma intervenção não se encaixa propriamente nos meus planos para o futuro.

Bem, a série tem um cenário interessante: um cientista e sua equipe aplicam os resultados de uma teoria que identifica relações entre sentimentos, emoções, significados e microexpressões. É como se cada microexpressão estivesse ligada ou a uma manifestação anímica segundo uma tábua ou um código previamente definido. Aqui se esclarece a relação entre as minhas paranóias e o seriado: imagine o efeito, para um sujeito viciado em significações, da possibilidade de que cada gesto, por menor que seja, comporte significados redutíveis a um certo padrão.

Eu mal tenho ouvido o que as pessoas falam comigo, no desajuste inicial da tentativa de sincronizar a atenção dirigida a fala e aos sinais expressivos do rosto e das mãos. É por essas e outras que são se deve deixar as crianças muito tempo em frente à TV.

Mas há certos embaraços na série. Obstáculos que talvez a condenem a um vida breve em meu HD. Primeiro, não consigo imaginar variações significativas para o que se apresentou nos primeiros episódios, assim, talvez a série logo se torne monótona e repetitiva. No entanto, essa incapacidade imaginativa pode ser um sintoma da minha incompetência como roteirista — o que é bem provável; espero que seja o caso, para minha felicidade de expectador. Segundo, a premissa da série me desconforta. Claro, é preciso considerar que há contextos auxiliando o estabelecimento das relações entre as expressões e os sentimentos e emoções. Ainda sim, soa estranho. É aquele velho estranhamento diante de tudo que parece determinismo.

Quer dizer, como é que se chega a relação entre uma determinada expressão e um sentimento? Ora, a ciência está sempre no lastro dos cálculos estatísticos com os quais ela pensa poder se livrar do velho problema da indução. Os cálculos estatísticos, contudo, deixam um espaço — às vezes quase desprezível — que se alarga substancialmente quando o terreno em que eles se instalam é contíguo ao domínio do liberdade. Se a ciência não pode mais falar das coisas de modo absoluto e universal, suas proposições estão condenadas a certa contingência bastante aceitável, que não suprime sua operacionalidade, no entanto, que é o bastante para lançar pesadas dúvidas sobre métodos que pretendam estabelecer elos entre sentimentos e manifestações expressivas. Se um determinado fenômeno no corpo, expressivos ou bioquímico, por exemplo, é associado a um certo sentimento ou emoção, como lidar então com esse espaço de contingência que na ciência não se pode afastar. Quer dizer, e se aquela teoria for afastada ou renovada, ou completamente descartada, como foram tantas outras no passado? O contexto, em muitos casos, pode tornar indubitável a aplicação de uma teoria — ou, como acontece algumas vezes na série, levar a uma confissão –, mas em outros casos não. Em alguns deles a reformulação da teoria resulta numa mudança de diagnóstico, de resultado.

É difícil que uma ciência sempre em transformação possa fornecer dados que se pretendam, de alguma forma, universais. Se não são universais, mas cambiáveis, como ficarão os diagnósticos, enfim, o produto de sua aplicação, no intervalo de uma mudança de paradigma? Esses métodos só podem ser coadjuvantes, instrumentos secundários, circunstânciais, embora possam ser decisivos para criar o contexto em que uma confissão é quase inevitável. A série, portanto, inverte os papéis, e torna protagonista o que só pode ser coadjuvante. Curioso que nos primerios episódios aconteça uma crítica ao caráter linear das leituras dos detectores de mentiras. De algum modo é uma crítica semelhante a que alguém poderia dirigir a própria pretensão de uma teoria das microexpressões.

PS. Vocês viram, o post começou bem, trivial, e acabou descambando para a velha pauta de conversas de estudantes em mesa de bar. Vocês me perdoem. @@@

Lie to me também é o nome de um excelente CD de um ex-futuro possivel ícone do blues, Johnny Lang, que chegou a vir ao Brasil no longínquo ano de 1999, pro finado Free Jazz Festival (hoje Tim Festival, certo?).

Atualização 1 – Assim se resume a ópera, para que a gente não confunda dois pontos distintos: 1) Como lidar, no que se refere a atribuição de significado às expressões, com o fato de que a generalização que instaura a relação entre expressão e significado não consegue eliminar a possibilidade de uma outra relação significativa? Com a possibilidade de que uma expressão facial qualquer, ao contrário de denotar mentira, denote medo? Essa possibilidade nunca está completamente afastada nas proposições científicas — se há então a menor espaço que seja para dúvida, como tomar essas proposições a base para ações? 2) Como ficam as relações significativas diante de uma mudança de paradigma?

Atualização 2 – Esqueci de passar o link para quem quiser assistir a série. Cliquem aqui.

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