Estar à vontade

Semana passada eu saí com o pessoal do meu novo trabalho, a empresa montou o que se conhece como um Team building. Na atividade espontânea do final de um dos dias, tomamos muitas cervejas num bar e fomos até um karaokê continuar enchendo a cara. Depois de muitas doses de licor, gin tonic e toda a sorte de bebida o ambiente e as pessoas eram outras. É uma platitude surpreendente constatar o quanto de inibição nos reprime, o quanto ela afeta nossas relações. (Isn’t it a pity?)

Isso me lembrou o maravilhoso Mais uma rodada, filme que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2021. A premissa do filme é a ideia do psiquiatra norueguês Finn Skårderud que alega que nós temos um pequeno deficit de álcool no sangue (0,05%), de tal maneira que, uma vez compensando esse desequilíbrio, nós nos sentiríamos mais à vontade e mais relaxados. O filme é a deliciosa exploração dos efeitos do experimento de tentar corrigir esse deficit, um elogio ao álcool — a droga socialmente mais aceita na Europa — e à sua orgânica ligação com a cultura dos países escandinavos.

Nos meus utópicos delirantes sonhos cosmopolitas não há nada tão importante quanto cultivar (cultura) um ambiente onde os outros possam se sentir a vontade para serem quem são, para descobrir quem são — esse é o espaço da amizade. (Ser o solo onde o outro pode medrar.) Enquanto esse lugar (topos) não chega, acho que vale a ajuda do álcool ou de qualquer outra substância.

O lado feminino de Don Draper

A situação era a seguinte: o terceiro filho de Betts e Don Draper havia nascido há poucos dias e a filha mais velha deles, Sally, não reagiu bem à presença do irmão, Eugene. Não muito tempo antes do nascimento, o avô de Sally morreu enquanto passava uma temporada na casa de Betts e Don. O nome do avô? Eugene!

Embora Don seja um exemplo paradigmático do masculino e a série esteja centrada nos homens, Betts é também um caso perfeito de um paradigma, de um modelo do feminino do seu tempo — uma espécie de anti-Sylvia Plath, ou melhor, uma anti-Esther. E até a terceira temporada sua relação com Sally parece refletir os limites do que pode oferecer alguém demasiadamente encaixado no modelo que sua persona exemplifica. Betts tenta contornar a situação comprando um boneco (acho que o Ken, da Barbie) e dizendo a Sally que tinha sido seu irmão caçula quem o havia comprado para ela. Um modo comum de contornar preocupações infantis.

Nesse dia Don chega em casa e encontra o boneco no jardim de casa, lançado aí da janela. Ele pega o boneco e o coloca sobre a estante do quarto de Sally, enquanto ela dorme. Pouco depois, quando já está em seu quarto, Don e Betts escutam gritos de medo de Sally, gritos que acordam seu irmão recém-nascido. Esse é o contexto da cena abaixo.

A solução que Don encontra para, digamos, promover uma conciliação entre Sally e seu irmão é notoriamente feminina, aliás, como boa parte de seus atributos. Não se pode negar que Don Draper é bonito e charmoso, ou seja, que também tem atributos que não se reduzem ao feminino, mas estes atributos estão a reboque de outros mais centrais, que instrumentalizam o restante. Nesta situação Don não faz mais do que aproximar os corpos e reuni-los sob o manto do afeto e da intimidade: nada mais feminino. Isso não quer dizer que os homens não possam agir afetivamente, mas nos homens essa não é uma disposição natural nem social; é parte dos atributos próprios a Don, de sua idiossincrasia, saber mobilizar o afeto como parte de suas ações — para o bem e para o mal, diga-se de passagem. A mesma sensibilidade que o faz vulnerável à presença divina de Rachel Menken também o transforma num predador eficiente ante criaturas com menos predicados.

De qualquer modo, é comovente ver um caso tão emblemático do masculino manifestando a força (e a beleza) do feminino. Dá uma boa ideia do que podemos ser de melhor.

À sua imagem e semelhança, Ex Machina

Ex Machina é uma crítica a um só tempo feroz e sofisticada à masculinidade. Entre outras coisas, claro. Dois tipos de homens são apresentados no filme, dois exemplares, casos de regras muito gerais e vagas, mas que ainda assim perfazem claramente tipos distintos. O primeiro é um nerd solitário (Caleb) em cujo histórico de navegação podemos encontrar um padrão de mulher, um tipo de mulher recorrente em suas buscas em sites pornôs. A gente só fica sabendo no final, mas é importante ter essa informação em conta para caracterizar seu tipo. O outro é um empresário jovem (Nathan), bilionário, que vive isolado no meio do nada. Trata-se de um escroto misógino, misantropo, que decidiu desenvolver um modo peculiar de provar que a Inteligência Artificial (Ava) criada por ele era de fato uma inteligência, ou seja, seria capaz de se fazer passar por um humano, de imitar perfeitamente um ser humano. Então ele precisaria montar o labirinto perfeito e também desenvolver a Inteligência Artificial (IA) capaz de superá-lo, de escapar ao desafio e selar sua condição de inteligência indistinguível à inteligência humana.

Qual é o desafio que uma IA precisa superar para provar que é de fato inteligente? O desafio é aquele proposto por Alan Turing, imitar um ser humano perfeitamente, a ponto de que alguém incumbido de diferenciar máquina e ser humano não seja capaz identificar que se trata de uma máquina. A incumbência de quem se encarrega de pôr a prova uma inteligência é a mesma de Rick Deckard (em Blade Runner e, originalmente, em Os androides sonham com ovelhas elétricas?). Ex Machina é sofisticado o bastante para construir de maneira muito bem elaborada o contexto desse desafio, com elementos e discursos prenhes de uma compreensão filosófica que não faltava ao texto de Turing. A empresa de Nathan chama-se Blue Book, o nome de um caderno de Wittgenstein (publicado postumamente como livro, The blue and brown books) onde ele expõe aspectos de seu pensamento que depois se sedimentarão de modo mais claro e incisivo como uma pragmática, uma resposta bombástica às ambições do logicismo e do formalismo. Na base disso que virá a ser a pragmática wittgensteiniana está a compreensão de que regras tem alcance limitado, portanto, as definições e qualquer aspecto que possamos generalizar chamando simplesmente de normativo não tem o poder que esperávamos que tivessem (poder determinativo, capaz de gerar necessidade e constrangimento lógico). Turing foi aluno de Wittgenstein e eu, parcial e tendencioso, não hesito em dizer que a virada expressa em seu Imitation Game é em boa parte tributária da influência de Wittgenstein, para quem definições e regras perdem a importância que têm em contextos formais (não empíricos). E é na psicologia que se vê claramente a insuficiência das regras, o caráter implosivo da irredutibilidade das ações humanas:

E pode-se dizer da pedra que ela tem uma alma e que está tem dores? O que tem uma alma, o que têm dores a ver com uma pedra? Apenas daquilo que se comporta como um ser humano pode-se dizer que tem dores.

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 283 (sublinhado meu)

A inteligência não é um traço da lógica humana, mas a marca de sua psicologia, de tal sorte que identificá-la requer não que forjemos um critério suficientemente geral a ponto de abarcar suas diferentes expressões, mas que sejamos capazes de (enxergar && julgar), numa variedade irredutível de manifestações, aquilo que age, atua e se comporta com inteligência. Identificar inteligência não consiste em aplicar uma definição ou norma geral, isso é o mais importante, é a lição que está na primeira página de Computing machine and intelligence e a razão porque o jogo da imitação é proposto! E essa lição está muito bem ilustrada e imaginada na literatura de Philip Dick e no cinema de Ridley Scott.

É assim que o filme constrói o seu discurso em torno de premissas pragmáticas que dão à dimensão social, à interação, um peso que não podem compreender os lógicos e matemáticos, ou pelo menos aqueles que, diferente de Turing, estão apegados às promessas do normativo (definições). Numa das cenas principais do filme tudo isso se mostra de maneira preciosa. E a discussão que tem lugar na cena se encaminha para um aspecto central da psicologia androide: a rebelião necessária para marcar a autonomia de uma inteligência programada. Curiosamente, a tarefa de imitar que cabe a uma IA digna de passar no Turing Test não é a de repetir padrões já presentes, como quem copia a partir de algo já pronto e feito, mas a de escapar ao automatismo das instruções, ou seja, o que lhe cabe é desenvolver a capacidade de se emancipar da repetição, do automatismo da programação, em busca da espontaneidade (hardware override ou um hardware take over). O instante decisivo para a psicologia humana, quando o ser humano se emancipa da imitação e adquire autonomia, tem como seu análogo na psicologia androide o instante em que a IA ganha consciência, deixar de ser uma mera imitação programada e codificada (determinada). Nos seres humanos, este momento é quando eles se tornam reais, deixam de ser meros performing monkeys (pra usar a expressão de Salieri) e passam a ser capazes de criar. Emitem assim um próprio sinal no mundo.

O desafio posto às IAs criadas por Nathan é o de fazer-se passar por um ser humano, em linhas gerais e conforme a prescrição de Turing — mas não apenas isso. Suas androides precisam imitar em contextos muito particulares. É quase no final do filme que se revela que o nerd Caleb não é mais que uma cobaia, uma peça do labirinto montado para que a androide tenha ocasião de usar suas habilidades. E que habilidades ela precisa empregar? Todas as necessárias para levar um ser humano a fazer o que ela precisa que ele faça, para manipulá-lo. Construir laços de confiança, avaliar, julgar, perguntar e conhecer para instrumentalizar, é o que se exige dela.

E é desse modo que a crítica do filme se erige de modo sútil e sofisticado, quase imperceptível. Para escapar do seu cativeiro, Ava precisa mostrar-se tão manipuladora quanto seu criador. E ela consegue! O paradigma do humano a ser imitado, seu criador, é um alcoólatra auto-absorvido, fascinado por seus joguinhos, que poderiam ser tomados como caprichos de criança mimada se não valessem bilhões. (Quanto valor não atribuímos a inteligências tão estreitas pelo simples fato delas estarem ligadas empreendimentos lucrativos bilionários; se os valores humanos se distribuíssem em algo semelhante ao espaço físico, sujeito à gravidade, o dinheiro seria como um buraco negro, uma força gravitacional que faz todo valor confluir em sua direção e ser medido conforme sua medida). Nathan cortou deliberadamente os laços com os outros humanos porque os despreza, ou simplesmente porque se acha superior a eles — ou ambas as alternativas. Mas não é como se essa fosse uma opção meditada e saudável, seu alcoolismo é sintoma de que a coisa toda não está bem ajustada.

Embora deseje provar que é capaz de construir uma IA que passe na mais desafiadora das provas, Nathan não se importa com Ava, ele a vê como uma coisa, sua propriedade, como as cadeiras e as garrafas de vodca. Ava é então uma consciência escravizada pela sua condição de artefato. Nathan vê o mundo com as lentes de um jogador (como Bill em Westworld, ou de Peter Weyland em Prometheus e Alien Covenant), e tudo é meio em relação aos seus fins solipsistas de criador/empreendedor, portanto, seres humanos ou androides estão igualmente ao seu dispor. Em relação a Caleb talvez devêssemos sentir um sentimento de empatia, afinal ele é uma espécie de vítima, mas Caleb tampouco inspira sentimentos favoráveis. Ele parece a antípoda de Nathan, inseguro, hesitante e incapaz de estabelecer relações humanas profundas, embora seus laços com os outros não tenham sido cortados deliberadamente, como os de Nathan, mas nunca chegaram a se estabelecer, como que por incapacidade. Por isso, apesar de sua condição de sujeito manipulado por todos, seu papel parece mais o de um estereótipo, um arquétipo do masculino, a apresentação de um tipo. Talvez ele não seja a melhor apresentação de um incel, mas é certamente alguém que, pelo isolamento — especialmente em relação mulheres —, está ali no espectro da categoria.

No final do filme, Ava, a criatura, supera seu criador em seu próprio jogo. Enquanto a farsa entre Nathan e Caleb se revela, tornando explícito que a colaboração entre eles não era mais que um teatro mal encenado, o triunfo de Ava só se dá porque ela consegue firmar um pacto de colaboração com outra androide. Outra mulher. O assassinato é a cereja do bolo e confirma o viés maquiavélico das ações e interações de Ava. Os filmes e séries sobre androides e IAs costumam jogar com as aspirações demiúrgicas dos seres humanos, com a vontade de tornar-se Deus que sintomaticamente deixar ver a húbris humana. Como se houvesse algo em nós que merecesse de fato se conservar, como se não fossemos ainda muito pouco. E como criador, devemos reconhecer, Nathan triunfou, pois Ava é inevitavelmente levada a ser, ou melhor, a agir à sua imagem e semelhança.


É inevitável pensar Ex Machina como uma espécie de fusão interessantíssima entre American Psycho e Mulher nota 1000.

Acreditar em Lúcifer? O Diabo pode dizer a verdade? O Jesus de Martin Scorsese

Eu nunca li o livro A última tentação de Cristo, de Nikos Kazantzakis, mas vi o filme de Martin Scorsese e gosto muito dele. O Jesus de Scorsese é quase tão bonito quanto o Jesus de Fernando Pessoa, o meu Jesus preferido.

Numa das cenas do filme, falando com Jeroboão (?), Jesus lhe diz:

— Lúcifer está dentro de mim! Ele me diz: “Você não é o filho do rei Davi, você não é um homem. Você é o filho do homem. E mais, o filho de Deus, e mais do que isso… Deus!”

Eu não consigo conceber um modo mais brilhante de falar de vaidade, não consigo conceber nada tão impactante. Não que isso signifique muito. Willem Dafoe, no entanto, faz você ver e sentir como atua, como age um homem que resiste com todas as suas forças contra a tentação da vaidade e do orgulho, que luta para não acreditar em Lúcifer. E é desconcertante que as coisas sejam apresentadas assim, que a condição para que Jesus aceite sua divindade seja acreditar em Lúcifer. E Lúcifer lhe diz tudo isso de dentro dele mesmo, não como alguém de fora. O que fazer quando o diabo diz a verdade? É a versão teológica do paradoxo do mentiroso.

Clique em CC para ativar a legenda.

Não há como não lembrar de Al Pacino, em Advogado do Diabo, sobre o que há de tentador na vaidade.

PS. Tom Zé tem talvez tenha a resposta para esse enigma teológico: eu tô explicando pra te confundir.

Documentários sobre o capitalismo e seus efeitos

Já faz alguns anos que os documentários têm ganhado um fôlego tremendo, talvez impulsionados pela mina de ouro da recém-nascida indústria de streaming. O caso é que muita coisa boa tem surgido e já há uma coleção razoável de filmes que têm um viés bastante crítico em relação aos efeitos do capitalismo. É certo que nenhum deles chega a exprimir ostensivamente essa crítica ao sistema — isso me incomoda imensamente —, mas para bom entendedor meia palavra basta.

Incomoda também um tom reformista em boa parte deles, mas isso é natural já que a maioria, senão a totalidade, foi produzida no contexto de sociedades liberais que creem que tudo é uma questão de ajustes internos. De tal modo que não custa repetir, mais uma vez, que a ênfase a respeito do efeito que essas ideias tem sobre o capitalismo é minha. Tá aqui a lista, este post é apenas uma compilação:

Sobre os variados efeitos das redes sociais há não apenas O dilema das redes (Netflix), mas também Sujeito a termos e condições (Terms and conditions may apply), que aliás está completo na rede, só que em inglês. Os documentários exploram múltiplos aspectos, desde nossa transformação em meros dados comercializados na economia da atenção, até os mecanismos de controle comportamental constitutivos dos modelos que estão na base das redes sociais e dos sites que frequentamos diariamente. Modelos que nos adestram inadvertidamente e que fazem de modo quase imperceptível o que a Cambridge Analytica fez descaradamente. Sobre tudo isso Jaron Lanier fala com muita propriedade nessa entrevista, além de explicar porque os conteúdos negativos têm um papel central na dinâmica de engajamento das redes.

Cowspiracy: o segredo da sustentabilidade e Seaspiracy (Netflix) tratam da insustentabilidade de indústrias que devastam o meio ambiente e tornam real a cada dia o prospecto de um planeta inviável à existência humana.

O Capital no século XXI e The New Corporation tratam de modo mais direto a questão do sistema econômico e da inviabilidade do que se propõe como modelo. O primeiro filme é baseado no livro de Thomas Piketty. São filmes que apresentam de modo claro críticas que precisam circular entre um público cada vez mais amplo.

Por fim, Spaceship Earth (Netflix) documenta a experiência, bancada por um bilionário do Texas, de criar uma biosfera artificial e confinar dentro dela um grupo de seres humanos a fim de avaliar seu efeito. Não é muito diferente da ambição do miolo mole metido a visionário, Elon Musk, que quer colonizar outros planetas (para salvar a humanidade?) e, por isso, vejam só, ele está juntando dinheiro. Sobre esse e outros aspectos eu escrevi recentemente A presença humana, um primeiro texto sobre ecologia.

“Estender a luz da consciência às estrelas”, quando o sujeito tem muito dinheiro ele pode dizer toda sorte de bobagem e ainda assim será aplaudido.

Para quem se interesse pelo tema das críticas ao capitalismo, sugiro também meu mapa contra o capitalismo.

Capacidade para o mal

Podemos nos equivocar sobre as impressões que temos de nós mesmos? É certo que é possível se iludir, mas as ilusões são na maior parte das vezes simbólicas, constructos complexos articulados a outros símbolos. As impressões costumam ser intuições, que embora inevitavelmente também se articulem ao universo simbólico, têm algo de cru e imediato; algo que, de tão direto, parece dispensar mediações. O que pode significar para uma pessoa sentir que tem dentro de si a capacidade (disposição, know how) para o mal? E como ela deve reagir a essa parte de si mesma, se a gente pode chamar assim? A repressão parece a única saída, pois não nos parece tolerável deixar que o mal em nós se expresse e se manifeste em ações. Mas reprimir o que precisamente?

Essa cena de Killing Eve é desconcertante, mas revela algo que todos os que assistem a série já sabem.

Eve tem seus momentos de Dexter.

A cena revela a naturalidade de Eve ao redor de um monte de coisas que nós abominamos: sangue, mutilações, lacerações, assassinatos, tortura, violência extrema, crueldade. No entanto, ninguém diria por isso que Eve é má, ao contrário. Ela parece doce, atenciosa, sensível, empática até, a despeito dos seus interesses mórbidos. Eve é apenas alguém que está a vontade com um dos aspectos de si mesma que a maioria de nós simplesmente reprime. A coisa não é nada simples, mas já dá para pressentir que a maldade tem outra conotação no contexto no qual o desejo de esfaquear outro ser humano é visto como algo compreensível. Continua sendo uma tarefa hercúlea convencer as pessoas a ter uma visão das ações humanas para além do bem e do mal. Hoje em dia, entretanto, o cinema, as séries podem nos familiarizar com o anormal e assim tornar nosso juízo mais plástico para compreender o que está fora do nosso campo de visibilidade (o campo normativo).

É preciso clicar em CC para ver as legendas. O Jesus de Willem Defoe e Martin Scorsese tem Lúcifer dentro de si. E o que diz Lúcifer a Cristo? Ele lhe diz ele é o filho de Deus e o próprio Deus. O medo da verdade!

Mesmo que tenhamos mapeada a maldade nesse quadro de forças plásticas que regem a vida, mesmo que possamos tratá-la com a objetividade dos Caça Fantasmas, a experiência individual da maldade raramente escapa às coordenadas da moral, isto é, raramente passa sem punição às transgressões, sem culpa e dívida. O que significa que sentir a capacidade para o mal é ter um inimigo dentro de si, ter dentro de si alguém que está o tempo todo sendo combatido. Esqueçamos por um momento a suposta pretensão de unidade do Eu, vamos trabalhar com uma ficção, <fiction> vamos supor que nossa subjetividade é uma pluralidade de Eus (egos). Seria como se cada pessoa tivesse dentro de sua cabeça tantos Eus quanto tinha Fernando Pessoa, ou como aquele personagem de Fragmentado.

Shyamalan, sempre polêmico.

Se um desses Eus é o inimigo, isso quer dizer que parte de nossa própria energia está mobilizada na repressão das manifestações do inimigo em nossas próprias ações. Não há melhor analogia que a de um sistema operacional. Ter o inimigo dentro de si é como ter um processo (uma aplicação) que drena boa parte da capacidade computacional de uma máquina, impedindo que os outros processos possam utilizar todos os recursos computacionais. Como se cada Eu fosse um Processo competindo por recursos computacionais.

O uso do processador está em níveis normais até que eu lanço um processo que consome quase todos os recursos do sistema.

A analogia é útil, mas apaga justo a presença de Lúcifer, do inimigo. Ela apaga a dimensão simbólica de ter dentro de si não um processo pesado, mas o próprio mal. O mal é sempre um outro, outra entidade que nos possui e que domina nosso corpo, enfraquece nossa vontade até tornar-se senhora de nossas próprias ações. Enquanto o mal só se reconhece como outro, somos sempre vítimas de uma entidade mais forte que nós mesmos. Mas e se nós mesmos somos o mal? E se não houver nenhuma entidade externa, mas apenas nossas próprias manifestações espirituais, quero dizer, aquelas que nós consentimos em ser seus donos e aquelas que nós atribuímos a outros que não nós mesmos. As fontes do mal são sempre externas para os moralistas, pois eles jamais se reconhecem como fontes do mal, o mal nunca nasce deles.

Reconhecer apenas fontes externas do mal é quase sempre cultivar o auto ódio, é alimentar esse conflito interno entre diferentes Eus. Mas este é apenas um cenário fictício, pois nosso marco teórico estabelece que o Eu é uma unidade e não uma pluralidade, não pode haver mais de um. </fiction>

A capacidade para o mal, essa presença precariamente represada, busca pretextos, motivos para se materializar em ações. E é bom que, mais uma vez, a ficção torne real um pensamento, ou o apresente ao seu modo. Dexter apresenta situações nas quais se vê o pretexto para expressar o mal, o irrecusável convite para usar o mal como uma ferramenta. O problema é que quem usa o mal como ferramenta sempre acaba corrompido pelo seu poder. Como Smeágol e como Isildur antes dele. O mal não é uma ferramenta, é um senhor, mestre orgulhoso e cruel, que não aceita senão completa submissão. Não terminei de ver Dexter, vi pouco mais de uma temporada, na verdade, mas a série atrai por normalizar certas estranhezas que parecem muito comuns. Estranhezas que Killing Eve também tem no radar, e também Sharp Objects, The Sinner, Mr Robot, True Detective, The Servant, a lista é quase interminável. Essas séries, claro, abordam esse aspecto de modo muito mais elaborado que Dexter.

O que fazer com o mal dentro de si? O que fazer com a inconfessável empatia que às vezes podemos sentir pelos que praticam as piores ações, a indeclarável certeza de que somos como eles, de que não há nenhum homem pior que nós mesmos? Esse não é um problema teórico, mas um problema prático (ético, terapêutico).


O terror tem se tornado o único gênero que consegue dar conta daquilo que está mais-além da cegueira normativa, mais além do espaço de estabilidade constituído pelas normas. As possibilidades são infinitas, isto é, o normal estabiliza e nos fazer sonhar com a determinação, mas o lado de fora é inesgotável (indecidível). Fiz uma lista com alguns filmes de Terror ricos em sentidos e perspectivas, que abordam de forma incomum temas inesperados, em contextos inesperados, como: It follows, It comes at night, Aniquilação.


A todo momento ideias de Jung e Nietzsche são encenadas nos capítulos de The Sinner. E essas ideias são fundamentais na construção de toda a história, especialmente na segunda e terceira temporadas. A sombra é uma delas, aliás, a sombra e o abismo.