Capacidade para o mal

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Podemos nos equivocar sobre as impressões que temos de nós mesmos? É certo que é possível se iludir, mas as ilusões são na maior parte das vezes simbólicas, constructos complexos articulados a outros símbolos. As impressões costumam ser intuições, que embora inevitavelmente também se articulem ao universo simbólico, têm algo de cru e imediato; algo que, de tão direto, parece dispensar mediações. O que pode significar para uma pessoa sentir que tem dentro de si a capacidade (disposição, know how) para o mal? E como ela deve reagir a essa parte de si mesma, se a gente pode chamar assim? A repressão parece a única saída, pois não nos parece tolerável deixar que o mal em nós se expresse e se manifeste em ações. Mas reprimir o que precisamente?

Essa cena de Killing Eve é desconcertante, mas revela algo que todos os que assistem a série já sabem.

Eve tem seus momentos de Dexter.

A cena revela a naturalidade de Eve ao redor de um monte de coisas que nós abominamos: sangue, mutilações, lacerações, assassinatos, tortura, violência extrema, crueldade. No entanto, ninguém diria por isso que Eve é má, ao contrário. Ela parece doce, atenciosa, sensível, empática até, a despeito dos seus interesses mórbidos. Eve é apenas alguém que está a vontade com um dos aspectos de si mesma que a maioria de nós simplesmente reprime. A coisa não é nada simples, mas já dá para pressentir que a maldade tem outra conotação no contexto no qual o desejo de esfaquear outro ser humano é visto como algo compreensível. Continua sendo uma tarefa hercúlea convencer as pessoas a ter uma visão das ações humanas para além do bem e do mal. Hoje em dia, entretanto, o cinema, as séries podem nos familiarizar com o anormal e assim tornar nosso juízo mais plástico para compreender o que está fora do nosso campo de visibilidade (o campo normativo).

É preciso clicar em CC para ver as legendas. O Jesus de Willem Defoe e Martin Scorsese tem Lúcifer dentro de si. E o que diz Lúcifer a Cristo? Ele lhe diz ele é o filho de Deus e o próprio Deus. O medo da verdade!

Mesmo que tenhamos mapeada a maldade nesse quadro de forças plásticas que regem a vida, mesmo que possamos tratá-la com a objetividade dos Caça Fantasmas, a experiência individual da maldade raramente escapa às coordenadas da moral, isto é, raramente passa sem punição às transgressões, sem culpa e dívida. O que significa que sentir a capacidade para o mal é ter um inimigo dentro de si, ter dentro de si alguém que está o tempo todo sendo combatido. Esqueçamos por um momento a suposta pretensão de unidade do Eu, vamos trabalhar com uma ficção, <fiction> vamos supor que nossa subjetividade é uma pluralidade de Eus (egos). Seria como se cada pessoa tivesse dentro de sua cabeça tantos Eus quanto tinha Fernando Pessoa, ou como aquele personagem de Fragmentado.

Shyamalan, sempre polêmico.

Se um desses Eus é o inimigo, isso quer dizer que parte de nossa própria energia está mobilizada na repressão das manifestações do inimigo em nossas próprias ações. Não há melhor analogia que a de um sistema operacional. Ter o inimigo dentro de si é como ter um processo (uma aplicação) que drena boa parte da capacidade computacional de uma máquina, impedindo que os outros processos possam utilizar todos os recursos computacionais. Como se cada Eu fosse um Processo competindo por recursos computacionais.

O uso do processador está em níveis normais até que eu lanço um processo que consome quase todos os recursos do sistema.

A analogia é útil, mas apaga justo a presença de Lúcifer, do inimigo. Ela apaga a dimensão simbólica de ter dentro de si não um processo pesado, mas o próprio mal. O mal é sempre um outro, outra entidade que nos possui e que domina nosso corpo, enfraquece nossa vontade até tornar-se senhora de nossas próprias ações. Enquanto o mal só se reconhece como outro, somos sempre vítimas de uma entidade mais forte que nós mesmos. Mas e se nós mesmos somos o mal? E se não houver nenhuma entidade externa, mas apenas nossas próprias manifestações espirituais, quero dizer, aquelas que nós consentimos em ser seus donos e aquelas que nós atribuímos a outros que não nós mesmos. As fontes do mal são sempre externas para os moralistas, pois eles jamais se reconhecem como fontes do mal, o mal nunca nasce deles.

Reconhecer apenas fontes externas do mal é quase sempre cultivar o auto ódio, é alimentar esse conflito interno entre diferentes Eus. Mas este é apenas um cenário fictício, pois nosso marco teórico estabelece que o Eu é uma unidade e não uma pluralidade, não pode haver mais de um. </fiction>

A capacidade para o mal, essa presença precariamente represada, busca pretextos, motivos para se materializar em ações. E é bom que, mais uma vez, a ficção torne real um pensamento, ou o apresente ao seu modo. Dexter apresenta situações nas quais se vê o pretexto para expressar o mal, o irrecusável convite para usar o mal como uma ferramenta. O problema é que quem usa o mal como ferramenta sempre acaba corrompido pelo seu poder. Como Smeágol e como Isildur antes dele. O mal não é uma ferramenta, é um senhor, mestre orgulhoso e cruel, que não aceita senão completa submissão. Não terminei de ver Dexter, vi pouco mais de uma temporada, na verdade, mas a série atrai por normalizar certas estranhezas que parecem muito comuns. Estranhezas que Killing Eve também tem no radar, e também Sharp Objects, The Sinner, Mr Robot, True Detective, The Servant, a lista é quase interminável. Essas séries, claro, abordam esse aspecto de modo muito mais elaborado que Dexter.

O que fazer com o mal dentro de si? O que fazer com a inconfessável empatia que às vezes podemos sentir pelos que praticam as piores ações, a indeclarável certeza de que somos como eles, de que não há nenhum homem pior que nós mesmos? Esse não é um problema teórico, mas um problema prático (ético, terapêutico).


O terror tem se tornado o único gênero que consegue dar conta daquilo que está mais-além da cegueira normativa, mais além do espaço de estabilidade constituído pelas normas. As possibilidades são infinitas, isto é, o normal estabiliza e nos fazer sonhar com a determinação, mas o lado de fora é inesgotável (indecidível). Fiz uma lista com alguns filmes de Terror ricos em sentidos e perspectivas, que abordam de forma incomum temas inesperados, em contextos inesperados, como: It follows, It comes at night, Aniquilação.


A todo momento ideias de Jung e Nietzsche são encenadas nos capítulos de The Sinner. E essas ideias são fundamentais na construção de toda a história, especialmente na segunda e terceira temporadas. A sombra é uma delas, aliás, a sombra e o abismo.

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