O que significa acreditar na linguagem?

Pensei em dar ao texto o título O império do perlocutório, mas esta é apenas uma de suas etapas e não o seu alvo. Usamos a linguagem não como as poetisas e os feiticeiros, usamos a linguagem como argumentadores, como quem calcula. Queremos, sobretudo, provocar efeitos, fazer com que nossas ideias afetem os outros e os transforme, mude seus sistemas de crenças e, consequentemente, suas ações e seu discurso, posto que falar é fazer (como nos ensinou Austin, e Wittgenstein antes dele). Portanto, eu chamo de Império do perlocutório a prevalência de um uso da linguagem que visa exclusivamente o efeito e que, por isso, lhe dá um caráter instrumental. Nada mais natural que, na Tecnosfera, vejamos a linguagem predominantemente como um instrumento.

O caso é que em muito poucas circunstâncias a linguagem é verdadeiramente um instrumento, em muito poucas circunstâncias ela funciona como um cálculo e, no entanto, a prevalência de semelhante concepção — e o mascaramento de outras dimensões que talvez tenham peso ainda maior — impede que possamos refletir sobre o uso que fazemos ou deveríamos fazer dela. Feyerabend apontava, visando concretamente a ciência, a necessidade de reconhecer variáveis externas que interferem nos planos e propósitos racionais e científicos:

Ora, se há eventos, não necessariamente argumentos, que são causa de adotarmos padrões novos, inclusive novas e mais complexas formas  de argumentação, não caberá aos defensores do status quo oferecer, não apenas contra-argumentos, mas também causas contrárias? E quando velhas formas de argumentação se revelarem causa demasiado fraca, não deverão esses defensores desistir ou recorrer mais fortes e mais irracionais? (É muito difícil e talvez inteiramente impossível combater, através de argumentação, os efeitos da lavagem cerebral.) Até o mais rigoroso dos racionalistas ver-se-á forçado a deixa de arrazoar, para recorrer à propaganda e à coerção, não porque hajam deixado de ser válidas algumas das suas razões, mas porque desapareceram as condições psicológicas que se tornaram eficazes e as faziam susceptíveis de influenciar terceiros. E qual a utilidade de um argumento que não consegue influenciar pessoas?

Paul Feyerabend, Contra o método

Há tempos essa racionalidade, entendida simplificadamente como uma espécie de cálculo de razões, perdeu lugar para a propaganda, para a publicidade, precisamente porque as condições psicológicas não podem ser excluídas do cálculo, e, admitidas neste cômputo, já não permitem que pensemos a linguagem como cálculo, nem mesmo como instrumento (embora não deixem de poder ser igualmente instrumentalizadas). A Publicidade há tempos sorrateiramente substituiu a Razão, justo porque sabe o peso de variáveis não racionais e sabe ademais como manipulá-las, como instrumentalizá-las em seu favor. A publicidade, junto com ciência, constituem os dois eixos principais do capitalismo.

Mas não é isso o que me interessa agora. O que me interessa é saber se, para além do perlocutório, do propósito de provocar efeitos, há algo mais na linguagem? Podemos usá-la ainda que não vejamos de que modo ela afetará os outros? Devemos usá-la ainda que não existam esses outros? Devemos escrever uma carta, colocá-la numa garrafa e lançá-la ao mar na esperança de que alguém a leia? Devemos falar ao vento ou melhor recear que nos tomem como loucos?

Acreditar na linguagem num sentido lato não pode significar simplesmente acreditar que ela é um instrumento eficiente para levar a cabo os nossos propósitos dirigistas e para produzir os efeitos que desejamos. A linguagem é um todo que abarca o sistema cultural e também o natural. Sendo simbolismo, tendemos a esquecer sua dimensão natural e a esvaziá-la no caráter convencional e arbitrário que a constitui como símbolo e instrumento. Relegamos seu pertencimento ao mundo natural à expressão artística, àquilo que se manifesta como relação unívoca, do interior da nossa subjetividade ao mundo externo e objetivo, como coisa externalizada. Assim, por exemplo, ao cantar, sentimos que expressamos algo, mas o que é expresso vem de dentro e ao chegar ao mundo não o afeta como pode afetar um argumento, isto é, um elemento convencionalmente construído para ter efeitos precisos (melhor, determinados) sobre os outros, como numa espécie de cálculo. No mundo, no melhor dos casos, esse uso da linguagem agora devidamente categorizado como expressivo só pode afetar os sentimentos, este dominio por milênios menosprezado por uma tradicional racionalista ou protoracionalista.

Os sentimentos são um modo de abreviar e de rotular o espaço indeterminado do que não se submete à pretensão regulativa da razão, são, portanto, desrazão e irracionalidade; trocando em miúdos, coisa depreciável. Desse modo, nossa situação é a seguinte: aquilo que mais nos afeta está fora do rol das coisas importantes, relegado à animalidade (palavra maldita para nós, humanos racionais) que gostaríamos de esquecer se fôssemos capazes de nos transformar em máquinas, de agir a despeito do nosso pertencimento ao mundo natural. Não é por acaso que Spock é apresentado como ídolo numa representação estereotípica dos cientistas; não é por acaso o temor, a respeito das inteligências artificiais, quanto a possibilidade de elas tenham emoções (tratando os dois termos como familiares).

Enquanto a publicidade usa a não mais poder sentimentos e emoções humanas, a ciência sonha em mapear assepticamente este espaço de irracionalidade, em reduzi-lo às suas regras operativas e, portanto, restaurar a determinação e conjurar a arbitrariedade. A ciência não ouve a filosofia, ou melhor, ciência já não é mais filosofia, portanto, morrerá abraçada à fada da determinação (mito científico), incapaz de compreender a inevitabilidade do acaso e da arbitrariedade. Em momentos otimistas eu penso que a ascensão dos sistemas complexos, que a aparição dos sistemas emergentes (engenharia emergente, etc.), é um sinal de que a ciência talvez possa amadurecer e se orientar rumo a caminhos mais afins à compreensão do caráter inevitável da arbitrariedade. Mas essa é apenas uma ilusão otimista, a ciência não pode ensinar a lidar com o que está fora do âmbito do conhecimento (possível ou atual), só a filosofia pode extrair disso não um conhecimento, mas uma ética.

Voltamos então à questão, o que significa acreditar na linguagem? Entre outras coisas, acreditar na linguagem significa entender o significado de cantar, de imaginar, de evocar e invocar, significa entender o Verbo como espírito e também como carne; não como coisa contrária aos propósitos racionais, mas apenas irredutível às suas pretensões universais. Nada mais difícil do que ver o lado de fora quando não se acredita que ele exista.

Pular o processo: a força da prática

Espírito e técnica

Mestrinho disse, nessa entrevista a Nelson Faria, que não sabe ler partitura. Essa é uma ocasião mais que propícia para falar do primado da prática, do fato de que as regras têm uma posição secundária em relação à prática, apesar de vivermos na era dos computadores. Mestrinho disse que insistiram para ele estudar teoria musical, mas ele não queria “passar pelo processo”, pois o processo era muito lento e grande parte do que lhe era ensinado ele já sabia fazer. Na filosofia de Wittgenstein, a formulação do paradoxo da relação entre regras e práticas é a seguinte:

Nosso paradoxo era: uma regra não poderia determinar um modo de agir, pois cada modo de agir deveria estar em conformidade com a regra.

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 201

Eu gosto de reformular o paradoxo nos seguintes termos: “uma regra não pode nos dizer o que fazer a menos que já saibamos o que fazer“. Isso significa que a regra não pode ser o começo da determinação do sentido, na verdade, a própria constituição do seu papel normativo depende de uma prática que pode instaurar ou derrogar essa função. A pergunta que apresenta um contexto mais amplo no qual as duas perspectivas aparecem conectadas é: onde a execução efetivamente começa, na regra ou na prática? Apesar da tendência, infelizmente compreensível, de se envergonhar por não saber ler partitura, Mestrinho afirma hesitantemente que, pelo menos no seu caso, a prática é decisiva para constituição da habilidade de tocar. Nelson Faria confirma essa perspectiva e acrescenta uma analogia muito apropriada: aprender a tocar (e saber tocar) é como aprender uma língua, você aprende a falar e só muito depois vem a saber (ou não!) da existência das regras gramaticais, dos conectivos, dos elementos que as regras organizam, etc.

A gramática de uma linguagem não é registrada e não chega a existir até que linguagem tenha sido falada pelos seres humanos por muito tempo.

Ludwig Wittgenstein, Gramática filosófica

Agora, como é o outro lado? Por que a vergonha quando se desconhece a teoria, as regras do jogo? E qual é a função da teoria? O espírito está dado, ele nasce com Mestrinho, já a técnica permite que qualquer um possa desenvolver uma capacidade que Mestrinho já nasceu sabendo, a capacidade de tocar e criar. A técnica registra a regularidade das ações em regras que instituem as condições de um saber fazer (know how) e ao se estabelecer desse modo ela torna possível que essa competência possa ser adquirida não apenas por aqueles que a tem no espírito, mas por qualquer um. Assim teve lugar o enorme salto evolutivo que só a colaboração é capaz de propiciar. Eu disse colaboração, não competição, para que fique claro! Numa sociedade científica, ou melhor, na Tecnosfera em que nós vivemos, é muito fácil perder de vista o primado da prática, e do espírito, em função do lugar que o método e as regras têm no nosso panorama ideológico. E é ante a força simbólica desse perspectiva que mesmo um talento nato como Mestrinho chega a sentir vergonha de algo que ele simplesmente não precisa.

Espero que não seja preciso dizer que não há dúvida de que a técnica pode permitir que alguém imagine novos mundos. Vejamos o caso de Jacob Colliers. A Jacob seguramente não lhe falta espírito, mas a este legado natural se sobrepõe uma generosa camada de compreensão teórica. (Adam Neely, que eu mencionei nesse post, também sabe muito de prática e teoria musical) Assim suas habilidades se expandem e, dispondo de dinheiro para comprar equipamentos e tendo adquirido conhecimento e competência para usar softwares de edição de som, as possibilidades de criação e execução parecem ampliar-se indefinidamente. Mas não é como se houvesse de fato uma perda na ausência de uma compreensão teórica, ainda que não deixemos de sentir a ausência de uma compreensão técnica como perda e deficit. Parece como se não pudéssemos deixar de sentir como faltante, carente, tudo que não se envolve com a técnica. Mas as expressões da técnica são também expressões do espírito. Embora estejamos inclinados a pensá-la em termos estritamente normativos — envolvendo regras e o adestramento que vai construindo uma habilidade —, o melhor que a técnica pode fazer (e é preciso lembrar que mesmo a poesia necessariamente envolve técnica) é estimular o espírito de outros seres humanos, como o espírito de Alexander von Humboldt se integrou ao espírito do jovem Charles Darwin, a ponto de lançá-lo numa aventura de mais de 5 anos pelo hemisfério sul com o Beagle. Sem falar que a técnica pode simplesmente limitar o espírito, isso se pode constatar facilmente dentro da Universidade, e, aliás, em certa medida já está também na frase de Sêneca: “excesso de livros, barafunda do espírito!”.

O problema da técnica é a sua quase imperceptível aura ideológica, aquilo que caracteriza a Tecnosfera, a pretensa redutibilidade que se deriva do propósito objetivo do conhecimento. A objetividade do conhecimento pretende fazer com que a pluralidade do subjetivo se reduza a uma unidade, a unidade do Real. A técnica tem tanta importância na história humana, e facilita tanto a nossa vida, que é quase impossível dirigir-lhe uma crítica sem angariar antipatia e, não poucas vezes, inimigos. Apesar disso, mesmo se usando uma ficção nós imaginássemos uma história contrafactual na qual Mozart e Beethoven não aprenderam a escrever suas obras, — pois não sabiam usar nenhuma notação musical, embora fossem capazes de criá-las e e executá-las—, nós nos veríamos constrangidos a admitir que a beleza dessas obras se conservaria, ainda que talvez elas nunca tivessem chegado até nós. Essa ficção atesta tanto a utilidade da técnica quanto aquilo que no espírito e em suas manifestações é irredutível a ela.

É claro que, em certo sentido, o propósito desse texto é desidratar o papel da técnica, supradimensionado por uma adesão (irrefletida || dogmática) à ciência, além de criticar a consequente conversão de todas perspectivas à inescapável chave técnica problema/solução (conversão que empobrece a ciência e torna os cientistas meros puzzle-solvers, como dizia Thomas Kuhn). Entretanto, mais importante do que a crítica é a lembrança de que o espírito é a fonte de toda a criação e de que tudo o que nós entendemos como (possível || impossível) não é nada mais do que o resultado da vigência de leis e regras que foram instituídas e que, por isso mesmo, podem ser igualmente destituídas, ainda que não possamos ver um lado de fora (ver o impossível). A adesão à técnica nos congela a um espaço de estabilidade e torna a instabilidade uma tragédia, algo que só tem lugar por meio de eventos externos que, com violência, invadem nossas expectativas e comprometem a tão sonhada e tão bem-quista previsibilidade.

Poincaré, ciência e previsibilidade

Na arte é onde a autonomia, a libertação do peso da imitação, pode ser vista mais claramente como fonte da criação, manifestação do espírito.


Nos comentários de Gilbert Ryle vemos uma imagem da força da regra como perspectiva:

É claro que executar uma operação de forma inteligente não é exatamente a mesma coisa que acompanhar sua execução de forma inteligente. O agente é originário, o espectador está apenas contemplando. Mas as regras que o agente observa e os critérios que ele aplica são as mesmas que regem os aplausos e zombarias do espectador. O comentarista da filosofia de Platão não precisa possuir muita originalidade filosófica, mas se ele não puder, como muitos comentaristas não podem, apreciar a força, o rumo ou o motivo de um argumento filosófico, seus comentários serão inúteis. Se ele pode apreciá-los, então ele sabe como fazer parte do que Platão soube fazer.

Gilbert Ryle, The concept of the mind, 42

A redução da competência a um vocabulário disposicional deixa do lado de fora o espírito e torna todas as suas manifestações meras complexidades que, ao menos em tese, podem ser traduzidas em regras mais precisas (mais complexas); em algoritmos capazes de resolver algo posto em termos de complexas manipulações de dados (portanto, a elementos decidíveis). Wittgenstein usava a pianola como exemplo de determinação, setenta anos depois de sua morte, é incrível constatar que para muita gente é real e está ao nosso alcance a possibilidade de construir inteligências capazes de executar as Variações Goldberg com o mesmo brilho que Glenn Gould. Não há nada que o espírito acrescente, pois todo o espaço do possível é tecnicamente mapeável, não há nada do lado de fora. — Há sempre algo do lado de fora! Mas por ora o que importa é apenas apresentar muito claramente o que pretende a técnica e o que pode o espírito, como uma diferença entre uma pianola idealizada (modelos de inteligência artificial) e Glenn Gould (Claudio Arrau, ou o virtuose do piano de sua preferência).

Capacidade para o mal

Podemos nos equivocar sobre as impressões que temos de nós mesmos? É certo que é possível se iludir, mas as ilusões são na maior parte das vezes simbólicas, constructos complexos articulados a outros símbolos. As impressões costumam ser intuições, que embora inevitavelmente também se articulem ao universo simbólico, têm algo de cru e imediato; algo que, de tão direto, parece dispensar mediações. O que pode significar para uma pessoa sentir que tem dentro de si a capacidade (disposição, know how) para o mal? E como ela deve reagir a essa parte de si mesma, se a gente pode chamar assim? A repressão parece a única saída, pois não nos parece tolerável deixar que o mal em nós se expresse e se manifeste em ações. Mas reprimir o que precisamente?

Essa cena de Killing Eve é desconcertante, mas revela algo que todos os que assistem a série já sabem.

Eve tem seus momentos de Dexter.

A cena revela a naturalidade de Eve ao redor de um monte de coisas que nós abominamos: sangue, mutilações, lacerações, assassinatos, tortura, violência extrema, crueldade. No entanto, ninguém diria por isso que Eve é má, ao contrário. Ela parece doce, atenciosa, sensível, empática até, a despeito dos seus interesses mórbidos. Eve é apenas alguém que está a vontade com um dos aspectos de si mesma que a maioria de nós simplesmente reprime. A coisa não é nada simples, mas já dá para pressentir que a maldade tem outra conotação no contexto no qual o desejo de esfaquear outro ser humano é visto como algo compreensível. Continua sendo uma tarefa hercúlea convencer as pessoas a ter uma visão das ações humanas para além do bem e do mal. Hoje em dia, entretanto, o cinema, as séries podem nos familiarizar com o anormal e assim tornar nosso juízo mais plástico para compreender o que está fora do nosso campo de visibilidade (o campo normativo).

É preciso clicar em CC para ver as legendas. O Jesus de Willem Defoe e Martin Scorsese tem Lúcifer dentro de si. E o que diz Lúcifer a Cristo? Ele lhe diz ele é o filho de Deus e o próprio Deus. O medo da verdade!

Mesmo que tenhamos mapeada a maldade nesse quadro de forças plásticas que regem a vida, mesmo que possamos tratá-la com a objetividade dos Caça Fantasmas, a experiência individual da maldade raramente escapa às coordenadas da moral, isto é, raramente passa sem punição às transgressões, sem culpa e dívida. O que significa que sentir a capacidade para o mal é ter um inimigo dentro de si, ter dentro de si alguém que está o tempo todo sendo combatido. Esqueçamos por um momento a suposta pretensão de unidade do Eu, vamos trabalhar com uma ficção, <fiction> vamos supor que nossa subjetividade é uma pluralidade de Eus (egos). Seria como se cada pessoa tivesse dentro de sua cabeça tantos Eus quanto tinha Fernando Pessoa, ou como aquele personagem de Fragmentado.

Shyamalan, sempre polêmico.

Se um desses Eus é o inimigo, isso quer dizer que parte de nossa própria energia está mobilizada na repressão das manifestações do inimigo em nossas próprias ações. Não há melhor analogia que a de um sistema operacional. Ter o inimigo dentro de si é como ter um processo (uma aplicação) que drena boa parte da capacidade computacional de uma máquina, impedindo que os outros processos possam utilizar todos os recursos computacionais. Como se cada Eu fosse um Processo competindo por recursos computacionais.

O uso do processador está em níveis normais até que eu lanço um processo que consome quase todos os recursos do sistema.

A analogia é útil, mas apaga justo a presença de Lúcifer, do inimigo. Ela apaga a dimensão simbólica de ter dentro de si não um processo pesado, mas o próprio mal. O mal é sempre um outro, outra entidade que nos possui e que domina nosso corpo, enfraquece nossa vontade até tornar-se senhora de nossas próprias ações. Enquanto o mal só se reconhece como outro, somos sempre vítimas de uma entidade mais forte que nós mesmos. Mas e se nós mesmos somos o mal? E se não houver nenhuma entidade externa, mas apenas nossas próprias manifestações espirituais, quero dizer, aquelas que nós consentimos em ser seus donos e aquelas que nós atribuímos a outros que não nós mesmos. As fontes do mal são sempre externas para os moralistas, pois eles jamais se reconhecem como fontes do mal, o mal nunca nasce deles.

Reconhecer apenas fontes externas do mal é quase sempre cultivar o auto ódio, é alimentar esse conflito interno entre diferentes Eus. Mas este é apenas um cenário fictício, pois nosso marco teórico estabelece que o Eu é uma unidade e não uma pluralidade, não pode haver mais de um. </fiction>

A capacidade para o mal, essa presença precariamente represada, busca pretextos, motivos para se materializar em ações. E é bom que, mais uma vez, a ficção torne real um pensamento, ou o apresente ao seu modo. Dexter apresenta situações nas quais se vê o pretexto para expressar o mal, o irrecusável convite para usar o mal como uma ferramenta. O problema é que quem usa o mal como ferramenta sempre acaba corrompido pelo seu poder. Como Smeágol e como Isildur antes dele. O mal não é uma ferramenta, é um senhor, mestre orgulhoso e cruel, que não aceita senão completa submissão. Não terminei de ver Dexter, vi pouco mais de uma temporada, na verdade, mas a série atrai por normalizar certas estranhezas que parecem muito comuns. Estranhezas que Killing Eve também tem no radar, e também Sharp Objects, The Sinner, Mr Robot, True Detective, The Servant, a lista é quase interminável. Essas séries, claro, abordam esse aspecto de modo muito mais elaborado que Dexter.

O que fazer com o mal dentro de si? O que fazer com a inconfessável empatia que às vezes podemos sentir pelos que praticam as piores ações, a indeclarável certeza de que somos como eles, de que não há nenhum homem pior que nós mesmos? Esse não é um problema teórico, mas um problema prático (ético, terapêutico).


O terror tem se tornado o único gênero que consegue dar conta daquilo que está mais-além da cegueira normativa, mais além do espaço de estabilidade constituído pelas normas. As possibilidades são infinitas, isto é, o normal estabiliza e nos fazer sonhar com a determinação, mas o lado de fora é inesgotável (indecidível). Fiz uma lista com alguns filmes de Terror ricos em sentidos e perspectivas, que abordam de forma incomum temas inesperados, em contextos inesperados, como: It follows, It comes at night, Aniquilação.


A todo momento ideias de Jung e Nietzsche são encenadas nos capítulos de The Sinner. E essas ideias são fundamentais na construção de toda a história, especialmente na segunda e terceira temporadas. A sombra é uma delas, aliás, a sombra e o abismo.

Espírito e dádiva

Certa feita ouvi o seguinte comentário ao final de uma palestra de Maria Rita Kehl que eu assisti no Youtube: “Ao expor suas ideias Maria Rita faz a gente se sentir mais inteligente”. Não lembro ao certo, foi alguma coisa assim. Desde então essa ideia volta constantemente, quase como o mapa da Hungria que alguém não pudesse tirar da cabeça (felizmente, ela não é a semente de um inferno possível — mas de algo bom). A ideia ficou na minha cabeça não apenas porque era verdadeira — um modo cuidadoso e bastante inteligente de apresentar uma característica marcante do modo de Maria Rita Kehl lidar com outras inteligências —, mas também porque é muito interessante.

Era como se ela pudesse dar sua inteligência. Não lembro o que então me fez pensar que dar inteligência era uma ideia boba. Na certa foi a impressão de que assim se desvalorizava inadvertidamente o papel dos componentes inatos que constituem o sistema cognitivo. A ideia de dar inteligência parece apresentar a inteligência como algo infinitamente plástico, universal e quase imaterial, como se não houvessem determinações biológicas, químicas, físicas, que fixassem limites pra aquilo que pode ser adquirido no ambiente. Não é um oba-oba. Mas essa é uma falsa impressão, dar inteligência não significa que todo mundo é potencialmente inteligente ou que todos partilham o mesmo espectro de inteligência. A inteligência é uma ideia elusiva, porque embora nós a padronizemos — usando, nos casos mais sofisticados, nossa própria inteligência como uma espécie de padrão — ela tem uma característica emergente, pois desestabiliza os próprios padrões. Pra quem pode apreciá-las, claro, pois se abrir a apreciação da inteligência tem um preço e é uma escolha. Desestabilizados os padrões, mudam também os resultados de nossas medições e estamos num novo mundo. Não é tão simples quanto eu apresento, mas o reconhecimento da inteligência (ser capaz de reconhecer seu caráter emergente, isto é, dispensar os padrões) nos leva a ter que aceitar a instabilidade que ela carrega, junto como o fogo de Prometeu.

Toda pretensão de medir exige uma certa regularidade no comportamento do que se mede, de outro modo a medição se torna impossível.

Apenas em casos normais o uso das palavras nos é claramente prescrito; não temos nenhuma dúvida, sabemos o que é preciso dizer neste ou naquele caso. Quanto mais o caso é anormal, tanto mais duvidoso torna-se o que devemos dizer. Se as coisas fossem inteiramente diferentes de como elas efetivamente são — não haveria, por exemplo, expressão característica da dor, do medo, da alegria. Fosse o que é exceção, regra e o que é regra, exceção; ou se ambas se tornassem fenômenos de frequência relativamente semelhante — com isso nossos jogos de linguagem normais perderiam o sentido (Witz). O procedimento de colocar um pedaço de queijo sobre uma balança e determinar o preço conforme uma escala perderia seu sentido se os pedaços com frequência crescessem ou diminuíssem repentinamente, sem causas óbvias.

Wittgenstein, Investigações filosóficas, § 142

A irregularidade do comportamento do que se deseja medir torna impossível que um padrão de medida siga em vigor, pois a irregularidade colapsa a condição de sua função normativa. Diante de novas situações, novos padrões devem ser forjados, novas normas. E daquilo que desestabiliza o uso dos padrões pode ser dito que tem um caráter emergente. A inteligência tem esse caráter emergente.

Tudo isso só pra dizer que não dá pra entender a inteligência pensando apenas em termos estritamente quantitativos, paramétricos e normativos. Não dá pra entender a inteligência com espectros. O caráter desestabilizador da inteligência é um ônus que acena a uma expressão familiar, a ideia de espírito.

O universo simbólico, que é o ambiente da inteligência, não se reduz a zeros ou uns. E é por isso que a palavra espírito recupera a riqueza simbólica dispensada pela pretensão de generalidade dos zeros e uns. No ambiente do espírito podemos retomar a consideração sobre a ideia de dar inteligência sem maiores restrições, porque a dádiva não é estranha ao espírito.

“Are you free and evil or blameless and helplessly enslaved?”
Aproveitam enquanto o Youtube não derruba vídeo, é a terceira temporada de Westworld.

A dádiva é uma atitude diante da inteligência do outro. A internet está cheia de exemplos de pessoas que são capazes de nos dar um pouco da sua inteligência. É claro que é mais didático mostrar isso em relação a temas que são interessantes, mas distantes do âmbito de competência da maior parte de nós, pobres mortais. Porque assim, pelo contraste, fica mais fácil ver o quanto se alarga nosso campo de visão, para usar uma analogia conveniente. Michael Nielsen imagina um exemplo que é uma verdadeira dádiva quando precisa explicar como funciona um perceptron, que é basicamente uma unidade numa rede de modelos de decisão (uma rede neuronal). Ele explica a construção dos modelos de decisão a partir do exemplo da decisão banal de ir ou não a um festival de queijo. Então ele monta o sistema com pesos diferentes atribuídos a três fatores determinantes para decidir se ir ou não ao festival: x1 Vai fazer bom tempo? x2 Seu namorado ou sua namorada vai te acompanhar? x3 Há algum transporte público até o local do festival (você não tem carro)? Um bom exemplo é uma dádiva de inteligência, assim como uma boa explicação.

O output é a decisão ponderada a partir do que foi determinado como peso de cada fator e do valor de cada input, 0 ou 1.

A dádiva torna possível que os outros, se quiserem, adentrem universos que pareciam inacessíveis. Não estou dizendo nada que ninguém não sabia, estou dizendo o óbvio. O difícil não é conceber que os espíritos têm o dom da dádiva e que a inteligência pode ser dada, duro é entender porque então, se nós sabemos disso, nem sempre aceitamos a inteligência que nos é oferecida? Não é simples responder a essa pergunta e eu acho que pra respondê-la de modo satisfatório seria preciso falar da relação entre poder e inteligência. Falar, por exemplo, sobre como o medo de ser idiota pode ter se tornado uma arma política tão importante e sintomática. Mas não quero falar sobre isso agora, então permitam que eu me atenha a uma certa reação quase natural que nós temos diante da inteligência. Um recuo, uma recusa é um reflexo quase instintivo diante da instabilidade que a inteligência carrega. Por isso a recusa é uma (decisão && escolha), se é que realmente podemos chamá-las assim. Há pessoas e situações que nos permitem acreditar no dizer da inteligência, como quem se permite ouvi um canto de sereia, mas quando somos confrontados com ela assim abruptamente, despreparados, recusamos prontamente seus convites. Recusamos a instabilidade que pressentimos.


A inteligência precisa oferecer algo de convidativo, precisa ser sentida como a cegueira que se segue a um forte clarão, para que olvidemos o chiado que emite a instabilidade que lhe acompanha (eu me pergunto se inteligência e instabilidade são duas coisas, ou uma só). Usei o exemplo de Maria Rita Kehl, da rede neuronal, mas há muitos outros. Outro bom caso é o desse camarada falando de Garota de Ipanema (e da ambiguidade da Bossa Nova). É notória sua formação técnica, sua competência no uso dos conceitos, mas, acima de tudo, a organicidade com que o domínio técnico se articula ao seu uso da linguagem natural. Ele está à vontade, pois sua inteligência é como que parte de seu próprio corpo. Isso potencializa enormemente sua capacidade de se comunicar, atrai e amplia inteligência alheia eclipsando o zumbido da instabilidade que a acompanha. Dá vontade de largar tudo e estudar música.

Na fronteira do ateísmo

Eu nunca fui um ateu caricato, cuidei pra não ser. Desses que citam Bertrand Russell em sua fase mais panfletária. Mesmo em sua fase mais panfletária, permitam que eu me corrija, as coisas que Russell escrevia ou dizia tinham a marca de sua notória inteligência e generosidade. Bem, o que eu quero dizer é que meu ateísmo tem grande componente de reflexividade, não é um mero ativismo intelectual. Eu nunca o escondi, o ateísmo hoje em dia está numa posição muito confortável comparado com o passado, mas nunca fui ativista. Acho simplória a ideia de que as religiões são o mal do mundo, como vejo circular por aí, embora no Brasil de hoje seja muito difícil não se ressentir do lucrativo e poderoso mercado que se criou em torno da figura de Cristo.

Piauí: Sem fiéis, sem dízimo, sem palanque

Há sociedades que nós classificaríamos como religiosas que nem sequer possuem o conceito de religião, porque não fazem separações conceituais que nós fazemos e nas quais acreditamos cegamente. A coisa é muito mais complicada e não se resolve com um mero apontar o dedo contra as religiões e denunciá-las como formas de servidão mental e manipulação. As pessoas são mais complicadas que nossos mais elaborados esquemas.

Flying Spaghetti Monster - Wikipedia
É verdade que às vezes me divertiam as gozações do ativismo ateu, o humor abranda a gravidade de tudo. E já preenchi um par de formulários me declarando pastafarian.

E o caso é que o ateísmo pode ser também uma forma de ativismo, tem gente que se crê soldado do ateísmo — o soldado do bem, só que sem o bem. Um soldado, com ou sem o bem, é um soldado, não é alguém dado à reflexão, mas à ação e à obediência. A reflexão exige tempo, ponderação e o bom exercício do juízo (autonomia). É certo que temos nos acelerado absurdamente, mas nunca até o ponto de que coincidam a urgência de nossa necessidade de ação (intervenção) e o tempo necessário ao exercício do juízo. Se até os processadores tem limites físicos de aceleração no seu processo de desenvolvimento (aumento da frequência), não somos nós quem vamos ganhar essa corrida — nós, seres primitivos e puramente biológicos.

Ainda que eu valorize a reflexão e a reflexividade ao ponto de aceitar seu lado, digamos, sombrio — a instabilidade, o relativismo, a dissonância — isso não significa que estou livre dos hábitos, especialmente dos hábitos de pensamento. Quando me interesso por fenômenos fora do espaço da ciência, eu os observo com um olhar analítico do qual não sei me despir. Tudo começa já ao categorizá-los como fenômenos, com a separação e a rotulação. Por exemplo, a meditação como fenômeno. Duvido que em alguma cultura oriental, que a incorpore como parte fundamental das suas práticas, trate a meditação em termos estritamente materialistas. E pra mim é difícil me esquivar dessa tendência. A verdade é que faz muito sentido, digo, a redutibilidade materialista é fascinante. No vídeo abaixo, essa tendência se revela numa perspectiva orientada ao Business. Há um enorme mercado de produtividade, um mercado onde circula muito dinheiro porque os clientes desse mercado são os CEOs de empresas importantes da nossa amada economia globalizada.

Imagine quanto dinheiro esses caras não ganham fazendo consultoria pra jovens empresários querendo ser Brilliant every single day. Por preconceito, eu só consigo pensar em American Psycho.

A meditação me atraí, mas como método milenar de controle da variabilidade da frequência cardíaca. E faz muito sentido. Dada nossa constituição biológica, os níveis fisiológicos mais fundamentais determinam os processos corporais e mentais mais complexos. Aí de repente me vejo enrolado na consideração histórica do debate sobre a ascendência do corpo sobre o mental, ou da posição contrária, a força determinante do espiritual (ou mental, a res cogitans) sobre o material; ou ainda à crítica ao dualismo nas neurociências. E mais uma vez imensamente distante de qualquer coisa que não seja intelectual.

É difícil para um ateu livrar-se das lentes do ateísmo, pois, em geral, o ateu crê que não usa lentes. Todos os outros usam, não os ateus. Os ateus veem o mundo objetivamente, como ele é. Eles adotam uma atitude imparcial e desde essa perspectiva veem o mundo objetivamente, sem valores — como naquele livro de fatos de que Wittgenstein fala na Conferência sobre ética, um livro que conteria a descrição total do mundo e onde não estaria nenhum juízo de valor. No Tractatus Logico-Philosophicus há um comentário que explica muito da atitude cientificista e ateísta.

A lógica preenche o mundo; os limites do mundo são também seus limites.

Wittgenstein,Tractatus Logico-Philosophicus 5.61

Não há um lado de fora, a lógica preenche o mundo. Quem crê que existe um lado de fora do campo da determinação (lógica ou natural) está apenas se iludindo e inventando uma desculpa pra não lidar com sua imensa ignorância sobre o mundo (e com o sentimento que essa ignorância traz). As pessoas que acreditam na ciência se esforçam para compreender o mundo, para explicá-lo, por mais que saibam que talvez nunca possamos esvaziar o imenso reservatório da nossa ignorância (é preciso reservar um espaço lógico para a indeterminação), eles se empenham diariamente em conhecer mais. Supor um lado de fora é uma posição comodista, preguiçosa e anticientífica.

Nem todo mundo postula um lado de fora do espaço lógico como resposta preguiçosa a um problema teórico. O lado de fora se coloca mesmo dentro da própria lógica, com o problema da cegueira normativa, por exemplo. E essa discussão poderia tomar o rumo da discussão de Wittgenstein sobre a antropologia, as Observações sobre o Ramo de Ouro e suas respostas a Frazer. Mas eu prefiro usar Nietzsche, pra não perder o costume.

A necessidade do ilógico. — Entre as coisas que podem levar um pensador ao desespero está o conhecimento de que o ilógico é necessário aos homens e que do ilógico nasce muita coisa boa. Ele se acha tão firmemente alojado nas paixões, na linguagem, na arte, na religião, em tudo o que empresta valor à vida, que não podemos extraí-lo sem danificar irremediavelmente essas belas coisas. Apenas os homens muito ingênuos podem acreditar que a natureza humana pode ser transformada numa natureza puramente lógica; mas, se houvesse graus de aproximação a essa meta, o que não se haveria de perder nesse caminho! Mesmo o homem mais racional precisa, de tempo em tempo, novamente da natureza, isto é, de sua ilógica relação fundamental com todas as coisas.

Nietzsche, humano, demasiado humano, 31

A relação fundamental com todas as coisas é algo que sinto que devo resgatar (resgatar?!) depois de estar por tanto tempo usando as lentes do ateísmo. Como um desafio, não intelectual, mas espiritual. Enxergar o que não fomos treinados a ver é um imenso desafio, porque exige uma nova espécie de atenção, uma atenção que está constantemente sob ameaça de ser de novo tragada para as engrenagens analíticas do racionalismo, da minha tendência lógica e intelectual. É difícil aceitar a indeterminação porque aceitá-la exige mais que virtudes intelectuais, requer a coragem de quem ama o destino e é capaz de dizer sim a todas as coisas, não fugir do necessário — abandonar a ilusão do controle (que é o motor da ciência) e cruzar as fronteiras do ateísmo em direção a algo não inteiramente conhecido.


Antonius Block ainda é um dos meus heróis.

Os iconoclastas, a vontade de seguir e a incapacidade de dizer

De onde vem a vontade de liderar? Alguém se pergunta honestamente sobre isso? Os líderes se perguntam? Uma resposta honesta pode ser o freio de mão de muitos impulsos. Everybody wants to rule the world, canta o Tears for fears. O desejo de liderar não é tão diferente do desejo de influenciar. Ele traz a marca do poder, desse poder que seduz porque alimenta egos sedentos pela confirmação de que são tudo que supõem ser.

Embora o desejo narcisista (e inconsciente) de liderar/influenciar seja como uma criança mimada que exige nossa atenção constantemente, há uma contraparte quase tão silenciosa quanto significativa. Dostoievski falava dela no Grande Inquisidor (em Irmãos Karamazov), das massas que a Igreja atraiu e recrutou oferecendo pão — enquanto Jesus oferecia o deserto e a fé. Sartre falava dela quando notava o fardo da liberdade, a paradoxal ânsia de libertação que ela inspira. Para cada tirano que gostaria de governar o mundo com mão de ferro há mil pessoas dispostas a segui-lo, sacrificando sua liberdade na fogueira do fanatismo.

Se cada um fosse capaz de dizer suas próprias verdades — ainda que ninguém as escutasse — talvez o mercado dos líderes e iconoclastas fosse mais enxuto. E talvez a gente pudesse se escutar melhor, com mais justiça. Mas o que predomina são a vergonha e as bolhas. A vergonha que nos impede de dizer e as bolhas onde é seguro se expressar. É verdade que de tempos em tempos os estúpidos perdem a vergonha, ressentidos por nunca serem escutados — e também porque o mundo não é regido pelas regras ridículas que eles creem que nos salvariam do caos —, mas os estúpidos jamais teriam a coragem de abrir a boca para se manifestar se não se sentissem amparados pelo respaldo de figuras públicas.

O mercado da iconoclastia é grande porque é grande a covardia, apesar da algazarra. Apesar dos gritos. Quando as pessoas veem outras dizendo o que elas creem ser verdadeiro logo também se animam a se expôr. Mas os iconoclastas profissionais não tem respeito pela inteligência dos outros, estão interessados apenas em conseguir os bens simbólicos (ou não) relativos à sua posição e em manipular as pessoas em prol dos seus interesses políticos e ideológicos. Não há nada de mais em ver as coisas segundo suas próprias lentes e valores, o problema é a falta de honestidade que acompanha o desrespeito pela inteligência de quem lhe presta atenção.

Os iconoclastas profissionais não respeitam a inteligência de ninguém, não consideram senão sua própria inteligência, e mesmo quando elogiam alguns de seus cúmplices não o fazem senão no interesse de aumentar seu próprio mercado e sua influência, em nome da expansão do seu território. No entanto, nem todo iconoclasta é um mercenário do mercado de ideias, nem todo iconoclasta é um farsante em busca de uma plateia. Alguns tem a marca dos que respeitam a inteligência dos outros, mais do que isso, alguns deles aspiram por aqueles que tem coragem de pensar suas próprias ideias.

Não é curioso que o cristianismo e o pensamento do iconoclasta Nietzsche tenham igualmente a tendência de atrair hipócritas? Gente que gosta de ter a carteirinha de cristão ou de espírito livre sem nunca ter praticado um ato sequer que esteja de acordo com esses conceitos, por pura covardia. Como se uma coisa fosse o conceito de cristão e outra coisa totalmente diferente fossem as ações de quem se diz cristão. Você pode apoiar tortura, a morte e a violência e ainda assim ser cristão. Pode qualquer coisa, né? O conceito sem força é a lei pra inglês ver. Quando escrevi a tese usei a expressão histórica “lei pra inglês ver” pra ilustrar uma regra ou lei sem força normativa, pra explicar a origem pragmática (e não puramente lógica) da normatividade da lei. A mesma coisa se pode dizer do conceito de cristão, é uma categoria que não categoriza nada, ou melhor, que categoriza qualquer coisa. Quais atos deveriam ser os atos dos cristãos? Aqueles que Freud diz serem quase impossíveis, amar o próximo a si mesmo e outras coisas mais. Talvez vocês saibam o quanto eu simpatizo com a abordagem freudiana das religiões, ainda assim não diria que é impossível, mas essa é uma longa conversa. De qualquer forma, é um enorme desafio amar os outros seres humanos como a nós mesmos, um desafio que só é capaz de aceitar quem verdadeiramente tem uma grande capacidade de amar. Se o cristianismo pregasse: “odiar os outros como a si mesmos”, aí sim eu diria que essas pessoas que se dizem cristãos são cristãos de fato. Mas não é o caso e eles são apenas hipócritas.

E o séquito de Nietzsche? Só há uma opção para quem respeita a inteligência de Nietzsche: abandoná-lo. Quem o segue o trai. Não abandoná-lo com desprezo ou ressentimento, como quem se afasta de algo indesejável ou sem valor. Abandoná-lo como quem, fugindo de um perigo que o persegue, abandona o cadáver de alguém amado. Ninguém pode sentir a força das próprias pernas sem antes haver abandonado muitos cadáveres de pessoas de valor e grandiosas. O espírito de Nietzsche é translúcido como o lago Walden, mas profundo como um abismo e pesado demais para carregar. Na verdade Zaratustra é mais severo do que eu:

Agora, meus discípulos, vou sozinho! Segui vós sozinhos também. Quero-o assim. De todo coração vos dou este conselho: Afastai-vos de mim e precavei-vos de Zaratustra! E melhor ainda: Envergonhai-vos dele! Talvez vos tenha enganado.

Nietzsche, assim falou zaratustra

Nietzsche tem muitos seguidores pra alguém que achava que devia ser visto com desconfiança. A maior aspiração do pensamento de Nietzsche é servir como uma escada — como a escada do Tractatus Logico-Philosophicus — que uma vez usada deveria ser imperativamente abandonada. Embora a escada seja útil, ela é apenas um meio e ninguém pode andar com desenvoltura carregando uma escada. Ninguém pode dançar segurando esse fardo.

Essa é uma curiosa forma de influência. A mais estimulante forma de influência sobre o pensamento humano é aquela que sabota sua própria força influente em favor da erupção de uma singularidade, em nome do nascimento de uma certa consciência. Como se dissesse: use isto enquanto for necessário, depois que estiver forte o bastante você deve fabricar suas próprias ferramentas e então abandonar as que lhe dei. Às vezes me envergonha usar uma linguagem quase utilitarista, mas é que é preciso lembrar que a linguagem não é nada mais que ferramenta (a matemática é uma ferramenta), pra que não nos transformemos em escravos da gramática — outra lição do pensamento nietzscheano.

A “razão” na linguagem: oh, que velha e enganadora senhora! Receio que não nos livraremos de Deus, pois ainda cremos na gramática…

Nietzsche, Crepúsculo dos ídolos, §6
(II. A “razão” na filosofia)

A influência narcisista e a manipulação dos iconoclastas profissionais tem efeitos irrisórios e insignificantes porque partem de pessoas que não acreditam realmente na inteligência dos outros, apenas encenam o teatro dessa crença — às vezes com bastante competência. A verdadeira crença na inteligência alheia acompanha um sentido profundo de justiça que avalia cada um com enorme cuidado, caso a caso. Os preconceitos tem lugar, já disse isso há mais de dez anos, mas como ferramentas provisórias e heurísticas na constituição de conceitos e ações regidas pela justiça. O respeito pela inteligência alheia tem uma enorme força porque transforma a todos nós na melhor forma de influência: no solo onde outras consciências sentem-se a vontade para medrar.

Essa é uma maneira interessantíssima de introduzir a ideia de conceito (e categoria) e uma valiosa explicação do seu impacto ético. O vídeo tem legendas em português em CC.

Esse texto faz parte das discussões da psicologia androide, da gênese da psicologia androide. Do nascimento da consciência, natural ou artificial, já que em certa medida o nascimento das diferentes formas de consciência coincide neste ponto: são ambas uma emancipação das regras de determinação do hardware.


Por acaso, há poucos dias topei com uma observação valiosa de Jung. Ele lembrava que Nietzsche era filho de pastor e que os sermões devem ter tido sobre ele uma enorme influência.

Poder-se-ia dizer que o próprio Nietzsche tinha um outro lado que necessitava uma linguagem forte, e todos os sermões dirigem-se principalmente a ele mesmo. Devem lembrar-se que ele era filho de um pastor e que presumivelmente houve alguma herança. Eu sei o que isto significa. (…) Ele necessitava uma linguagem forte para derrubar aquele homenzinho tão esmagado pela
tradição.

Carl Jung, Seminários sobre o zaratustra de Nietzsche