Toda metáfora tem aspectos que podem ser percebidos como limitações por permitir que se enfatize coisas indesejadas. Isso porque a metáfora não quer (espelhar || representar) aquilo que tematiza, a metáfora quer justamente falar de algo da perspectiva de um “ver como”. A névoa permanente pode ser uma excelente metáfora para ilustrar a passagem entre dois mundos, mas ela tem o grande inconveniente de ilustrar apenas o negativo. Ninguém saúda a névoa como uma coisa boa, como fonte de possibilidades positivas e desejáveis, mas passar a outro mundo pode sim ser algo bom (embora em certo sentido seja sempre doloroso).
O valor da metáfora está em apresentar de forma muito clara e visual a circunstância de ver o mundo de uma nova forma, de vê-lo a partir de novas cores, com novas lentes.
Inevitável não pensar em Stephen King e na maravilhosa adaptação do seu livro ao cinema, esse filme é um clássico pós-moderno, O nevoeiro (2007):
Não achei nenhum trailer em português (dublado ou legendado)
Podemos nos equivocar sobre as impressões que temos de nós mesmos? É certo que é possível se iludir, mas as ilusões são na maior parte das vezes simbólicas, constructos complexos articulados a outros símbolos. As impressões costumam ser intuições, que embora inevitavelmente também se articulem ao universo simbólico, têm algo de cru e imediato; algo que, de tão direto, parece dispensar mediações. O que pode significar para uma pessoa sentir que tem dentro de si a capacidade (disposição, know how) para o mal? E como ela deve reagir a essa parte de si mesma, se a gente pode chamar assim? A repressão parece a única saída, pois não nos parece tolerável deixar que o mal em nós se expresse e se manifeste em ações. Mas reprimir o que precisamente?
Essa cena de Killing Eve é desconcertante, mas revela algo que todos os que assistem a série já sabem.
Eve tem seus momentos de Dexter.
A cena revela a naturalidade de Eve ao redor de um monte de coisas que nós abominamos: sangue, mutilações, lacerações, assassinatos, tortura, violência extrema, crueldade. No entanto, ninguém diria por isso que Eve é má, ao contrário. Ela parece doce, atenciosa, sensível, empática até, a despeito dos seus interesses mórbidos. Eve é apenas alguém que está a vontade com um dos aspectos de si mesma que a maioria de nós simplesmente reprime. A coisa não é nada simples, mas já dá para pressentir que a maldade tem outra conotação no contexto no qual o desejo de esfaquear outro ser humano é visto como algo compreensível. Continua sendo uma tarefa hercúlea convencer as pessoas a ter uma visão das ações humanas para além do bem e do mal. Hoje em dia, entretanto, o cinema, as séries podem nos familiarizar com o anormal e assim tornar nosso juízo mais plástico para compreender o que está fora do nosso campo de visibilidade (o campo normativo).
É preciso clicar em CC para ver as legendas. O Jesus de Willem Defoe e Martin Scorsese tem Lúcifer dentro de si. E o que diz Lúcifer a Cristo? Ele lhe diz ele é o filho de Deus e o próprio Deus. O medo da verdade!
Mesmo que tenhamos mapeada a maldade nesse quadro de forças plásticas que regem a vida, mesmo que possamos tratá-la com a objetividade dos Caça Fantasmas, a experiência individual da maldade raramente escapa às coordenadas da moral, isto é, raramente passa sem punição às transgressões, sem culpa e dívida. O que significa que sentir a capacidade para o mal é ter um inimigo dentro de si, ter dentro de si alguém que está o tempo todo sendo combatido. Esqueçamos por um momento a suposta pretensão de unidade do Eu, vamos trabalhar com uma ficção, <fiction> vamos supor que nossa subjetividade é uma pluralidade de Eus (egos). Seria como se cada pessoa tivesse dentro de sua cabeça tantos Eus quanto tinha Fernando Pessoa, ou como aquele personagem de Fragmentado.
Shyamalan, sempre polêmico.
Se um desses Eus é o inimigo, isso quer dizer que parte de nossa própria energia está mobilizada na repressão das manifestações do inimigo em nossas próprias ações. Não há melhor analogia que a de um sistema operacional. Ter o inimigo dentro de si é como ter um processo (uma aplicação) que drena boa parte da capacidade computacional de uma máquina, impedindo que os outros processos possam utilizar todos os recursos computacionais. Como se cada Eu fosse um Processo competindo por recursos computacionais.
O uso do processador está em níveis normais até que eu lanço um processo que consome quase todos os recursos do sistema.
A analogia é útil, mas apaga justo a presença de Lúcifer, do inimigo. Ela apaga a dimensão simbólica de ter dentro de si não um processo pesado, mas o próprio mal. O mal é sempre um outro, outra entidade que nos possui e que domina nosso corpo, enfraquece nossa vontade até tornar-se senhora de nossas próprias ações. Enquanto o mal só se reconhece como outro, somos sempre vítimas de uma entidade mais forte que nós mesmos. Mas e se nós mesmos somos o mal? E se não houver nenhuma entidade externa, mas apenas nossas próprias manifestações espirituais, quero dizer, aquelas que nós consentimos em ser seus donos e aquelas que nós atribuímos a outros que não nós mesmos. As fontes do mal são sempre externas para os moralistas, pois eles jamais se reconhecem como fontes do mal, o mal nunca nasce deles.
Reconhecer apenas fontes externas do mal é quase sempre cultivar o auto ódio, é alimentar esse conflito interno entre diferentes Eus. Mas este é apenas um cenário fictício, pois nosso marco teórico estabelece que o Eu é uma unidade e não uma pluralidade, não pode haver mais de um. </fiction>
A capacidade para o mal, essa presença precariamente represada, busca pretextos, motivos para se materializar em ações. E é bom que, mais uma vez, a ficção torne real um pensamento, ou o apresente ao seu modo. Dexter apresenta situações nas quais se vê o pretexto para expressar o mal, o irrecusável convite para usar o mal como uma ferramenta. O problema é que quem usa o mal como ferramenta sempre acaba corrompido pelo seu poder. Como Smeágol e como Isildur antes dele. O mal não é uma ferramenta, é um senhor, mestre orgulhoso e cruel, que não aceita senão completa submissão. Não terminei de ver Dexter, vi pouco mais de uma temporada, na verdade, mas a série atrai por normalizar certas estranhezas que parecem muito comuns. Estranhezas que Killing Eve também tem no radar, e também Sharp Objects, The Sinner, Mr Robot, True Detective, The Servant, a lista é quase interminável. Essas séries, claro, abordam esse aspecto de modo muito mais elaborado que Dexter.
O que fazer com o mal dentro de si? O que fazer com a inconfessável empatia que às vezes podemos sentir pelos que praticam as piores ações, a indeclarável certeza de que somos como eles, de que não há nenhum homem pior que nós mesmos? Esse não é um problema teórico, mas um problema prático (ético, terapêutico).
O terror tem se tornado o único gênero que consegue dar conta daquilo que está mais-além da cegueira normativa, mais além do espaço de estabilidade constituído pelas normas. As possibilidades são infinitas, isto é, o normal estabiliza e nos fazer sonhar com a determinação, mas o lado de fora é inesgotável (indecidível). Fiz uma lista com alguns filmes de Terror ricos em sentidos e perspectivas, que abordam de forma incomum temas inesperados, em contextos inesperados, como: It follows, It comes at night, Aniquilação.
A todo momento ideias de Jung e Nietzsche são encenadas nos capítulos de The Sinner. E essas ideias são fundamentais na construção de toda a história, especialmente na segunda e terceira temporadas. A sombra é uma delas, aliás, a sombra e o abismo.
Não é preciso estar só para desejar encontrar os outros. Sempre tive bons amigos e amigas e mesmo assim tinha também a vaga aspiração de encontrar pessoas como eu. Que merda é essa, “pessoas como eu”? — Eu não saberia explicar! Não é como se eu tivesse uma lista de critérios, ou como se existisse uma identidade comum que eu pudesse apresentar quando perguntado, era mais como a ideia imprecisa de uma atmosfera que eu reconheceria se a encontrasse. E durante muito tempo acreditei nisso. Quando eu fui pra São Paulo, em 2010, aos 29 anos, já não era jovem o bastante para ser ingênuo e ainda assim ainda acreditava que poderia encontrar essa atmosfera que eu buscava.
É como se, instintivamente, eu aspirasse desde jovem pertencer a uma atmosfera semelhante a de Paris da primeira metade do século XIX, a Paris iluminada pela presença de Alexander von Humboldt. Hoje em dia eu penso que é preciso reconhecer a amizade — as pessoas que encontramos ao largo da vida e com as quais, com sorte, criamos nossa própria atmosfera — mas também constatar que as atmosferas como a de Paris já não existem mais. Somos talvez muito individuais (egocêntricos) para formar algo tão gasoso como uma atmosfera e nossa ciência já não tem mais nada de poético, ela no máximo pode ser robótica. O que eu quero dizer é que talvez seja preciso reconhecer o exílio e abandonar o sonho (ingênuo?) da atmosfera, reconhecer o caráter intransponível daquilo que nos separa. Os encontros são fortuitos e não podem ser provocados, isto é, não podem ser induzidos por ações instrumentais como aquelas de quem domina uma técnica de manipulação de séries causais. No entanto, o exílio pode ser evitado (embora o solipsismo não).
A visão no sentido literal é inegavelmente importante e central, mas a visão no sentido espiritual é ainda mais ampla e irredutível (porque inclui a imaginação). David Shrigley
O caso é que a gente só consegue ver essa atmosfera quando consentimos em agir fora dos trilhos da normalidade e nos permitimos ser estranhos. (Pouca gente é estreita demais para não ser estranha, a maioria está apenas acomodada na estabilidade do normal.) Quando nos permitimos agir assim podemos ver nos outros as nossas próprias estranhezas e passamos a estar mais a vontade entre estranhos. Estar a vontade é tudo! Mas é preciso coragem para estar a vontade num mundo como o nosso, onde ainda há tanto que temer.
Talvez essa atmosfera fantasiada não seja nada mais que um ambiente formado pelo predomínio da amizade. Em O sofrimento do jovem Werther, Werther fala saudoso sobre como na presença de uma amiga ele sentia superar-se, “tornando-me tudo aquilo que serei capaz de ser”. Numa entrevista que eu já mencionei aqui, Yamandu Costa fala sobre o que é ser amigo, ele diz: “uma coisa que me chama atenção nos meus amigos é como minha figura melhora quando eu tô com eles”.
Yamandu fala sobre o que é ser amigo aos 7’08”, o vídeo já está no ponto da sua fala.
Há algo na amizade que só se pode mencionar usando os verbos fortalecer, nutrir, e que nos impele em direção a nós mesmos. Algo que nos permite aceitar a transformação — a perda da autonomia — sem que isso nos pareça um ônus, um preço muito caro.
O encontro e a abertura oferecem oportunidade para que venham a tona aspectos desconhecidos de nós mesmos, aspectos que nunca tiveram ocasião de aparecer porque não podem ser adequados ao normal (ao princípio de realidade, poderíamos dizer). A experiência da conexão com os outros talvez se mostre de modo mais tangível no trabalho dos atores, e assim conclui Amy Cuddy numa conversa com Julianne Moore:
— Parece que quando você se torna presente, permite que os outros estejam presentes. A presença não torna você dominante no sentido alfa. Na verdade, permite que você ouça as outras pessoas. E que elas se sintam ouvidas e se tornem presentes. Você pode ajudar as pessoas a se sentirem mais poderosas, ainda que não consiga lhes dar poder formal. Ela fez uma pausa e seu rosto se iluminou. — Isso! E quando isso acontece, quando sua presença consegue evocar a presença delas, você eleva tudo – concluiu.
Amy Cuddy, presença
Presença é o nome do estado em que nos encontramos disponíveis e abertos aos outros, sem qualquer sombra de ameaças nem distúrbios. A amizade talvez seja então uma circunstância natural em que nos sentimos presentes, é quando encontramos, por acaso, pessoas que nos fazem presentes, com quem podemos estar sem máscaras e aprender a agir autenticamente. Pessoas com as quais nossas inibições se desarmam, que nos induzem a uma lucidez indescritível (como descrever a lucidez?) e com quem aprendemos verdadeiramente quem nós somos. É como se antes disso não apenas não soubéssemos quem somos, mas não pudéssemos saber. É claro que o acaso é importante já que não podemos induzir instrumentalmente encontros, mas a presença sublinhada por Amy Cuddy também os favorece, pois a presença aguça nossa capacidade de vermanifestações de inteligência.
A ipseidade, a singularidade da nossa própria vida quase nos compele ao exílio, ou pelo menos no meu caso, me empurra em direção à misantropia. Então parece como se fosse necessário um novo olhar, um olhar que fosse capaz de ver o que está cifrado na convencionalidade, sob pena de enxergar nada senão superficialidade por toda parte. Tornar visível o que não se vê, fazer medrar dentro dos outros uma semente que já se encontra lá. Aprender a reconhecer o outro em si e o si no outro, como se ali existissem não dois, mas um, talvez seja a única maneira de deixar o exílio e de dar lugar a uma atmosfera que não pode ser senão a confluência de muitos (brainet).
Uma das coisas mais legais dessa cena pela qual eu sou apaixonado é que ela contém múltiplas camadas. E numa delas Rachel Menken escancara a desconexão de Don Draper, o fato de que ele não pode experimentar a vida senão como um teatro cínico e despojado de verdade onde tudo parece insípido e artificial.
Primeira temporada de Mad Men. A melhor parte é quando ela assume altivamente que é a própria medida do interesse e que diz que não lhe interessa ouvir inconvenientes na vida de Draper.
A norma é o padrão de medida — como o padrão metro, ou polegada, ou pés, etc. — que define o que está conforme ou não ao que ela determina. É certo que no que se refere aos padrões de medida as gradações importam, enquanto que, quando falamos de normalidade e normal, tendemos a ver o que se determina em termos dicotômicos, separamos o normal e o não normal (ou anormal). Mas o anormal, aquilo que não se ajusta à regra, é parte do espectro mapeado pela norma, não está no lado de fora.
A impossibilidade de um lado exterior (um lado de fora) é uma questão importante em lógica. A lógica se ocupa do mais geral e a existência de um lado de fora supõe a possibilidade de pensar o impensável, o ilógico. O que está do lado de fora do que é lógico é ilógico e sem sentido. Portanto, se não podemos pensar o ilógico é porque a lógica preenche o mundo sem deixar espaços vazios. Embora a ciência não possa se ocupar da mesma maneira com o geral, ela tem também grandes ambições. A ciência também define uma totalidade (embora o que está do lado de fora não seja impossível, como na lógica), de tal maneira que não admite, assim como a lógica, um lado de fora. Por isso, por mais inusitado que seja um fenômeno com que uma ciência se ocupa, ele estará sempre no radar de suas normas — ainda que como um caso singular (um outlier, pensando em termos estatísticos). Isso significa que a ciência não precisa e não deve utilizar o termo paranormal para designar eventos inexplicados, de outro modo ela estaria admitindo não apenas que não sabe algo, mas também que não pode saber.
Todo quadro normativo nos apresenta o mundo como se não houvesse um lado de fora ao campo constituído por suas regras prescritivas, eu chamo isso de cegueira normativa. A cegueira normativa é fenômeno psicológico, embora pareça ter bases lógicas. Não há nenhuma barreira lógica que nos impeça de entender uma contradição.
As regras da gramática são num mesmo sentido arbitrárias e não arbitrárias, como a escolha de uma unidade de medida.
Wittgenstein, big typescript
Ou melhor, claro que há. Ao dizer uma contradição você viola uma das leis básicas da lógica, mas nada te impede de dizer, por exemplo, “Chove e não chove!”. De maneira geral ninguém faz uma afirmação fatual tão categórica usando contradições, porque salta os olhos o fato de que a gente não sabe o que fazer com esse tipo de enunciado. Mas os contextos mais amplos permitem que uma contradição diga coisas importantes sem parecer sem sentido, como no comentário de Wittgenstein acima — um dos tantos em que ele usa contradições para dizer coisas importantes. O que eu queria dizer com esse arrudeio é que a cegueira normativa não se explica pela lógica, mas pela psicologia. Pela necessidade de estabilidade exigida por nossa saúde mental, pela necessidade de acordos. Se bem que, pensando melhor, não há porque dizer que a psicologia exige a estabilidade, pois sem acordos fundamentais tampouco pode haver linguagem e lógica (sem suficiente regularidade). Por isso grande parte das reflexões sobre a lógica e a linguagem desde o século XIX até hoje estão ocupadas em dizer as condições de possibilidade do sentido.
Se algum incauto ainda resistiu a esse tormento estará se perguntando qué coño tiene todo eso que ver com o paranormal? O paranormal é a afirmação de que a ciência necessariamente tem um lado de fora inalcançável. Dizer que a totalidade dos fenômenos conhecidos pela ciência não é a totalidade do real é uma trivialidade, pois todos aceitam que ainda temos muito o que conhecer. Contudo, dizer que há elementos do real que por sua constituição escapam ao que a ciência pode descrever é outra coisa, é afirmar uma limitação constitutiva dos nossos próprios instrumentos epistêmicos. O paranormal vai um pouco por essa linha.
Holly Gibney (Cynthia Erivo) em Outsider.
Na verdade na verdade, esse texto é inteiramente motivado pela série Outsider, pelo modo engenhoso como ela apresenta a ideia do paranormal. Uma série que fala do bicho papão (boogeyman, el cuco, etc.) é no mínimo curiosa. Não acho que ela seja pra todo mundo, mas eu gostei bastante justo porque a paranormal em questão (Holly Gibney) é apresentada não como uma fanática por coisas ocultas, mas por uma espécie de Sheldon Cooper resignada pela impossibilidade de explicar seus dons (maldições?).
Num dos episódios da série Holly conta como chegou a ser internada por seus pais porque eles (lamentável e compreensivelmente) se assustavam com suas capacidades, com sua memória prodigiosa, por exemplo, capaz de reter os mínimos detalhes das coisas — quase como um Funes, el memorioso. Não é triste que a necessária estabilidade que nos permite a comunicação seja também a própria barreira que nos impede de enxergar coisas belas nos outros? Que nos espante o que foge à norma e que o costume do normal torne certas coisas simplesmente invisíveis?
Quando se encontram dois princípios que não podem ser reconciliados, seus partidários se declaram mutuamente loucos e hereges. — Wittgenstein, Sobre a certeza
O convencional é uma árvore sólida e de longas raízes à margem do rio da loucura. Essa imagem tem algo de ilustrativo embora não seja mais do que isso, uma imagem. A convencionalidade visa a estabilidade e pra isso criamos regras e leis, para predizer, ordenar, determinar e eliminar a sorte e o acaso — a arbitrariedade, em suma. A loucura é justo o oposto, é a irrazão, aquilo que não tem regra e que não se orienta por nenhum acordo. A loucura é o distanciamento da comunidade de acordos representada pela própria linguagem. Entre os dois pontos há uma margem de extensão fluída, a excentricidade.
Há dois anos espero o retorno de Mindhunter (Netflix), é uma das minhas séries preferidas. Holden Ford é a representação da convencionalidade, ao menos na aparência. Quando começa uma relação com Debbie (sua namorada, ou ex), Holden é quase conservador do ponto de vista do comportamento sexual. Mas ele não é apenas isso. Curiosidade e abertura de espírito fazem com que aprenda rápido e logo ele parece se transformar pela influência da namorada e pela experiência nas entrevistas com criminosos condenados por crimes violentos. Nas cenas em que fala com eles é evidente o esforço para realçar o constrangimento das pessoas que acompanham seu diálogo com esses criminosos. É como se eles fossem cúmplices um do outro (queria poder recortar e publicar essas cenas no Youtube, mas não posso, só me resta a imagem acima). A capacidade de compreensão quase chocante manifesta em sua linguagem, no modo como ele se expressa, não é mero fingimento, Holden deveria saber. O trabalho do ator não é fingir nem imitar, mas ser — eu já disse um par de vezes. Não se pode encenar (stage é o verbo que a namorada dele usa) e fingir cumplicidade com um assassino a menos que em alguma medida nós também sejamos como ele (o que não significa ser também um assassino). Você pode entendê-lo analiticamente, descrever com razoabilidade os fatos envolvidos, apresentar causas convincentes e sólidas, enfim, mapear toda a cadeia causal sem deixar uma ponta solta e ainda assim não ser capaz de entendê-lo senão analiticamente. Esse é o lugar de Wendy na série, ela representa a compreensão analítica (com enorme sensibilidade e paixão, é verdade, mas ainda assim sem a intuição e a abertura de Holden).
Killing Eve é outra série que dá espaço à excentricidade, a esse caráter weird que temos encontrado tão frequentemente em filmes e séries (Sharp Objects, Sinner, só pra ficarmos em dois outros exemplos de séries). No primeiro episódio, numa das cenas que eu mais gosto, Eve pergunta ao marido como ele a mataria, se pudesse. Desconcertado pela pergunta ele responde a primeira coisa que lhe passa pela cabeça. A continuación, ela apresenta rápida e serenamente sua própria resposta, um plano absurdamente meticuloso para matá-lo e livrar-se do seu corpo. A pergunta e a resposta revelam algo dela. (Infelizmente não posso subir a cena a nenhuma plataforma [por problemas com direito de exibição], mas quem estiver curioso pode clicar aqui e baixe o vídeo [2.3Mb] no Megaupload).
O convencional nos confina a um espaço limitado e asfixiante em nome da ordem, da previsão e do controle. E quem se distancia do convencional corre sempre o risco de caminhar em direção ao rio da loucura. Antes, no entanto, é quase inevitável passar pelo campo da excentricidade. A excentricidade é o espaço reservado, às vezes secretamente, para o que não é convencional, para o que é singular (mesmo que se repita, em alguma medida, em outras pessoas). Pensar meticulosamente como matar uma pessoa pode ser um indicativo do florescimento do excentricidade. É fácil imaginar como essa permissão concedida à excentricidade pode degenerar em algo indesejável. Ainda assim, não poucas vezes é imprescindível lhe conceder algum espaço se precisamos descobrir quem nós somos, pois somos isso que sobra uma vez removido aquilo que se fixa por repetição/imitação, o convencional. Somos os desejos e as ações que se seguem a esse abandono, se ainda nos restar coragem para desejar. Se estamos à vontade para nos afastar do convencional sem nos sentirmos estranhos, criaturas entrevistas pelos outros como bizarras, não sem algum desprezo, podemos ser quem nós somos. Deitar as máscaras da civilização e forjar uma nova máscara — Clarice tinha razão sobre a necessidade de forjar uma máscara. Se conseguimos superar a difícil barreira do olhar judicativo e convencional dos normais recebemos como compensação um indiscritível gosto de liberdade. É como encontrar uma clareira depois de estar por dias dentro de uma floresta fechada.
Passo por uma rua e estou vendo na face dos transeuntes, não a expressão que eles realmente têm, mas a expressão que teriam para comigo se soubessem da minha vida, e como eu sou, se eu trouxesse transparente nos meus gestos e no meu rosto a ridícula e tímida anormalidade da minha alma. Em olhos que não me olham, suspeito troças que acho naturais, dirigidas contra a excepção deselegante que sou entre um mundo de gente que age e goza — Livro do Desassossego
Sem uma dose de excentricidade é difícil escapar à cegueira normativa. Não se pode pensar o ilógico e a lógica preenche o mundo, de um ponto de vista lógico não pode haver alternativas ao nosso modo de ver o mundo, o campo normativo não tem um lado de fora (a lógica aqui não é mais que um nome vago com o qual designamos as leis mais gerais do sentido sem precisar dar maiores explicações). Portanto ou admitimos que há quadros normativos orientados por eixos distintos e incomensuráveis em relação aos nossos próprios quadros ou acabamos servos da nossa tendência à confirmação (que não é uma tendência lógica mas psicológica, estrutural e temporal, que visa estabelecer um grau mínimo de estabilidade necessário à sanidade mental e aos acordos linguísticos).
A disposição a escapar às normas que estruturam uma visão de mundo é essencial para ampliar nossa capacidade de entendimento embora provoque, como efeito colateral, a instabilidade. A instabilidade é quase sempre indesejada, seja do ponto de vista social, seja do ponto de vista psicológico. Assim, nos encontramos ante um dilema. Diante de uma sociedade globalizada parece imprescindível ampliar o entendimento e sedimentar uma mentalidade capaz de compreender mesmo o que não se orienta por nossas regras mais fundamentais. No entanto, vivemos numa era patologicamente obcecada pela determinação e pela estabilidade. Numa sociedade orientada à determinação o diferente é potencialmente representado como o incorreto, o falso, o ignorante, ou qualquer outro signo negativo do bivalente espectro normativo. Ao mesmo tempo que parece necessário flexibilizar padrões normativos para compreender a erupção (às vezes sorrateira) de desejos e interesses fora do campo convencional, a adesão a um quadro de normas dominante estimula a convicção e o fechamento, de todo contrários a essa abertura.
Superar a tendência à adesão incondicional às nossas normas exige um modelo de educação distinta, uma educação orientada à mudança (e não à estabilidade). Implica também estimular a reflexão a tal ponto de permitir que ela eroda as suas próprias bases — não é uma tarefa trivial. As instituições são dispositivos orientados à estabilidade, portanto não podem ser vetores de transformações radicais (infelizmente tampouco as instituições educativas). No entanto, a julgar pela frequência com que as artes visuais tem feito desfilar personagens excêntricos e pouco convencionais, sensíveis ao que antes não ousaríamos nem sequer mencionar, talvez uma mudança subterrânea esteja em curso. Uma mudança posta em marcha não pelo ímpeto determinante da nossa sociedade, mas por variáveis que nos escapam. É sem dúvida um sinal interessante.
José Medina, que é um craque, faz uma distinção ilustrativa entre dois tipos do que ele chama de fricções epistêmicas, encontros em que perspectivas de mundo se enfrentam porque se veem como incompatíveis. O subtítulo do artigo, que infelizmente não está na internet, é igualmente ilustrativo: a necessidade de ir a iterações epistêmicas específicas. É uma discussão que interessa não apenas ao debate sobre normalidade e convívio entre diferentes quadros normativos, mas também ao momento político que vivemos hoje no mundo:
Fricções epistêmicas benéficas ocorrem quando perspectivas epistêmicas e pontos de vista se desafiam e resistem um ao outro em nome do mútuo enriquecimento (em nome do aprendizado, do entendimento, da identificação e correção de limitações epistêmicas, etc). Fricções epistêmicas prejudiciais ocorrem quando uma perspectiva epistêmica monopoliza ou enviesa as dinâmicas epistêmicas a fim de esmagar o dissenso, neutralizar alternativas, silenciar vozes dissonantes ou bloquear a resistência.
PS. Este post se enquadra num conjunto de textos sobre a normalidade e os efeitos lógicos e pragmáticos das normas. Embora aqui as séries sejam o elemento ilustrativo, os filmes, e em especial os filmes de terror, tem explorado a excentricidade de modo brilhante. Tenho vontade de escrever sobre como esse gênero (surpreendentemente) se transformou num dos principais gêneros do cinema nos últimos anos.
Duas coisas são especialmente difíceis de aprender (de saber imitar): fingir e tocar. Isto é, saber fingir e saber tocar. Porque saber essas coisas exige prática e sensibilidade. Em certa medida a função essencial da atriz, do ator, é fingir. Fingir até que sua atuação, seu fingimento, seja real. Seja real, não pareça. Aqui, a fronteira que separa o aparente do real, ou a fantasia do real, não tem nenhuma função. Essa fronteira é como um guarda que protege um cemitério de poetas, o que ele está fazendo ali? Guardando o quê? Em nenhum momento ninguém perde de vista a distinção entre a encenação e a vida não encenada (existe mesmo essa vida?), ou melhor, a diferença entre os dois jogos — mas isso não torna menos real a atuação da atriz. Ao considerar um extraordinário trabalho de atuação dizer que “Parecia real!” é muito pouco. Esse comentário faz lembrar o Real desidratado de uma parte substancial dos cientistas que sucederam Humboldt — “Era real!” e só. Não há nenhuma diferença que se deixe reduzir a verdades que poderíamos constatar. A diferença não é uma química cerebral, uma certa combinação de hormônios, nem tampouco um besouro dentro da caixa, ela é apenas a diferença entre esses dois jogos pragmáticos: estar atuando e estar assistindo uma atuação. Quando o ator é ruim, aí sim surge mais claramente a artificialidade da fantasia, do faz de contas, e a necessidade da distinção, porque percebemos “a moldura do jogo de atuar”, por assim dizer, e isso tira do espectador a capacidade de viver o Real de uma outra experiência por meio do trabalho dramático. É isso o que Nicole Kidman faz em Birth, ela nos apresenta o Real de uma possibilidade impossível. (Desculpem o erro lógico, às vezes é preciso errar para contar certas coisas.) Afinal, ninguém aqui acredita em reencarnação, né? Somos homens e mulheres da ciência, essa não é uma possibilidade para a ciência, é um impossível. Então o que faz o belíssimo trabalho de Nicole, vejam só, é nos brindar com o Real de algo que não é possível. Ela o cria enquanto atua, como uma demiurga.
Mas nem todo fingimento é dramático. Há o fingimento cotidiano, que precisa ser forçosamente aprendido. Para alguém que, como eu, tem pouco interesse pelas regras e jogos sociais, qualquer situação em que é preciso fingir meu descontentamento é um parto. E assim nascem os chatos. Mas a “moldura” também se deixa ver nessa vida supostamente não encenada, na vida real, no cumprimento obediente mas artificial das regras do jogo, nesse eterno acreditar naquilo que deve ser real. Os jogos sociais nos quais se encena a representação cotidiana da vida são entediantes e muitas vezes sem sentido (pois se tornam meros automatismos), mas é preciso fingir. Sorrir, concordar e calar. Sorrir, concordar e calar. Que arte, meu Deus, só mesmo sendo ator. Fingir para agradar, para reconhecer as dificuldades dos outros, para dosificar o quanto de você os outros podem suportar. Fingir é imprescindível, ainda que isso acabe tornando raras as experiências reais de abertura e espontaneidade. Aquilo que encontramos na amizade. Às vezes buscamos essas experiências nos livros, nos filmes, nos personagens que se mostram como pessoas reais porque não sabem que são observados (mesmo quando sabem!). Eles são livres para serem reais, sua realidade é uma das infinitas expressões dessa liberdade. E daí vem essa a coisa fantástica, a redenção literária de que Rorty fala, a possibilidade de entrar em contato e se familiarizar com uma grande variedade de seres humanos — e eu acrescentaria: seres humanos reais. Porque elas são reais num sentido muito importante.
Vocês veem que não sou exatamente responsável do ponto de vista ontológico, é que os guardiões e vigilantes do Real me dizem muito pouco. Às vezes passamos toda a vida sem nunca ter a ocasião de encontrar uma pessoa tão real como Aliocha ou Esther — cada pessoa tem certamente seus próprios exemplos. Somos o pouco que sobra, aquilo que ainda resta visível, depois que vestimos a armadura das regras que nos permitem coexistir em sociedade (o princípio da realidade). Não que sejamos uma essência que precede a existência, essa é apenas uma metáfora ruim (que tem sua utilidade). É difícil reconhecer, no mundo artificial das regras que instituem a normalidade, os sinais daquilo que ainda é real e autêntico, as pessoas perto das quais podemos deitar as armas e ser nós mesmos reais. A máscara adere ao rosto. Fingir é uma arte difícil, a maioria apenas acha que engana.