A dificuldade de quem não quer ser normal

A

Normal é o que se ajusta à norma, à regra, ao que cumpre a função de lei que prescreve (sem deixar alternativas) como deveríamos ser. Não existem pessoas normais, existem pessoas mais ajustadas ao imperativo de agir conforme as normas e leis (escritas ou não). Quem, no entanto, sente o código que prescreve como devemos ser como algo impessoal e invasivo não pode deixar de sentir-se estrangeiro em qualquer lugar que esteja. E a solidão não pouca vezes nos acompanha.

(A norma é um conceito muito abstrato. Aliás, norma, lei, regra, como o próprio conceito de “conceito” são das coisas mais abstratas que há na linguagem, pois abrangem e manipulam desde elementos notoriamente abstratos como números e proposições completamente formalizadas até componentes que, não sendo precisamente concretos, se referem a coisas concretas, como a norma que nos instrui a usar a palavra “vermelho” ou o conceito de “mulher”. Assim, a norma e o peso da normatividade podem se fazer sentir para quem não se ajusta a padrões físicos — por sua cor, por sua condição corporal e fisiológica, etc. —, mas também para aqueles que, conforme os padrões estéticos e até mesmo comportamentais, não pensam nem desejam conforme a norma, e é especialmente esse último caso que me interessa.)

Um exemplo desse desajuste é o de Sylvia Plath. Li por acaso A redoma de vidro e li não sem o contentamento que podemos sentir ao reconhecer um igual. É bem verdade que eu nunca senti o tipo de impulso que resulta do esvaziamento de hormônios como a dopamina e a apatia enfermiça que manifesta a completa falta de desejo, mas ainda assim reconheci nela o impulso vagamente comum de questionar e estranhar aquilo que se impõe como obrigatório na vida cotidiana. No começo do livro esse descompasso aparece acentuado no desajuste aos papéis prescritos às mulheres, Sylvia (ou melhor, Esther, pois o livro é uma ficção autobiográfica) não estava interessada em ser secretária, em casar-se com um homem bonito e insosso e constituir uma família com filhos. Não que ela não pudesse sonhar ou mesmo agir conforme os padrões, em certas ocasiões ela se imagina casando com esta ou aquela pessoa, mas esse desejo é algo entre o estimulante fascínio que se exerce sobre nós a fantasia com o impossível, o paralisante exercício de se imaginar transpondo as fronteiras do possível (do que pode acontecer), e a constatação dolorosa que se segue disso, isto é, da força desses limites. Acima de tudo, lhe incomodava que o seu desejo não tivesse nenhum lugar naquele mundo cheios de normas, onde as mulheres deveriam ser assim ou assado. Por exemplo, diante da sua paixão pela poesia, seu pretendente tinha uma atitude ilustrativa que Esther descreve assim:

Também lembrei de Buddy Willard dizendo com uma voz sinistra e sabichona que depois que tivéssemos filhos eu me sentiria diferente e não teria mais vontade de escrever poemas. E me ocorreu que talvez fosse verdade aquela história de que casar e ter filhos era como passar por uma lavagem cerebral, e que depois você ficava inerte feito um escravo num pequeno estado totalitário.

A normalidade é de fato como a escravidão, mas uma escravidão voluntária, pois supostamente tranquilizadora, capaz de restituir a segurança e a estabilidade perdidas ou de constitui-las caso nunca as tenhamos experimentado. Afinal, estabilidade e segurança é o que nós buscamos, não? A dificuldade em ser normal parece, portanto, uma certa desconfiança a respeito do caráter meramente regulador das normas e regras, uma lucidez em relação ao teatro em que inadvertidamente estamos inseridos (aquilo que Goffman chama de representação do eu na vida cotidiana), de suas exigências e imperativos. Não há, suspeita Sylvia, nenhuma garantia de que satisfeitos esses requisitos estaremos realizados e, enfim, felizes. Mais do que isso: enquanto empenhamos nossa energia em cumprir roteiros prescritos de fora (heteronomia), olvidamos nossos próprios desejos, soterrados sob o peso do que se espera de nós, daquilo que deveríamos ser. E não há melhor expressão dessa desconfiança e da insubmissão à norma do que uma certa relação com a própria vida. Quando encontra o primeiro médico encarregado de tratar sua prostração, Esther descreve o que esperava dele:

Ele se encostaria na cadeira e uniria as pontas dos dedos e me explicaria por que eu não conseguia dormir, ler ou comer, e por que tudo que as pessoas faziam me parecia estúpido, uma vez que todo mundo morre no final.

Ninguém pode estar efetivamente integrado ao domínio das pessoas normais se, no final das contas, não consegue nem mesmo ver o sentido do imperativo da vida como um valor supremo.

Normas e regras não são sem importância, ao contrário, são instrumentos decisivos para regular nossas ações e para lhes conferir uma uniformidade que depois pode vir a se refletir em nossos próprios valores. No entanto, a adesão incondicional e irrefletida às regras se torna não poucas vezes um problema, porque perdemos de vista as razões por que as adotamos e passamos a naturalizá-las — e assim, por exemplo, chegamos aquelas situações mencionadas por Ortega y Gasset quando fala de democratas que creem na democracia como na Virgem de Pilar. Quando naturalizamos regras deixam de poder existir alternativas, isto é, as regras deixam de ser opções para lidar com o mundo para transformar-se no único modo possível de ver as coisas. Existindo apenas um modo possível de agir e pensar, as pessoas que não estão confortáveis com esse padrões se sentem marginalizadas e isoladas, pois qualquer manifestação de desvio da norma é compreensivelmente temida, em função da incapacidade geral (resultante da naturalização) para entender e aceitar perspectivas distintas. (Um leão não pode se tornar vegano porque seu comportamento é determinado por sua natureza, não há alternativas).

O único modo de tornar menos difícil a vida das pessoas não ajustadas ao imperativo das normas é fomentando uma atitude mais aberta em relação às próprias normas. Isso significa compreender como possível, inteligível e em certos casos até preferível, guiar-se segundo regras e normas incompatíveis com as nossas próprias (a equação dessas incompatibilidades é um tema importante e espinhoso, claro, mas não dá para abordá-lo aqui). De outro modo, seguiremos a estimular um ambiente viciado onde as diferenças, e a possibilidade de transformação encontram-se inibidas pela força imperativa da identidade (representada pela regra) e de uma normatividade absoluta (que paralisa a criação, que depende da instabilidade).


Não ser normal não é uma identidade, assim como dizer que algo não é verde não é ainda atribuir-lhe uma cor. As pessoas, nos dias de hoje, tendem a transformar tudo em identidade, pois a identidade lhes dá força política de mobilização (coletiva), mas o que há de mais forte nessa irredutibilidade à norma é justamente aquilo que nela aponta a uma singularidade. Sem regularidade, não há identidade e o singular é o que não se repete.

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