Tempo de correção

Um escritor medíocre deve tomar cuidado para não substituir rapidamente uma expressão grosseira e incorreta por uma correta. Ao fazer isso ele mata a ideia original, que ainda era pelo menos uma muda viva. E agora está murcha e não vale mais nada. Ele agora pode muito bem jogá-la no lixo. Enquanto que a lamentável muda ainda tinha uma certa utilidade.

Wittgenstein MS 138 (eu sou o culpado pela tradução)

É curioso pensar que há um tempo para corrigir, um tempo de correção, que a correção nem sempre deve ser imediata, e que essa pode ser a diferença entre um escritor medíocre e um bom escritor de acordo com Wittgenstein: um bom escritor sabe dar bom uso às más expressões, sabe cultivá-las no tempo apropriado. É como se ele dissesse: cada caminho entre o incorreto e o correto tem seu tempo, e esse percurso deve ser percorrido no tempo certo, nem um segundo a mais ou a menos. São incontáveis as maneiras de mostrar como no pensamento de Wittgenstein o tempo vai se tornando elemento fundamental da lógica da linguagem — até o ponto de já não podermos mais separar lógica e psicologia [o começo da psicologia androide]. E é interessante constatar que a complexificação originada pelo tempo, pelo acontecer, é como uma espécie de nascedouro do psicológico, daquilo que não pode ser reduzido às normas e quadros normativos (lógica).

Começo, meio e fim

Quando a gente aprende a escrever, e especialmente quando nos ensinam redação, as pessoas enfatizam a necessidade de escrever textos com “começo, meio e fim”. Essa é uma maneira de falar sobre a necessidade de articulação entre os elementos do texto, sobre a necessidade de coerência, unidade, ordem, todas essas coisas. É preciso que o texto esteja conectado de tal sorte que ele pareça, às outras pessoas, não um mero emaranhado de palavras, arbitrariamente agregadas, mas algo com sentido e unidade próprios. Assim, explicitar o fio de Ariadne, construir as conexões (utilizar os conectivos) seriam compromissos que favoreceriam a universalidade do entendimento, na medida que o conhecimento comunicado por meio de um texto seria facilmente transmissível, uma vez que sua integridade poderia ser reconstituída por meio dos conectivos e regras que amarram suas ideias. O compromisso com a ordem é o compromisso com o caráter público da linguagem, com o lugar dos acordos e consensos necessários ao entendimento pelo uso da linguagem.

Tais ideias e conceitos são fantásticos e funcionam tremendamente, mesmo dentro dos campos de investigação científica, não são regras e princípios que se limitam a serem ensinadas para as crianças, quando precisamos treiná-las a escrever, elas valem pra toda a vida. Acontece que a vida não é apenas conhecimento, fatos e verdades, é também aquilo que está em desordem, aquilo que aparentemente não tem sentido, e tudo isso, muitas vezes, está também embrenhado no mais íntimo do nosso cotidiano, como aspecto talvez ainda mais forte do que qualquer verdade que saibamos. Quando é assim, às vezes a gente pode querer escrever coisas que parecem carecer de sentido, cuja ordem, se existe, é pouco aparente, e cujas partes têm conexões nada explícitas. É difícil desejar escrever assim porque imediatamente vem à nossa cabeça o imperativo da coerência e da regularidade, como uma espécie de polícia subjetiva a nos fiscalizar. O desgosto ou a incapacidade para fabricar discursos cuja sistematicidade esteja evidente, como parte objetiva do texto, logo passa a ser sentida como deficiência, como coisa que precisa ser remediada. E é certo que muita gente que por aí ainda sofre terrivelmente com isso. Eu tive a sorte de encontrar muitos seres humanos que me fizeram pensar a linguagem de outra maneira: Clarice Lispector, Wittgenstein, Paul Celan, etc. Toda a poesia é um convite à reflexão sobre nossa relação com a linguagem e com o mundo.

Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos ao meio-dia e de manhã nós te bebemos de noite nós bebemos bebemos
um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
teu cabelo de cinzas Sulamita ele bole com cobras
Ele brada toquem a morte mais doce a morte é um dos mestres da Alemanha
ele brada toquem mais fundo os violinos vocês aí sobem como fumaça no ar
aí vocês têm um túmulo nas nuvens lá não se jaz apertado

Wittgenstein sofreu com essa deficiência e, ainda que ele afirme a não-linearidade do seu pensamento, não é como se esse tema fosse algo bem resolvido em sua cabeça, nunca é — é sempre uma luta para aceitar-se.

Se estou pensando apenas por mim mesmo sem querer escrever um livro, eu dou voltas ao redor do tema (I jump about all round the topic); essa é a única maneira de pensar que é natural para mim. Forçar meus pensamentos para uma sequência ordenada é um tormento para mim. Será que eu deveria tentar agora ordená-los? Desperdiço esforços incontáveis fazendo um arranjo de meus pensamentos, que pode não ter valor algum.

Wittgenstein, Manuscritos

No entanto, no Tractatus Logico-Philosophicus ele estabeleceu aberta e deliberadamente esse modo de pensar ao afirmar que “Este livro talvez seja entendido apenas por quem já tenha alguma vez pensado por si próprio o que nele vem expresso — ou, pelo menos, algo semelhante”. Seu estilo críptico se deve então a que não pareça necessário cumprir a exigência áurea que prescreve o começo, meio e fim e o uso dos conectivos como meio produzir algo semelhante a uma universalidade do entendimento. É como se sua escrita fosse efetivamente composta somente àqueles que já estivessem aptos a entendê-la, o que significa uma franca recusa da universalidade.

Para as pessoas que lutam para viver e pensar com uma cabeça que opera de modo não-normal, é libertador inteirar-se da existência de pensadores como Wittgenstein. Perto das pessoas estranhas, os estranhos se sentem normais.

Se há alguma moral da história, algum sentido para todas essas observações, o sentido diz respeito à linguagem e ao modo como lidamos com ela. Embora seja inevitável buscar a universalidade por meio dos acordos e regras gerais, bem como ansiar pela aprovação dos outros, no uso da linguagem há algo de profundamente solipsista (e num certo sentido, profundamente insano e doentio), de tal modo que se poderia dizer que usar a linguagem radicalmente significar apropriar-se dela. Reinventar a linguagem, abandonando todo o compromisso que não seja o de permitir que ela seja, não um instrumento, mas uma extensão no nosso ser, por meio do qual podemos expressar a singularidade da nossa experiência. Não raras vezes essa experiência pode conduzir a um distanciamento dos outros, a uma excentricidade que não é fácil de suportar — eu gostaria de ter alguma palavra de consolo aqui, mas infelizmente elas me faltam. De qualquer modo, o que guia instintivamente quem busca apropriar-se da linguagem é um desejo irrefreável de conseguir expressar pensamentos com uma espécie de fidelidade às ideias a partir da quais eles foram concebidos. (Representação não é a palavra adequada, mas é a que melhor nos serve). E é o exercício de buscar essa “representação” perfeita de uma ideia o que nos leva a apropriar-nos da linguagem e, no melhor nos casos, a paulatinamente adquirir consciência da necessidade da rebeldia, disso que nos conduz, numa última etapa, à apropriação compreendida como entendimento que somos cada um de nós os únicos senhores responsáveis por instituir e destituir as regras de uso da linguagem e aquilo que é necessário para dizer o que precisamos dizer.

Mais importante do que a universalidade das regras linguísticas — que é, no final das contas, a expressão de um projeto intelectual que nós aprendemos fomos adestrados a respeitar cegamente — é o esforço contínuo para forjar uma linguagem que, em aparência, só nos afasta dos outros, da generalidade do universal, mas que em realidade é a porta de entrada para novas conexões, para que os outros percebam o quanto suas próprias idiossincrasias são também aspectos secretamente partilhados e, a partir disso, sintam-se também instados a lançar-se na aventura de buscar apropriar-se da linguagem. Que nada disso apague a importância daquilo que se expressa na ideia do “começo, meio e fim”, mas que tenhamos presente essa nova necessidade, necessidade do nosso tempo, de romper com os projetos de universalidade para achar novos caminhos, menos populosos, mas igualmente importantes para todos. O que importa é menos a unidade e mais a confluência.

A irredutibilidade do valor ao fato

O conhecimento verdadeiro ignora os valores, mas, para fundá-lo, é preciso um julgamento, ou melhor, um axioma de valor.

Jacques Monod, O acaso e a necessidade

Um dos legados mais impactantes do pensamento de Wittgenstein é sem dúvida a distinção entre fato e valor, ou melhor, a irredutibilidade do valor ao fato. É certo que o pensamento de Wittgenstein muda e que, no segundo Wittgenstein, os conceitos de fato e de valor não têm uma importância marcante, não são tão centrais quanto no Tractatus Logico-Philosophicus; é certo também que Hillary Putnam tentou armar uma gambiarra para corrigir esse problema, com toda a elegância e inteligência que marcam seu pensamento, mas sem sucesso; por fim, é bem possível que a essa altura do campeonato já existam meia dúzia de filósofos revolucionários que não apenas superaram o problema de Wittgenstein, mas que construíram toda uma filosofia que se estabelece a partir disso, com décadas de intenso debate universitário, artigos e livros publicados, toda uma extensa literatura estabelecida após a superação dessa aparente dificuldade que era a irredutibilidade do valor ao fato.

Eu sei pouco dos rumos que a filosofia universitária tem tomado, embora goste de muita coisa dentro dela, mas duvido que exista uma resposta à irredutibilidade de que fala Wittgenstein. Essa irredutibilidade é um ponto insuperável de uma filosofia superada, e que esse ponto se conserve com firmeza, a despeito do colapso de grande parte à sua volta, mostra o quanto estamos longe de ter uma atitude reflexiva a respeito da ciência. — O que quer dizer e o que implica a irredutibilidade do valor ao fato? A mais forte implicação é a seguinte: o conhecimento não pode determinar o que devemos fazer. Entendo determinar naquele sentido demolido pela segunda fase do pensamento de Wittgenstein, como se o conhecimento pudesse em certo sentido ditar e constranger o que devemos fazer, como devemos agir, o que devemos querer — todo o reino da ação está não apenas inseparavelmente ligada a interesses, mas é determinado por valores. (O que fazemos && o que devemos fazer) está amarrado aos valores. Toda ação mostra os valores que a mobilizam, não é como se o conhecimento pudesse vir depois e restabelecer o que devemos fazer. Essa separação radical entre conhecimento e ética nos lembra o lugar da arbitrariedade, isto é, daquilo que está além da pretensão de determinar, do que não pode ser determinado, daquilo que é emergente e vêm com a inteligência. É difícil aceitar o lugar da instabilidade, da rebeldia, da radicalidade, do acaso, de tudo que ameaça uma estabilidade e ordem (previsível) que buscamos como se nossa vida dependesse disso. Bem, mas assim o tema se encaminha a outros temas igualmente complexos, e é melhor deixar essa conversa para outra ocasião.

(Essa discussão é também uma forma de apresentar o velho dilema da filosofia, a relação entre teoria e prática; como aquilo que estabelecemos em teorias que se pretendem verdadeiras se relaciona com nossas ações, com aquilo que fazemos e com a determinação dos fins das ações humanas e com o que fazer?)

Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar.

Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus. 7

Como fica a relação entre fato e valor no segundo Wittgenstein, no pensamento que se seguiu ao Tractatus? Ali, fato já não é mais uma peça realista, como no realismo lógico do Tractatus*, não é mais aquela estrutura mínima que arma tudo e na qual está dada a substância do mundo. Fato pro segundo Wittgenstein já está livre de pretensões fundacionais, então já não pode mais cumprir o papel que cumpre numa filosofia preocupada em falar sobre as coisas que tem sentido dizer e num pensamento que acredita que a única função da linguagem é figurar fatos. Tudo que não fosse figuração de fatos era sem sentido no Tractatus, era a pretensão compreensível, mas vã de falar de coisas sobre as quais não deveríamos falar. Sobre aquelas coisas que nós realmente podemos falar, o mundo nos fatos, nós podemos falar claramente, sobre o resto, como o mundo dos valores — o mundo mais importante, Wittgenstein nos lembra incansavelmente — estaríamos condenados a balbuciar e berrar coisas sem sentido, como uma mosca que arremete contra o vidro, tentando escapar de uma garrafa fechada. Sobre o valor, sobre o que importa — e acredite!, o que importa não são os fatos — nós estaríamos condenados a calar, ao silêncio, se entendêssemos que não poderíamos falar sobre elas, porque elas não são fatos. Tudo que não é fato carece de sentido no mundo onde a única função da linguagem é representar fatos, tudo que não é fato carece de sentido no mundo onde tudo que tem sentido tem uma relação fundamental com o verdadeiro, sobre todas as coisas que não são fato nós faríamos melhor se simplesmente não falássemos sobre elas, já que não podemos tratá-las objetivamente — é um dever ético o que se enuncia no final do Tractatus, a ponte para o segundo livro, o mais importante, aquele que nunca foi escrito. Essa talvez seja a mais breve impossível explicação para o aforismo 7 do Tractatus Logico-Philosophicus.

Sentimos que, mesmo que todas as questões científicas possíveis tenham obtido resposta, nossos problemas de vida não terão sido sequer tocados. É certo que não restará, nesse caso, mais nenhuma questão; e a resposta é precisamente essa. 

Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus, 6.52

No pensamento do segundo Wittgenstein o fato já é um artefato relativista, sua correspondência aos nossos conceitos não os justifica, apenas testemunha que nossos conceitos — mesmo os mais gerais, como o de lógica, ou o conceito de regra, lei e norma — estão inseparável e irremediavelmente presos ao tempo, a uma experiência (não pura), e que eles não podem ser formalizados e pois são históricos, estando, portanto, sujeitos à vicissitude como tudo o mais.

O cientificismo é o dogma que organiza a sociedade porque, conscientemente, nos seduz a possibilidade de controle instrumental sobre o mundo, e mesmo os excluídos dos prazeres e confortos do mundo desenvolvido sonham ingenuamente em desfrutar desses privilégios. Inconscientemente, leigos e cientistas supõem igualmente que o conhecimento nos dirá o que fazer porque creem que é assim e sempre tem sido. É verdade que o mundo produtivo, dirigido por políticas econômicas que têm a ciência como braço direito, se orienta por aspectos técnicos, especialmente num mundo ligado à (e dependente da) inovação tecnológica, mas isso não significa senão que a ciência estrutura os marcos tecnológicos e produtivos, não que estipula o que devemos desejar e fazer. A ingenuidade do cientistas — que é especialmente desconcertante, se comparada à dos leigos — se deve à que a ciência já não tenha nenhum vínculo com a filosofia, entendida como signo de um compromisso histórico com a reflexão, compromisso que tem um componente de instabilidade inaceitável para pessoas que alimentam sonhos de abarcar a totalidade e estabelecer determinações absolutas. O efeito cascata criado por este estado de coisas é o seguinte: uma ciência de complexidade crescente, profundamente técnica e inacessível senão às poucas autoridades de um certo campo (nem mesmo campos de pesquisa adjacentes podem contemplar inteiramente o que concerne a um campo específico, dada a complexidade que tem se armado), é respaldada por leigos que pensam que seu dever é apoiar cegamente coisas que não entendem, sob pena de seres confundido com negacionistas. A batalha do bem contra o mal reeditada em outro campo. Uma ciência inquestionada e inquestionável, cega, é instrumento dócil de um complexo sistema político que a subordina a interesses que ela não compreende porque não fazem parte do seu quadro técnico de questões e problemas (daí o lugar dos puzzle solvers) e que, portanto, ela só pode aceitar sem examinar.

A impossibilidade de fundar o valor no fato nos constrange uma vez mais a voltar à política, à dialética (nos lembrará Gérard Lebrun desconfiado), à necessidade de estabelecer mediações e, sobretudo, de aceitar o caráter convencional (na falta de melhor palavra) das nossas construções, e abdicar das ilusões de determinação ainda predominantes no tempo da Tecnosfera e da Tecnocracia.


Encontrei essa pichação na 25 de março, em Sampa, e fiquei surpreendido com a coincidência de temas

* Se existe um realismo no Tractatus, não é um realismo de fatos, mas das coisas. Os fatos já estão no nível das contingências, das complexidades articuladas, do que pode ou não ser o caso. As coisas, por outro lado, são a substância do mundo, fixa, imutável e simples.

Por que bons argumentos não importam?

Por que as pessoas não mudam de opinião mesmo quando ouvem bons argumentos e/ou fatos que contrariam suas crenças? Bem, primeiro, porque fatos importam muito menos do que creem os cientistas (e os realistas em geral). Mas o mais importante é: porque a psicologia é o centro da vida simbólica humana, não a lógica. E a vontade é o único fator que determina o colapso ou a manutenção de sistemas de crenças. O único.

Pode-se conduzir um cavalo à beira d’água, mas não se pode obrigá-lo a beber.

Sommerset Maughan, A servidão humana

E adivinha? Todo mundo quer manter o seu sistema de crenças. Tendemos à estabilidade (o contrário disso pode bem ser a loucura). Tanto as pessoas estúpidas quanto as inteligentes tendem à estabilidade. A inventividade e o engenho de um cientista — nosso único modelo de inteligência — não necessariamente o abrem à transformação, ele apenas vive num mundo mais complexo que o estúpido (quando não é um deles), não significa que ele esteja mais disposto a trocar de mundo. Um mundo complexo é um mundo mais difícil de desestabilizar.

(Thomas Kuhn e Imre Lakatos falam, cada um à sua maneira, sobre a relação da ciência com a estabilidade: em Kuhn o ponto de vista é o dia a dia do desenvolvimento das pesquisas cientificas, a relação conservadora da ciência normal com as mudanças de paradigma; Lakatos parte da perspectiva de alguém que quer entender e explicar as transformações do falsificacionismo de Popper, do seu falsificacionismo dogmático até suas formas mais sofisticadas onde a psicologia ganha o espaço inevitável que deve ter.)

Ouvir um argumento e estar disposto a ouvir argumentos significa aceitar um jogo cujos limites cada um tem a atribuição de fixar, nesse jogo nada pode obrigar e constranger alguém, apesar da enorme importância que concedemos a fatos e verdades, leis e normas. Absolutamente nada. Não somos máquinas, sistemas input/output, embora esse seja um bom modelo para pensar nossa relação com os argumentos e seu efeitos proposicionais e epistêmicos.

Não é essa a questão: “E se você tivesse que mudar de opinião mesmo sobre aquelas coisas mais fundamentais?” E a resposta a essa questão parece ser: “Você não tem que mudar. Isso é exatamente o que ser ‘fundamental’ significa”

Ludwig Wittenstein, Sobre a certeza, § 512

A impossibilidade da coerção/coação e a falta de acordo sobre os fundamentos sempre levará alguém a sonhar com a ideia de que a linguagem (natural) deveria obedecer… ou melhor, funcionar como pretensamente funcionam a matemática e a lógica. Assim nascem os impulsos intelectuais envolvidos num mito importante — um dos muitos mitos de uma sociedade tecnológica e sem mitos, a Tecnosfera: o mito da determinação (derivado da mitologia das regras1). Mas não convém falar disso agora.

Não levanta nenhuma controvérsia (entre matemáticos, por exemplo) o fato da regra ser ou não seguida adequadamente. Não se chega por isso a atos de violência. Pertence ao arcabouço a partir do qual nossa linguagem atua (por exemplo, dá uma descrição).

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 240

O caso é que vivemos em mundos diferentes, e a pretensão de comunicar-se com outros seres humanos a partir de chaves intelectuais universais não basta para afetá-los (isso significa que essa saída pela universalização está bloqueada de Kant e Frege até Habermas).

Não é como se a única forma de nos afetar fosse por meio de argumentos, ou como se nossa visão de mundo pudesse ser reduzida à totalidade de um sistema de proposições. Levar as pessoas a mudar não é apenas um processo de controle de inferências.

Imaginar uma linguagem significa imaginar uma forma de vida.

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas § 19

Vou fazer duas considerações gerais sobre o que acabo de dizer, dois comentários sobre os quais deveríamos refletir, se é verdade que nosso modo de afetar se afunilou a uma, digamos, dieta unilateral:

A arte (como domínio do não-factual) precisa ser integrada à cultura humana não apenas como forma de entretenimento, mas como fonte de aprendizado. E em um lugar central. Como uma maneira de entender a importância do ficcional… e seu alcance ético. Ou como um modo de nos ensinar a diminuir a importância que acreditamos que o conhecimento tem para a ética (abandonar Platão), de repensar o lugar da ciência na cultura humana e de aceitar a verdade da post-truth, como a extrema-direita já tem feito um monte de gente aceitar (para desespero de uma esquerda que não sabe bem o que fazer, e que parece ainda disposta usar o fact-checking como arma política/ideológica). Enfim, abraçar a pós-modernidade e tirar proveito dessa perspectiva.

A filosofia e o pensar precisam tornar-se comuns, parte do maquinário cotidiano dos seres humano, como uma maneira de nos adaptar à instabilidade, à mudança a que nos conduziu o progresso tecnológico que iniciamos no último século. Filosofar significa aceitar a instabilidade, construir quadros normativos, isso é certo e inevitável, mas sobretudo aprender a valorar, a determinar valor a medida que as circunstâncias se dão — aprendizado que não pode ser reduzido à constituição de quadros normativos e a qualquer forma de objetividade (lição do Tractatus, da Conferência sobre a ética). Não se pode ensinar a julgar e a pensar.

Sentimos que, mesmo que todas as questões científicas possíveis tenham obtido resposta, nossos problemas de vida não terão sido sequer tocados. É certo que não restará, nesse caso, mais nenhuma questão; e a resposta é precisamente essa.

Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus § 6.52

É claro que bons argumentos importam! Aceitar a pós-modernidade não significa transformar-se num marqueteiro ou num pastor — e vender qualquer coisa. A verdade importa profundamente! Mas não como instrumento capaz de constranger e coagir, de acionar as engrenagens da necessidade (lógica), e definitivamente não como parte do único modo de lidar com o Real, como retrato e representação do Real que não admite concorrentes.

“Então você está dizendo que o acordo entre homens decide o que é verdadeiro e o que é falso?” — Verdade ou falsidade é o que os homens dizem; e na linguagem os homens estão de acordo. Esse não é um acordo de opinião, mas de formas de vida.

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas § 241

1 Escrevi sobre o modelo determinação e a mitologia das regras na tese de doutorado, e essa ideia é uma das três pedradas na matemática que foram lançadas no século XX. Uma delas é a pedrada de Gödel no Principia Mathematica, de Russell; a outra é a de Turing, uma pedrada nas definições em sua passagem ao jogo da imitação; e há a pedrada de Wittgenstein em si mesmo, no Tractatus e em seu perfeito modelo de determinação, que as Investigações Filosóficas apresenta como a máquina, arquétipo invencível de determinação (e que afeta não só a matemática, mas todo o simbolismo, por isso Kripke considerou o que ele chama de paradoxo cético o mais bombástico problema filosófico já formulado). Esse comentário sobre a determinação está na segunda seção do quarto capítulo da tese, e tem só 6 páginas. A matemática é o zombie mais poderoso que existe — e porque vivemos no mundo da computação e dos computadores, a determinação não sairá do nosso horizonte intelectual tão cedo. (Mesmo que o quanta traga um cenário tão diferente e desafiador para perspectivas determinísticas em causalidade.)

Sobre o relativismo

Recolocar a lógica no tempo

Para fins explicativos, e partindo de um ponto de partida quase arbitrário, poderíamos dizer que o relativismo é uma consequência do triunfo da psicologia sobre as perspectivas não-psicologistas em lógica. Os modelos antipsicologistas consideravam que as regras mais gerais da linguagem (a sua forma lógica) deveriam ser puras, porque a determinação dos elementos linguísticos e a universalidade da linguagem dependiam de que seus elementos axiais não fossem contingentes, como qualquer fato do mundo. Essa dimensão mais geral não deve ser verdadeira nem falsa, pois não está exposta à contingência. A fundação de uma linguagem universal é imutável, seus eixos são necessários e não meramente verdadeiros. Há uma diferença entre o que é necessariamente verdadeiro e o que é contingentemente verdadeiro no coração do Tractatus Logico-philosophicus (TLP), uma diferença modal. Portanto, a lógica não está constituída por fatos do mundo, ou por regras sobre os fatos do mundo (isso cabe à ciência descobrir), ela antecede todos os fatos naturais, a lógica …

representa uma ordem, e na verdade a ordem a priori do mundo, isto é, a ordem das possibilidades que devem ser comum ao mundo e ao pensamento. Esta ordem, porém, ao que parece, deve ser altamente simples. Está antes de toda experiência; deve se estender através da totalidade da experiência; nenhuma perturbação e nenhuma incerteza empíricas devem afetá-la. — Deve ser do mais puro cristal. Este cristal, porém, não aparece como uma abstração, mas como alguma coisa concreta, e mesmo como a mais concreta, como que a mais dura. (Tractatus Logico-philosophicus, no 5.5563.)

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 97

Apresentando as coisas dessa maneira, constatamos que a veemente oposição à contingência e à impureza protegia a lógica do relativismo, além de garantir a universalidade, mesmo que ideal, de algum extracto da linguagem (a sua camada mais abstrata); garantia também a própria força normativa da base sobre a qual todo o simbolismo está assentado (a necessidade de suas leis), e nos fazia imaginar que já estava também garantido pelo menos um fundamento comum de acordos, pois tínhamos a mesma forma de julgar e pensar que Kant esperava que tivéssemos. Esse modelo antipsicologista, que tem o TLP como exemplar mais belo e completo, não consegue se sustentar. E numa transição que apresento abruptamente, sem explicar, pois importa para compreender o relativismo, este antigo modelo dá lugar a uma perspectiva que abole a pretensão de pureza da lógica, e, mais do que isso, que afirma que a lógica (o código, a norma, etc.) é um mero produto das práticas (instaurando assim uma circularidade inescapável). A norma é o resultado da constância das ações e práticas humanas, não o guia que as determina. Em realidade a norma é as duas coisas ao mesmo tempo e a relação entre normas e práticas não pode ser vista fora de uma espiral de determinação que retrocede a um conjunto de práticas não codificadas (e pode dar lugar a uma genealogia das normas e proposições gramaticais), caminhando assim em direção ao âmbito de uma antropologia e, por fim, de uma primatologia.

A gramática de uma língua não é registrada e não existe até que a língua já tenha sido falada pelos seres humanos por muito tempo. Da mesma forma, os jogos primitivos são jogados sem que suas regras sejam codificadas e sem que uma única regra seja sequer formulada. Mas olhamos para jogos e linguagem sob a lente de um jogo jogado de acordo com regras. Ou seja, estamos sempre comparando a linguagem com tal procedimento.

Ludwig Wittgenstein, Philosophical Grammar, §26

O primado da prática recoloca no tempo (no acontecer e na vicisstude) aquilo que estava na eternidade (sub specie aeterni), o reino do que é sempre atual, e afirma muito claramente: tudo está no tempo (e na história), não há nada fora dele. Tudo está inexoravelmente em algum jogo, nada pode estar dentro da linguagem e ao mesmo tempo fora dos seus jogos essencialmente pragmáticos.. pois toda dimensão normativa, mesmo a mais geral (e aparentemente necessária), deve seu sentido a jogos pragmáticos que podem derrogar suas regras de seu papel fundamental. Nenhuma verdade, nenhuma necessidade estaria imune a possibilidade de revisão que instaura a sua mera presença no mundo, no tempo, entre coisas que passam e deixam de ser.

O ocaso da pretensão de pureza significa que o distanciamento da contingência do mundo não é mais que um expediente técnico das lógicas e não mais o pano de fundo metafísico que lhes empresta seu lugar privilegiado. Por isso, a separação entre lógica e psicologia tem limites, de tal sorte que é inevitável admitir que, em alguma medida, o que não está determinado (o arbitrário) interfere no espaço normativo de maneira imprevisível (naturalmente, a camada mais geral da linguagem é menos vulnerável a esse efeito, mas não imune). Essa contaminação da lógica pela psicologia (espaço da vontade) tem efeitos que mal podemos compreender.

Epígrafe do Circuito dos Afetos, de Vladimir Safatle, uma curiosa reflexão sobre verdade e possibilidade.

Assim, com a derrocada da pureza, já não é possível manter incólume a abstração que leva Kant às camadas mais puras da linguagem, da lógica transcendental à lógica geral pura. A unidade do fundamento está irreparavelmente fragmentada, e o modelo, o sonho iluminista de uma razão universal e de um mesmo modo de julgar e pensar, já não pode constituir um marco ético dos seres humanos. O que se segue disso? Muita coisa.. e, ao mesmo tempo, muito pouco. O que me interessa precisamente é a conexão entre o relativismo e a antropologia (a etnologia), entre o relativismo e um modo de considerar outras formas de vida, tendo como pano de fundo a ausência de dimensões universais fundantes, no sentido antes pretendido. Na ausência de um fundamento lógico e epistêmico, que pudesse funcionar como árbitro no conflito de opiniões que Frege desejava, naturalmente os elementos externos à lógica e a epistemologia voltam a ser elementos aos quais deveríamos recorrer para romper as bolhas, para lidar com desacordos. A política assim retorna (ou deveria) não porque constatamos sua importância, mas porque já não podemos acreditar na tecnologia, na ciência, numa engenharia do consenso, para usar a expressão de Edward Bernay, para resolver questões que em realidade não são problemas (técnicos). Desse modo a política se apresenta como o avesso da técnica, o anti-cálculo, o reconhecimento de que nem todas as questões podem ser encaixadas na chave universal da Tecnosfera, a chave problema/solução, e nesse lado de fora está uma ética que se assemelha a ética de Rousseau, relembrada por Lévi-Strauss, uma ética da pluralidade e da variabilidade dos tipos humanos.

É assim que passamos de uma perspectiva racionalista, universalista, determinista sobre o conhecimento e a ciência ao relativismo, ao reconhecimento de que a lógica e a linguagem têm limites, e os acordos que estes instrumentos oferecem tem alcance limitado e não esgotam a variedade das experiências sociais. Para conseguir afetar aqueles que estão fora do marco dos nossos acordos e quadros normativos é preciso utilizar mais do que cálculo, precisamos prescindir de uma atitude instrumental (atitude que nos é tão cara) e incorporar mesmo a arte à política, fazer dela não um instrumento, mas uma atmosfera que permite e estimula conexões humanas. É preciso que a linguagem também seja arte, seja manifestação do espírito, e não daquilo que em nós é maquinal e determinado, pois não por outra razão os ideais da Inteligência Artificial vão no sentido oposto às aspirações derivadas da pretensão de determinação.

O relativismo dá lugar a uma política e a uma cosmopolítica relativista que é também uma ética de desacordos radicais.


Pra mim, é inevitável não pensar em Quine ao tratar do relativismo, pois ele não era o tipo de pensador reticente ante supostos perigos relativistas. A epistemologia naturalizada é o testemunho de uma atitude afirmativa diante da falta de fundamentos sólidos e estanques representada pelo distanciamento do solo analítico kantiano. Diante disso, Quine proclamava nossa soberania conceitual e propunha que deveríamos aprender com as regularidades do mundo, ainda que essa regularidade fosse histórica e contingente.

Epistemology, or something like it, simply falls into place as a chapter of psychology and hence of natural science. It studies a natural phenomenon, viz., a physical human subject. This human subject is accorded a certain experimentally controlled input-certain patterns of irradiation in assorted frequencies, for instance — and in the fullness of time the subject delivers as output a description of the three-dimensional external world and its history. The relation between the meager input and the torrential output is a relation that we are prompted to study for somewhat the same reasons that always prompted epistemology; namely, in order to see how evidence relates to theory, and in what ways one’s theory of nature transcends any available evidence.

Quine, Epistemology naturalized

Não sou do time da epistemologia naturalizada, mas é preciso cojones para propôr a subordinação da epistemologia à psicologia e um sujeito que ousa propôr algo semelhante certamente não precisa de muletas e tampouco tem medo do boi da cara preta.

História do possível e do impossível

Por volta de 1950, pouco antes de morrer, Wittgenstein escreveu sobre a ideia do homem ir à lua no que depois viria a ser o livro Da certeza. No contexto das suas anotações, essa ideia era apenas um modo de usar ficções e casos extremos para ilustrar aspectos conceituais e gramaticais que de outro modo não seriam notados. Meros vinte anos depois, se tornou real o que era então exemplo patente de uma impossibilidade que era muito útil para o esclarecimento de questões filosóficas. O possível e o impossível tem também uma história, as verdades necessárias mudam e definem novos campos de possibilidades. Tudo que esses novos campos de possibilidades tornam visível existia antes? — O que se quer saber com essa pergunta? “Existir” é um verbo que confunde mais que outra coisa, para falar disso que julgamos que deveria existir melhor falar sobre a cegueira normativa, sobre o fato de que as regras determinam o que nós podemos ver e o que julgamos possível, mas elas necessariamente deixam um lado de fora.

É difícil compreender a pluralidade dos mundos, dada uma espécie cegueira que uma singularidade impõe sobre essa pluralidade. Eu falo da realidade, a singularidade do Real. E a singularidade que se impõe é a dos fatos, do que é verificável, essa é uma singularidade ontológica (desculpa a má palavra) e, segundo os cientistas, inteiramente epistêmica (tudo dentro dela é redutível ao epistêmico), determinável, extensional, etc. E mesmo que os cientistas admitam a historicidade da própria ciência e do conhecimento científico, essa historicidade, no imaginário popular científico, corresponde à história da contínua e progressiva representação do real. Como um quadro que vamos pintando pouco a pouco. A realidade sempre aparece na metafísica tácita da ciência como tribunal superior de apelação necessário à orientação verifuncional das proposições científicas, como ontologia que determina as leis científicas e que as justifica.

Tudo isso ainda é muito abstrato, a mera interdição científica e o confinamento no mundo desencantado da ciência não bastam para fazer entender a pluralidade dos mundos. O que torna especialmente difícil entender a ideia de uma pluralidade de mundos é justamente a invisibilidade dos outros mundos, e o fato de que as dimensões universais da linguagem (os acordos) nos fazem supor que estamos sempre num mesmo mundo, pois assim fomos adestrados. Um comentário de Nietzsche e aspectos das geneaologias de Foucault emprestam a concretude necessária para que possamos entender a pluralidade. Este longo comentário sobre a cultura masculina na Grécia bem poderia ter sido o ponto de partida das investigações de Foucault, ele oferece um contexto onde se vê claramente os obstáculos ao entendimento.

Uma cultura masculina. — A cultura grega do período clássico é uma cultura masculina. No que toca às mulheres, Péricles disse tudo na oração fúnebre: elas são melhores quando os homens falam o mínimo possível delas entre si. — A relação erótica dos homens com os rapazes era, num grau inacessível ao nosso entendimento, o pressuposto único e necessário de toda educação masculina (mais ou menos como entre nós, durante muito tempo, toda educação elevada da mulher se realizou apenas mediante o namoro e o casamento); todo o idealismo da força da natureza grega se lançou em tal relação, e é provável que nunca se tenha tratado pessoas jovens tão atenciosamente, tão amavelmente e visando o que teriam de melhor (virtus) como nos séculos VI e V — conforme, portanto, a bela sentença de Hölderlin: “pois é amando que o mortal dá o melhor de si”. Quanto mais altamente se estimava essa relação, mais declinava o comércio com a mulher: a perspectiva da procriação e da volúpia — apenas isso entrava em consideração; não havia troca intelectual, nem namoro de fato. Se lembramos também que eram excluídas das competições e dos espetáculos de toda espécie, então restam apenas os cultos religiosos como elevado entretenimento para as mulheres. — É certo que Electra e Antígona apareciam na tragédia, mas justamente porque se tolerava isso na arte, mesmo não o querendo na vida real: tal como hoje não suportamos o patético na vida, mas gostamos de vê-lo na arte. — As mulheres não tinham outra tarefa senão produzir corpos belos e fortes, em que prosseguisse vivendo incólume o caráter do pai, a fim de combater a superexcitação nervosa que crescia rapidamente numa cultura tão desenvolvida. Isso manteve a civilização grega jovem por um período relativamente longo; pois nas mães gregas o gênio grego retornava sempre à natureza.

Nietzsche, Humano, demasiado humano § 259 (grifo meu)

A única coisa que me interessa nesse parágrafo é a observação de que a relação erótica dos homens com os rapazes (a pederastia, precisamente um dos temas centrais de Foucault no Uso dos prazeres), como pressuposto único e necessário de toda educação masculina, é algo que escapa ao nosso entendimento, ao entendimento de pessoas vivendo numa sociedade inteiramente distinta. É aí onde os mundos estão ocultos, onde não é preciso disputar uma ontologia, mas apenas reconhecer usos simbólicos significativamente distintos. Não é por acaso que as pessoas supõem não infrequentemente que a homossexualidade e a pederastia são a mesma coisa. “Só muda o nome!”. O realismo reaparece, dessa vez, como comentário de carga ontológica sobre a identidade entre expressões separadas por mais de 2000 anos. A identidade entre a palavra “homossexualidade” no nosso português globalizado de 2021 e a palavra grega “pederastia” (παιδεραστία) — a palavra é sempre um modo de significar ações, interações humanas, uma forma de vida em sua complexidade e irredutibilidade. Alguém poderia ainda dizer de outro modo: o signo mudou, mas o significado é um mesmo. O problema aqui permanece, a referencialidade realista que acaba encalhada na praia do representacionalismo, na ânsia de espelhar a realidade.

Foucault trata também de outros aspectos que deixam ver como, ainda há bem pouco tempo, vivíamos em um mundo completamente diferente. Quando discute a passagem do moral ao clínico, o nascimento da interrelação entre o clínico e o jurídico, ou quando identifica a gênese da norma de desenvolvimento sexual, inexistente até o período vitoriano, Foucault explicita aspectos que moldaram o mundo em que vivemos hoje, e o modo como pensamos e julgamos. Por causa dessa diferença gritante entre mundos choca que — para falar dessas transições, de como era o mundo antes da instauração desses paradigmas, e dos casos que parecem marcar pontos de virada — ele mencione algo como o jogo do “leite coalhado”, uma brincadeira perversa que hoje tomaríamos como pedofilia sem hesitação.

Já é suficientemente difícil entender o significado dessa pluralidade de mundos tendo em conta uma, por assim dizer, uma mesma timeline, isto é, vendo a história da “civilização ocidental” sob a luz das múltiplas mudanças de paradigma que fizeram com que, num curto intervalo e incidindo sobre uma “mesma” cultura, nos pareça impossível compreender a experiência e o mundo em que estavam metidas pessoas não tão distantes quanto os gregos. Mas o que é verdadeiramente desafiador, numa sociedade científica e digital como a nossa, é compreender em que medida, mesmo que sob o escudo da pretensa universalidade científica, possamos existir, coexistir e até nos comunicar a partir de mundos diferentes, sendo coetâneos.

A história das normas, leis e conceitos humanos é a história do possível e do impossível, e o que assim se reconstitui discursivamente são os sucessivos remapeamentos do campo normativo, daquilo que podemos conceber como (inteligível || possível) devido às mudanças que afetaram a vida social humana. Há sempre um lado de fora, um espaço não abarcado pelo que nós supomos ser a totalidade, de tal sorte que a totalidade do que se conhece nunca pode chegar a ser a “totalidade” daquilo que supomos real (o real não forma uma totalidade, como o conhecimento, pois é indeterminável). É somente quando nós não apenas admitimos a transitoriedade e historicidade das regras de organização do próprio conhecimento, mas também o limite de sua capacidade técnica e instrumental, que podemos entender o lugar lógico/psicológico da ignorância. Podemos lidar cientificamente com o saber, mas só a filosofia (ética) pode nos ensinar a lidar com a ignorância e com aquilo que está além da capacidade de explicação.


O oxigênio existia antes da descoberta de Lavoisier? Sim! Não há nisso nenhuma dificuldade ontológica, mas a descoberta do oxigênio nos coloca em outro mundo. Para mim não é trivial o modo como Thomas Kuhn se expressa:

No mínimo, como resultado da descoberta de oxigênio, Lavoisier viu a natureza de maneira diferente. E na ausência de algum recurso a essa hipotética natureza fixa que ele “viu de forma diferente”, o princípio da economia nos incitará a dizer que, após descobrir o oxigênio, Lavoisier trabalhou em um mundo diferente.

Thomas Kuhn, The structure of scientific revolutions

Lisey’s Story, com Julianne Moore

Não canso de dizer, só a arte pode nos ensinar a ver e lidar com diferentes mundos. Por acaso, recentemente, saiu uma série que leva essa premissa às últimas consequências ficcionais, e que por isso tem um grande componente espiritual, místico, chame como quiser. Pra variar, a premissa é de Stephen King, a série se chama Lisey’s Story e é estrelada por Julianne Moore e Clive Owen. Não é para todos os gostos, é verdade, mas o modo como ela aborda a distinção entre imaginação e realidade é fascinante. Ninguém melhor para falar sobre realidade e imaginação que um escritor.