Começo, meio e fim

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Quando a gente aprende a escrever, e especialmente quando nos ensinam redação, as pessoas enfatizam a necessidade de escrever textos com “começo, meio e fim”. Essa é uma maneira de falar sobre a necessidade de articulação entre os elementos do texto, sobre a necessidade de coerência, unidade, ordem, todas essas coisas. É preciso que o texto esteja conectado de tal sorte que ele pareça, às outras pessoas, não um mero emaranhado de palavras, arbitrariamente agregadas, mas algo com sentido e unidade próprios. Assim, explicitar o fio de Ariadne, construir as conexões (utilizar os conectivos) seriam compromissos que favoreceriam a universalidade do entendimento, na medida que o conhecimento comunicado por meio de um texto seria facilmente transmissível, uma vez que sua integridade poderia ser reconstituída por meio dos conectivos e regras que amarram suas ideias. O compromisso com a ordem é o compromisso com o caráter público da linguagem, com o lugar dos acordos e consensos necessários ao entendimento pelo uso da linguagem.

Tais ideias e conceitos são fantásticos e funcionam tremendamente, mesmo dentro dos campos de investigação científica, não são regras e princípios que se limitam a serem ensinadas para as crianças, quando precisamos treiná-las a escrever, elas valem pra toda a vida. Acontece que a vida não é apenas conhecimento, fatos e verdades, é também aquilo que está em desordem, aquilo que aparentemente não tem sentido, e tudo isso, muitas vezes, está também embrenhado no mais íntimo do nosso cotidiano, como aspecto talvez ainda mais forte do que qualquer verdade que saibamos. Quando é assim, às vezes a gente pode querer escrever coisas que parecem carecer de sentido, cuja ordem, se existe, é pouco aparente, e cujas partes têm conexões nada explícitas. É difícil desejar escrever assim porque imediatamente vem à nossa cabeça o imperativo da coerência e da regularidade, como uma espécie de polícia subjetiva a nos fiscalizar. O desgosto ou a incapacidade para fabricar discursos cuja sistematicidade esteja evidente, como parte objetiva do texto, logo passa a ser sentida como deficiência, como coisa que precisa ser remediada. E é certo que muita gente que por aí ainda sofre terrivelmente com isso. Eu tive a sorte de encontrar muitos seres humanos que me fizeram pensar a linguagem de outra maneira: Clarice Lispector, Wittgenstein, Paul Celan, etc. Toda a poesia é um convite à reflexão sobre nossa relação com a linguagem e com o mundo.

Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos ao meio-dia e de manhã nós te bebemos de noite nós bebemos bebemos
um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
teu cabelo de cinzas Sulamita ele bole com cobras
Ele brada toquem a morte mais doce a morte é um dos mestres da Alemanha
ele brada toquem mais fundo os violinos vocês aí sobem como fumaça no ar
aí vocês têm um túmulo nas nuvens lá não se jaz apertado

Wittgenstein sofreu com essa deficiência e, ainda que ele afirme a não-linearidade do seu pensamento, não é como se esse tema fosse algo bem resolvido em sua cabeça, nunca é — é sempre uma luta para aceitar-se.

Se estou pensando apenas por mim mesmo sem querer escrever um livro, eu dou voltas ao redor do tema (I jump about all round the topic); essa é a única maneira de pensar que é natural para mim. Forçar meus pensamentos para uma sequência ordenada é um tormento para mim. Será que eu deveria tentar agora ordená-los? Desperdiço esforços incontáveis fazendo um arranjo de meus pensamentos, que pode não ter valor algum.

Wittgenstein, Manuscritos

No entanto, no Tractatus Logico-Philosophicus ele estabeleceu aberta e deliberadamente esse modo de pensar ao afirmar que “Este livro talvez seja entendido apenas por quem já tenha alguma vez pensado por si próprio o que nele vem expresso — ou, pelo menos, algo semelhante”. Seu estilo críptico se deve então a que não pareça necessário cumprir a exigência áurea que prescreve o começo, meio e fim e o uso dos conectivos como meio produzir algo semelhante a uma universalidade do entendimento. É como se sua escrita fosse efetivamente composta somente àqueles que já estivessem aptos a entendê-la, o que significa uma franca recusa da universalidade.

Para as pessoas que lutam para viver e pensar com uma cabeça que opera de modo não-normal, é libertador inteirar-se da existência de pensadores como Wittgenstein. Perto das pessoas estranhas, os estranhos se sentem normais.

Se há alguma moral da história, algum sentido para todas essas observações, o sentido diz respeito à linguagem e ao modo como lidamos com ela. Embora seja inevitável buscar a universalidade por meio dos acordos e regras gerais, bem como ansiar pela aprovação dos outros, no uso da linguagem há algo de profundamente solipsista (e num certo sentido, profundamente insano e doentio), de tal modo que se poderia dizer que usar a linguagem radicalmente significar apropriar-se dela. Reinventar a linguagem, abandonando todo o compromisso que não seja o de permitir que ela seja, não um instrumento, mas uma extensão no nosso ser, por meio do qual podemos expressar a singularidade da nossa experiência. Não raras vezes essa experiência pode conduzir a um distanciamento dos outros, a uma excentricidade que não é fácil de suportar — eu gostaria de ter alguma palavra de consolo aqui, mas infelizmente elas me faltam. De qualquer modo, o que guia instintivamente quem busca apropriar-se da linguagem é um desejo irrefreável de conseguir expressar pensamentos com uma espécie de fidelidade às ideias a partir da quais eles foram concebidos. (Representação não é a palavra adequada, mas é a que melhor nos serve). E é o exercício de buscar essa “representação” perfeita de uma ideia o que nos leva a apropriar-nos da linguagem e, no melhor nos casos, a paulatinamente adquirir consciência da necessidade da rebeldia, disso que nos conduz, numa última etapa, à apropriação compreendida como entendimento que somos cada um de nós os únicos senhores responsáveis por instituir e destituir as regras de uso da linguagem e aquilo que é necessário para dizer o que precisamos dizer.

Mais importante do que a universalidade das regras linguísticas — que é, no final das contas, a expressão de um projeto intelectual que nós aprendemos fomos adestrados a respeitar cegamente — é o esforço contínuo para forjar uma linguagem que, em aparência, só nos afasta dos outros, da generalidade do universal, mas que em realidade é a porta de entrada para novas conexões, para que os outros percebam o quanto suas próprias idiossincrasias são também aspectos secretamente partilhados e, a partir disso, sintam-se também instados a lançar-se na aventura de buscar apropriar-se da linguagem. Que nada disso apague a importância daquilo que se expressa na ideia do “começo, meio e fim”, mas que tenhamos presente essa nova necessidade, necessidade do nosso tempo, de romper com os projetos de universalidade para achar novos caminhos, menos populosos, mas igualmente importantes para todos. O que importa é menos a unidade e mais a confluência.

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