Começo, meio e fim

Quando a gente aprende a escrever, e especialmente quando nos ensinam redação, as pessoas enfatizam a necessidade de escrever textos com “começo, meio e fim”. Essa é uma maneira de falar sobre a necessidade de articulação entre os elementos do texto, sobre a necessidade de coerência, unidade, ordem, todas essas coisas. É preciso que o texto esteja conectado de tal sorte que ele pareça, às outras pessoas, não um mero emaranhado de palavras, arbitrariamente agregadas, mas algo com sentido e unidade próprios. Assim, explicitar o fio de Ariadne, construir as conexões (utilizar os conectivos) seriam compromissos que favoreceriam a universalidade do entendimento, na medida que o conhecimento comunicado por meio de um texto seria facilmente transmissível, uma vez que sua integridade poderia ser reconstituída por meio dos conectivos e regras que amarram suas ideias. O compromisso com a ordem é o compromisso com o caráter público da linguagem, com o lugar dos acordos e consensos necessários ao entendimento pelo uso da linguagem.

Tais ideias e conceitos são fantásticos e funcionam tremendamente, mesmo dentro dos campos de investigação científica, não são regras e princípios que se limitam a serem ensinadas para as crianças, quando precisamos treiná-las a escrever, elas valem pra toda a vida. Acontece que a vida não é apenas conhecimento, fatos e verdades, é também aquilo que está em desordem, aquilo que aparentemente não tem sentido, e tudo isso, muitas vezes, está também embrenhado no mais íntimo do nosso cotidiano, como aspecto talvez ainda mais forte do que qualquer verdade que saibamos. Quando é assim, às vezes a gente pode querer escrever coisas que parecem carecer de sentido, cuja ordem, se existe, é pouco aparente, e cujas partes têm conexões nada explícitas. É difícil desejar escrever assim porque imediatamente vem à nossa cabeça o imperativo da coerência e da regularidade, como uma espécie de polícia subjetiva a nos fiscalizar. O desgosto ou a incapacidade para fabricar discursos cuja sistematicidade esteja evidente, como parte objetiva do texto, logo passa a ser sentida como deficiência, como coisa que precisa ser remediada. E é certo que muita gente que por aí ainda sofre terrivelmente com isso. Eu tive a sorte de encontrar muitos seres humanos que me fizeram pensar a linguagem de outra maneira: Clarice Lispector, Wittgenstein, Paul Celan, etc. Toda a poesia é um convite à reflexão sobre nossa relação com a linguagem e com o mundo.

Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos ao meio-dia e de manhã nós te bebemos de noite nós bebemos bebemos
um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
teu cabelo de cinzas Sulamita ele bole com cobras
Ele brada toquem a morte mais doce a morte é um dos mestres da Alemanha
ele brada toquem mais fundo os violinos vocês aí sobem como fumaça no ar
aí vocês têm um túmulo nas nuvens lá não se jaz apertado

Wittgenstein sofreu com essa deficiência e, ainda que ele afirme a não-linearidade do seu pensamento, não é como se esse tema fosse algo bem resolvido em sua cabeça, nunca é — é sempre uma luta para aceitar-se.

Se estou pensando apenas por mim mesmo sem querer escrever um livro, eu dou voltas ao redor do tema (I jump about all round the topic); essa é a única maneira de pensar que é natural para mim. Forçar meus pensamentos para uma sequência ordenada é um tormento para mim. Será que eu deveria tentar agora ordená-los? Desperdiço esforços incontáveis fazendo um arranjo de meus pensamentos, que pode não ter valor algum.

Wittgenstein, Manuscritos

No entanto, no Tractatus Logico-Philosophicus ele estabeleceu aberta e deliberadamente esse modo de pensar ao afirmar que “Este livro talvez seja entendido apenas por quem já tenha alguma vez pensado por si próprio o que nele vem expresso — ou, pelo menos, algo semelhante”. Seu estilo críptico se deve então a que não pareça necessário cumprir a exigência áurea que prescreve o começo, meio e fim e o uso dos conectivos como meio produzir algo semelhante a uma universalidade do entendimento. É como se sua escrita fosse efetivamente composta somente àqueles que já estivessem aptos a entendê-la, o que significa uma franca recusa da universalidade.

Para as pessoas que lutam para viver e pensar com uma cabeça que opera de modo não-normal, é libertador inteirar-se da existência de pensadores como Wittgenstein. Perto das pessoas estranhas, os estranhos se sentem normais.

Se há alguma moral da história, algum sentido para todas essas observações, o sentido diz respeito à linguagem e ao modo como lidamos com ela. Embora seja inevitável buscar a universalidade por meio dos acordos e regras gerais, bem como ansiar pela aprovação dos outros, no uso da linguagem há algo de profundamente solipsista (e num certo sentido, profundamente insano e doentio), de tal modo que se poderia dizer que usar a linguagem radicalmente significar apropriar-se dela. Reinventar a linguagem, abandonando todo o compromisso que não seja o de permitir que ela seja, não um instrumento, mas uma extensão no nosso ser, por meio do qual podemos expressar a singularidade da nossa experiência. Não raras vezes essa experiência pode conduzir a um distanciamento dos outros, a uma excentricidade que não é fácil de suportar — eu gostaria de ter alguma palavra de consolo aqui, mas infelizmente elas me faltam. De qualquer modo, o que guia instintivamente quem busca apropriar-se da linguagem é um desejo irrefreável de conseguir expressar pensamentos com uma espécie de fidelidade às ideias a partir da quais eles foram concebidos. (Representação não é a palavra adequada, mas é a que melhor nos serve). E é o exercício de buscar essa “representação” perfeita de uma ideia o que nos leva a apropriar-nos da linguagem e, no melhor nos casos, a paulatinamente adquirir consciência da necessidade da rebeldia, disso que nos conduz, numa última etapa, à apropriação compreendida como entendimento que somos cada um de nós os únicos senhores responsáveis por instituir e destituir as regras de uso da linguagem e aquilo que é necessário para dizer o que precisamos dizer.

Mais importante do que a universalidade das regras linguísticas — que é, no final das contas, a expressão de um projeto intelectual que nós aprendemos fomos adestrados a respeitar cegamente — é o esforço contínuo para forjar uma linguagem que, em aparência, só nos afasta dos outros, da generalidade do universal, mas que em realidade é a porta de entrada para novas conexões, para que os outros percebam o quanto suas próprias idiossincrasias são também aspectos secretamente partilhados e, a partir disso, sintam-se também instados a lançar-se na aventura de buscar apropriar-se da linguagem. Que nada disso apague a importância daquilo que se expressa na ideia do “começo, meio e fim”, mas que tenhamos presente essa nova necessidade, necessidade do nosso tempo, de romper com os projetos de universalidade para achar novos caminhos, menos populosos, mas igualmente importantes para todos. O que importa é menos a unidade e mais a confluência.

Escrever e falar

Escrever e falar são habilidades distintas, com diferentes pesos na cultura. A escrita tem o peso de uma técnica, é uma aquisição de segunda ordem e exige dedicação não apenas ao próprio exercício de escrever, mas também ao ato de leitura. A leitura não é uma atividade no mesmo sentido em que dizemos que a escrita é uma atividade, a leitura é mais passiva, menos criativa. Você pode entendê-la como atividade e como espaço de criação se imaginar alguém lendo um poema, como Caetano Veloso lendo Elegia, de Drummond..

ou seja, se pensar a leitura como algo aparentado às artes cênicas, à retórica (que não é pouca coisa), mas ainda assim não é disso que eu estou falando. Bem, o que eu quero é apenas destacar que embora a escrita possa a prescindir da leitura, em geral as duas coisas caminham juntas, de sorte que a habilidade de escrever acompanha o hábito de ler, e o hábito da leitura contribue decisivamente para que a escrita também se fortaleça como expressão do espírito.

Este é um relato pessoal sobre minha experiência com duas competências bem gerais, na minha vida a escrita tem sido minha habilidade preferida, aquela à qual eu dediquei maior atenção. Pela diferença mencionada antes, pelo fato da escrita ser mais técnica, estar ligada a uma tradição longeva que reúne seres humanos da melhor espécie que eu posso conceber; seres humanos que eu aprendi ao longo da vida a amar e admirar, de Aristóteles a Charlotte Brönte, de Clarice Lispector a Heráclito. Pierre Clastres define negativamente a sociedade arcaica como uma sociedade caracterizada pela “pela ausência· de escrita e pela economia dita de subsistência”, isso dá uma boa medida da importância da escrita e de tudo que ela envolve. À parte essa justificativa sociológica da escolha, a verdade é que minha percepção era de que falar era comum, e a vontade de falar a mais vulgar das pretensões.

Escrever, ao contrário, não tinha nada de comum, requeria dedicação, esforço, regularidade, alguma disciplina, senso de objetividade, leitura, coragem (para expor o que se escreve e para submetê-lo a apreciação), e tantos aspectos precisavam ser mobilizados no desenvolvimento dessa competência que não parecia nem mesmo justo comparar o desejo de saber falar com o desejo de saber escrever. E, bem, até hoje tem sido assim. Mas a verdade é que faz alguns anos eu me dei conta do que as coisas não são assim tão simples. Minha avaliação das virtudes envolvidas no domínio da fala não era justa, apenas um endosso cego (embora bem justificado) de uma vontade de escrever que, dado o contexto onde eu cresci, parecia ser a única coisa que alguém deveria almejar.

Ainda é verdade que as pessoas continuam falando muito depois de não terem mais nada que dizer, mas é verdade também que a própria escrita se banalizou. O caso é que a fala tem ao seu lado uma infinidade de aspectos que eu simplesmente não tinha me dado conta, fechado em minha bolha. Antes de mais nada, pra relembrar o que eu já disse antes: “o verbo” significa o sopro divino cuja importância se deixa notar no fato de que, embora pudéssemos criar vida segundo a tradição cabalística, só Deus podia conceder às criaturas o dom da fala, insuflar em nós o espírito. Mesmo que eu não seja exatamente um religioso, essa ideia tem um simbolismo que transcende a dimensão religiosa.

Além disso, a fala, como a escrita, é também um meio de expressão, no sentido de que por meio dela as pessoas tentam moldar o significado de suas existências e externalizar aquilo que, como uma necessidade vital, precisa ser externalizado. Isso significa que o mesmo ímpeto que sente quem precisa da escrita como um modo de ser no mundo também sente quem precisa da fala e o fato dela ser uma competência comum não torna menos extraordinário quando as pessoas verdadeiramente conseguem fazer disso uma habilidade excepcional.

Mas por que você escreve? – A: Eu não sou daqueles que pensam tendo na mão a pena molhada; tampouco daqueles que diante do tinteiro aberto se abandonam as suas paixões, sentados na cadeira e olhando fixamente para o papel. Eu me irrito ou me envergonho do ato de escrever; escrever é para mim uma necessidade imperiosa – falar disso, mesmo por imagens, é algo que me desgosta. B: Mas por que você escreve então? A: Cá entre nós, meu caro, eu não descobri ainda outra maneira de me livrar de meus pensamentos. B: E por que você quer se livrar deles? A: Por que eu quero? E eu quero? Eu preciso. – B: Basta! Basta!

Nietzsche. Humano, demasiado humano, § 93

Há ainda muitas outras questões que ganham destaque em razão da singularidade de nossa circunstância histórico-tecnológica. A fala tem uma dinamicidade natural que a escrita não pode ter, falando podemos rapidamente corrigir-nos, repetir, ajustar e refazer o que é dito, pois não há o compromisso com o produto (o output) que a escrita necessariamente deve manter. No contexto de uma sociedade digital, essa dinamicidade aliada à acessibilidade da fala parece quase pressionar uma mudança de paradigma. Em alguns registros da vida humana não me surpreenderia se nós constatássemos a substituição da escrita pela oralidade (dada a possibilidade de registro em vídeo, ao invés de um simples registro em formato de texto digital). Essa é uma possibilidade já aventada por algumas pessoas.

Devo dizer, pensando bem sobre minha desconfiança com o falar, que a implicância na verdade era contra o seu caráter comum e o popular. Ou seja, o que realmente não me interessava era me dirigir a pessoas cujo entendimento pudesse decifrar somente aquilo que não contivesse nenhum grau de abstração. Havia, portanto, um elitismo na minha escolha, e um elitismo compreensível, dado que até hoje mesmo o debate público no Brasil (e grande parte do discurso que se produz) é profunda e sintomaticamente carente em matéria de abstração.

Acontece que sem o comum não há comunicação, e por comum eu entendo não aquilo que perpassa diferentes compreensões de uma ideia qualquer, mas, ao contrário, o próprio modo de costurar uma compreensão comum tendo em conta um público/audiência. O falar está mais habituado ao ajuste, àquilo que me refiro quando digo que a humanidade é uma rede peer-to-peer. Muitas vezes mais importante do que encontrar aquele aspecto comum que a abstração extrai por meio de uma generalização é forjar este comum sobre la marcha, isto é, no calor de uma intercâmbio de consciências, tendo em contas todos os aspectos da psicologia de massas, do aspecto intersubjetivo da fala.

Minha relação com a fala se desenvolveu relativamente pouco, pois eu sempre me restringi a falar apenas com as pessoas eram minha audiência, pessoas que em tese já seriam capazes de entender minha escrita. Isso quer dizer que nossa conversa já se encontrava favorecida por conexões que encurtavam a necessidade de palavras, como geralmente acontecesse com amigos (ainda quero um dia escrever sobre isso). Desenvolver a fala significa desenvolver a capacidade de estabelecer conexões circunstanciais e de fazer ajustes dinâmicos, o melhoramento dessa capacidade implica uma desenvoltura que não se reduz a uma técnica (aliás, como a própria escrita) e tem efeito ético e político.

O destino se encarregou de criar circunstâncias que me levaram a encarar a necessidade de desenvolver, pelo menos um pouco, minha capacidade de falar fora da bolha. O efeito da fala é notoriamente distinto, porque perceptível. A escrita é uma experiência solitária e raramente constatamos seu efeito. A fala, ao contrário, exige algum tipo de presença e por isso com frequência tem efeito notório e imediato. A presença do espírito, para usar uma expressão conhecida e interessante, se manifesta mais perceptivelmente por meio da fala. Isso por si só já é um tremendo fato, e profundamente atrativo.

Apesar de tudo isso, pra mim o maior desafio de desenvolver a fala é a completa aversão que eu sinto pela vulgaridade do desejo de falar. Na minha cabeça a vontade de falar está visceralmente associada a um intuito de chamar atenção tão comum e tão vazio que eu não consigo admitir esse desejo senão como expressão de um sentimento que eu não toleraria em mim. Depois de um tempo a escrita naturalmente se converte não apenas num hábito, mas numa necessidade, em algo que dá azo ao que nela há de terapêutico. Como admitir coisa semelhante a uma vontade de falar, quando me enoja as pessoas que vão pela rua matraqueando como se tudo que lhes saísse pela boca fosse pure gold? Como não sentir vergonha pelo desejo vaidoso e egocêntrico de sentir o holofotes apontados para si? Há muitos obstáculos postos para meu desejo de aperfeiçoar essa competência e o desafio de superá-los aponta para questões que foram sempre centrais para mim.


A escrita tinha aparentemente uma vantagem (que não tem mais), ela podia funcionar como um horcrux, pois era um modo de gravar o espírito no texto. Por exemplo, nas páginas dos seus livros e escritos o espírito de Nietzsche vive, como Sauron vivia no Um anel, como Valdemort vivia nos horcrux (o que me leva a pensar, Tolkien inspirou J. K. Rowling?). Sua presença pode ser sentida. A oralidade, apesar de sua força, do seu caráter imensurável, tinha muitas limitações, que foram superadas depois que aprendemos a gravar em vídeo, e especialmente depois que entramos numa sociedade digital e construímos tecnologias de armazenamento como o Solid State Drive (SSD). O historiador da computação Paul Cerruzi tem uma seção só sobre Solid State Eletronics em seu livro, Computing, a concise history.

Why the golpe matters

Eu sou do time dos que acham que se a gente não tem dispositivos legais ou políticos para impedir que uma presidenta eleita seja injustamente deposta, a gente tá fodido! Não é como se nós tivéssemos perdido uma coisa qualquer, algo sem importância, e não nos restasse mais que olhar pro outro lado, dizer “a vida é dura!” e admitir que esse é o fato!

Simbolicamente, é a arbitrariedade máxima! Querer construir um sistema de justiça que admite que a figura máxima do poder político possa sofrer arbitrariedade parecida com a que sofrem diariamente os milhões que fazem parte desse sistema é como querer construir um computador usando ovos. Se a justiça não existir pra ela, pra quem existirá?

Esse não é nenhum elogio a autoridades, que fique claro (que não sou dos seus maiores simpatizantes), mas é simplesmente insano viver num sistema de autoridades (como é o Estado de Direito) e permitir que a autoridade máxima esteja exposta a conchavos e conspirações de poderes paralelos. — Faz sentido chamar as decisões e intervenções de agentes de poderosas classes econômicas de poder paralelo? Faz, se você acredita no Direito, na Justiça, na Institucionalidade, essas palavras bonitas que circulam pela política e pelo discurso político-jurídico; faz, se você acreditar que uma coisa é a justiça, outra coisa é economia, e que embora elas se entremesclem aqui e ali, são e devem ser coisas diferentes.

Instagram: Linha do Trem

“Na prática, a teoria é outra”, como bem lembrava Celso Rocha de Barros no título do seu blog (e no seu Twitter). Não é que a teoria seja outra, é que a prática vem antes da teoria, a Praxis vem antes da regra: “No começo era o ato!” — mas isso não vem ao caso agora. Na prática, o dinheiro não se dobra às leis, ele as molda, e quando não pode simplesmente ditá-las, compra aqueles que as escrevem ou os que as interpretam. Dilma não foi destituída porque os ricos assim determinaram, o poder econômico não é absoluto, mas quando as condições eram favoráveis, eles souberam amparar e mexer os pauzinhos para substituí-la por alguém servil à sua agenda — a revelia dos interesses da República e das consequências institucionais dessa estratégia. Assim, começa o governo Temer-Bolsonaro; assim começa 2016: A (re)conquista do Estado (sic), a formação de um novo governo civil-militar.

O grande acordo ético que selou esse novo país em que vivemos, livre da corrupção, onde o centrão já não tem nenhum poder.

O poder econômico agiu por duas vias principais quando o telefone tocou e lhe ofereceram a oportunidade de fazer parte de um grande acordo nacional: apoiando a blindagem dos tucanos na Lava-Jato, para que o espólio eleitoral da derrota do PT viesse pro PSDB em 2018; e construindo internamente, ainda no governo Temer, o esteio do que viria a ser o governo de Bolsonaro e de seu preparadíssimo ministro Paulo Guedes. Blindar o PSDB nunca foi difícil no Brasil, todos sabem disso desde antes que Geraldo Brindeiro tivesse virado Engavetador Geral da República, ainda mais tendo Sérgio Moro como principal ator no circo da Lava Jato. O plano era voltar a colocar um tucano no governo, era o sonho da Faria Lima. Bolsonaro foi improviso, coisa de última hora, mas com o doutorado de Paulo Guedes em Chicago ele poderia ser apresentado à massa cheirosa (sic), por avatares do pensamento nacional como Rodrigo Constantino e Guga Chacra, como representante da inteligentíssima entidade Mercado (entidade à qual devemos todos devoção).

André Dahmer, preciso como sempre.

Toda essa digressão pra dizer que o poder econômico é o único poder real, ou pelo menos o mais influente e determinante (mesmo em sociedades de sólidas instituições; o EUA é uma delas?) e o Direito como elemento constituidor (ou canalizador) de um poder popular não é nada mais que um belo espantalho no qual podem acreditar nós que vivemos em países da bolha ocidental. E esse poder real só existe porque existe o capitalismo, e por mim tá tudo bem se a gente quiser acabar com ele, mas se você não quer isso e ainda acredita em Direito, em Democracia, e acredita que essas palavras abstratas podem funcionar junto com a ideia de capitalismo, essa outra palavra bem concreta, você precisa defender a todo custo uma hierarquia de poder. E você não tem escolha! O poder político está hierarquizado no Estado de Direito, e sua pretensão, seu ideal, é que a justiça se estenda a todos os membros desse Estado; por isso é uma condição necessária para concretizar esse ideal que as autoridades que constituem a hierarquia desse poder tenham condições de realizar a vontade dos seus representantes, no caso dos políticos, e a função que lhes compete no estado, no caso dos funcionários públicos — para usar dois tipos de autoridades como exemplo. Se você não puder garantir a justiça nem para esses poucos privilegiados que fazem parte dessa hierarquia, para que eles possam cumprir seu papel estrutural, como é que vai constituir um sistema que garanta a justiça para todos? You tell me! Fala-se muito em instituições, mas o que são elas? Bem, o que se sabe é que há uma estabilidade, uma regularidade característica da coisa pública dos países onde há instituições fortes; são os modelos que nos inspiram, não é verdade?

A estabilidade a que nesse caso damos o nome de institucionalidade é o contínuo compromisso, um compromisso que se estende no tempo, de fazer com que as entidades públicas atuem de maneira regular, ordenada e previsível, conforme entendimento bem estabelecido sobre leis e princípios, entendimento que deve necessária e primordialmente se manifestar em práticas institucionais, em ações que não se desviam de consensos e acordos públicos que têm papel fundamental e força quase inexorável. A força institucional de um país é um antídoto contra a arbitrariedade (e a tirania). Quando permitimos que uma presidente honesta fosse deposta, jogamos no lixo as incipientes instituições que temos alentado e construído nas últimas décadas e abraçamos a arbitrariedade. O resto é conversa.

Não convém permitir que a força da anti-intelectualidade no debate público brasileiro, que está por toda parte e em todo espectro político, transforme esse debate numa banalidade, em algo trivial e sem importância. Não é tão difícil assim de entender, ou estamos num Estado de Direito e a política não é um vale tudo, ou não estamos. Se alguém quiser formar outra sociedade, mais simples (menos complexa), horizontal e auto-organizada, eu topo, mas viver nessa e tratar como trivial a destituição ilegítima de uma presidenta é desprezar o Direito e fingir cínica ou estupidamente que não despreza. Quem quiser que argumente em contrário.


Tudo isso me lembra um texto que escrevi em 2008, sobre a diferença entre julgamento técnico e julgamento político. O foco crítico era o mesmo: normatividade (Direito) versus arbitrariedade. Nunca poderia imaginar que, 14 anos depois, a ideia de arbitrariedade tivesse ganhado tanto importância na minha vida e nas minhas ideias pelo que ela tem de opositiva à ideia de determinação.


O texto que escrevi sobre o Golpe Parlamentar em si (Golpe: modo de usar) não é um texto preocupado em justificar como verdadeira ou falsa a hipótese do golpe, mas interessado em refletir sobre a plasticidade dos conceitos e do próprio sentido, e sobre a relação do sentido com o campo intencional. Meu objetivo era mostrar que não importa quantas opiniões ilustres, quanta bibliografia você consegue reunir para apoiar uma concepção correta sobre o que deve ser classificado como golpe e para falsear uma concepção concorrente, incorreta e falsa, o sentido de conceito não se reduz às pretensões veri-funcionais da argumentação. Mas esse é um texto precário, dada a importância (e extensão) da discussão. Para ler alguma coisa muito melhor sobre o tema, sobre essa mudança de estatuto lógico, recomendo a nota de rodapé na que Bento Prado Jr. escreveu sobre as mudanças no pensamento de Freud, usando conceitos kantianos. Isso é para ler de joelhos!

Há 30 anos Vininha se foi

Faz trinta anos morreu Vinicius de Moraes. Vininha, como era conhecido, foi uma figura central para minha formação. Primeiro, como sambista e compositor, suas músicas chegaram aos meus ouvidos pelas escolhas de meus pais, e ele não demorou a se integrar também ao meu próprio gosto. Depois, como poeta e cronista, igualmente bem sucedido e marcante, logo se afirmou como uma referência sólida. Por muitas razões Para viver um grande amor sempre foi um dos meus livros de cabeceira.

Poema de aniversário” era uma tática segura para angariar a simpatia das namoradas, “O dia do meu pai” um relato da relação entre Vinicius e seu pai (ensejada pela sua morte) que estreitou ainda mais nossos próprios laços. “Médico de flores” um exemplo da extrema sensibilildade do poeta e  da sua maestria na lida com a palavra. “Amor por entre o verde” uma reflexão profunda, temperada pelo sabor da poesia, sobre o amor e sua ancestralidade, quase uma arqueologia do amor, como ele mesmo dizia. “Para viver um grande amor“, uma receita certa, não para longevidade da relação, pois como se sabe, Vininha não mediu a valia dos seus amores pelo tempo que eles duraram — que eu possa me dizer do amor que tive, que não seja infinito, posto que é chama, mas que seja eterno enquanto dure –, mas para construir uma relação de respeito e de paz. “Os politécnicos” me comovia por motivos não muito claros, creio que eu partilhava com Vinicius aquela paixão pela juventude comprometida, sonhadora, com gana de viver, pois era isso também o que transparecia em seu relato, contado com o mesmo carinho com que um pai fala de seus filhos. “O verbo no infinito“, um poema belíssimo que começa com a tradução perfeita do amor materializado na criança: Ser criado, gerar-se, transformar / O amor em carne e a carne em amor; nascer / Respirar, e chorar, e adormecer / E se nutrir para poder chorar.

Mas o poema que eu mais gosto — e que registro aqui como homenagem a ele e a todos os que gostam de sua poesia — é “Ternura”:

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma…
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar
                [extático da aurora.

Aproveitando a oportunidade, é preciso também corrigir um equívoco comum, Vinicius sempre foi político, um diplomata de profissão, nunca teria escrito algo tão grave quanto as feias que me perdoem mas beleza é fundamental, sem antes interpor um atenuante para suavizar o peso das suas palavras. As muito feias que me perdoem, foram suas palavras em “Receita de mulher“.