Sobre o relativismo

S

Recolocar a lógica no tempo

Para fins explicativos, e partindo de um ponto de partida quase arbitrário, poderíamos dizer que o relativismo é uma consequência do triunfo da psicologia sobre as perspectivas não-psicologistas em lógica. Os modelos antipsicologistas consideravam que as regras mais gerais da linguagem (a sua forma lógica) deveriam ser puras, porque a determinação dos elementos linguísticos e a universalidade da linguagem dependiam de que seus elementos axiais não fossem contingentes, como qualquer fato do mundo. Essa dimensão mais geral não deve ser verdadeira nem falsa, pois não está exposta à contingência. A fundação de uma linguagem universal é imutável, seus eixos são necessários e não meramente verdadeiros. Há uma diferença entre o que é necessariamente verdadeiro e o que é contingentemente verdadeiro no coração do Tractatus Logico-philosophicus (TLP), uma diferença modal. Portanto, a lógica não está constituída por fatos do mundo, ou por regras sobre os fatos do mundo (isso cabe à ciência descobrir), ela antecede todos os fatos naturais, a lógica …

representa uma ordem, e na verdade a ordem a priori do mundo, isto é, a ordem das possibilidades que devem ser comum ao mundo e ao pensamento. Esta ordem, porém, ao que parece, deve ser altamente simples. Está antes de toda experiência; deve se estender através da totalidade da experiência; nenhuma perturbação e nenhuma incerteza empíricas devem afetá-la. — Deve ser do mais puro cristal. Este cristal, porém, não aparece como uma abstração, mas como alguma coisa concreta, e mesmo como a mais concreta, como que a mais dura. (Tractatus Logico-philosophicus, no 5.5563.)

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 97

Apresentando as coisas dessa maneira, constatamos que a veemente oposição à contingência e à impureza protegia a lógica do relativismo, além de garantir a universalidade, mesmo que ideal, de algum extracto da linguagem (a sua camada mais abstrata); garantia também a própria força normativa da base sobre a qual todo o simbolismo está assentado (a necessidade de suas leis), e nos fazia imaginar que já estava também garantido pelo menos um fundamento comum de acordos, pois tínhamos a mesma forma de julgar e pensar que Kant esperava que tivéssemos. Esse modelo antipsicologista, que tem o TLP como exemplar mais belo e completo, não consegue se sustentar. E numa transição que apresento abruptamente, sem explicar, pois importa para compreender o relativismo, este antigo modelo dá lugar a uma perspectiva que abole a pretensão de pureza da lógica, e, mais do que isso, que afirma que a lógica (o código, a norma, etc.) é um mero produto das práticas (instaurando assim uma circularidade inescapável). A norma é o resultado da constância das ações e práticas humanas, não o guia que as determina. Em realidade a norma é as duas coisas ao mesmo tempo e a relação entre normas e práticas não pode ser vista fora de uma espiral de determinação que retrocede a um conjunto de práticas não codificadas (e pode dar lugar a uma genealogia das normas e proposições gramaticais), caminhando assim em direção ao âmbito de uma antropologia e, por fim, de uma primatologia.

A gramática de uma língua não é registrada e não existe até que a língua já tenha sido falada pelos seres humanos por muito tempo. Da mesma forma, os jogos primitivos são jogados sem que suas regras sejam codificadas e sem que uma única regra seja sequer formulada. Mas olhamos para jogos e linguagem sob a lente de um jogo jogado de acordo com regras. Ou seja, estamos sempre comparando a linguagem com tal procedimento.

Ludwig Wittgenstein, Philosophical Grammar, §26

O primado da prática recoloca no tempo (no acontecer e na vicisstude) aquilo que estava na eternidade (sub specie aeterni), o reino do que é sempre atual, e afirma muito claramente: tudo está no tempo (e na história), não há nada fora dele. Tudo está inexoravelmente em algum jogo, nada pode estar dentro da linguagem e ao mesmo tempo fora dos seus jogos essencialmente pragmáticos.. pois toda dimensão normativa, mesmo a mais geral (e aparentemente necessária), deve seu sentido a jogos pragmáticos que podem derrogar suas regras de seu papel fundamental. Nenhuma verdade, nenhuma necessidade estaria imune a possibilidade de revisão que instaura a sua mera presença no mundo, no tempo, entre coisas que passam e deixam de ser.

O ocaso da pretensão de pureza significa que o distanciamento da contingência do mundo não é mais que um expediente técnico das lógicas e não mais o pano de fundo metafísico que lhes empresta seu lugar privilegiado. Por isso, a separação entre lógica e psicologia tem limites, de tal sorte que é inevitável admitir que, em alguma medida, o que não está determinado (o arbitrário) interfere no espaço normativo de maneira imprevisível (naturalmente, a camada mais geral da linguagem é menos vulnerável a esse efeito, mas não imune). Essa contaminação da lógica pela psicologia (espaço da vontade) tem efeitos que mal podemos compreender.

Epígrafe do Circuito dos Afetos, de Vladimir Safatle, uma curiosa reflexão sobre verdade e possibilidade.

Assim, com a derrocada da pureza, já não é possível manter incólume a abstração que leva Kant às camadas mais puras da linguagem, da lógica transcendental à lógica geral pura. A unidade do fundamento está irreparavelmente fragmentada, e o modelo, o sonho iluminista de uma razão universal e de um mesmo modo de julgar e pensar, já não pode constituir um marco ético dos seres humanos. O que se segue disso? Muita coisa.. e, ao mesmo tempo, muito pouco. O que me interessa precisamente é a conexão entre o relativismo e a antropologia (a etnologia), entre o relativismo e um modo de considerar outras formas de vida, tendo como pano de fundo a ausência de dimensões universais fundantes, no sentido antes pretendido. Na ausência de um fundamento lógico e epistêmico, que pudesse funcionar como árbitro no conflito de opiniões que Frege desejava, naturalmente os elementos externos à lógica e a epistemologia voltam a ser elementos aos quais deveríamos recorrer para romper as bolhas, para lidar com desacordos. A política assim retorna (ou deveria) não porque constatamos sua importância, mas porque já não podemos acreditar na tecnologia, na ciência, numa engenharia do consenso, para usar a expressão de Edward Bernay, para resolver questões que em realidade não são problemas (técnicos). Desse modo a política se apresenta como o avesso da técnica, o anti-cálculo, o reconhecimento de que nem todas as questões podem ser encaixadas na chave universal da Tecnosfera, a chave problema/solução, e nesse lado de fora está uma ética que se assemelha a ética de Rousseau, relembrada por Lévi-Strauss, uma ética da pluralidade e da variabilidade dos tipos humanos.

É assim que passamos de uma perspectiva racionalista, universalista, determinista sobre o conhecimento e a ciência ao relativismo, ao reconhecimento de que a lógica e a linguagem têm limites, e os acordos que estes instrumentos oferecem tem alcance limitado e não esgotam a variedade das experiências sociais. Para conseguir afetar aqueles que estão fora do marco dos nossos acordos e quadros normativos é preciso utilizar mais do que cálculo, precisamos prescindir de uma atitude instrumental (atitude que nos é tão cara) e incorporar mesmo a arte à política, fazer dela não um instrumento, mas uma atmosfera que permite e estimula conexões humanas. É preciso que a linguagem também seja arte, seja manifestação do espírito, e não daquilo que em nós é maquinal e determinado, pois não por outra razão os ideais da Inteligência Artificial vão no sentido oposto às aspirações derivadas da pretensão de determinação.

O relativismo dá lugar a uma política e a uma cosmopolítica relativista que é também uma ética de desacordos radicais.


Pra mim, é inevitável não pensar em Quine ao tratar do relativismo, pois ele não era o tipo de pensador reticente ante supostos perigos relativistas. A epistemologia naturalizada é o testemunho de uma atitude afirmativa diante da falta de fundamentos sólidos e estanques representada pelo distanciamento do solo analítico kantiano. Diante disso, Quine proclamava nossa soberania conceitual e propunha que deveríamos aprender com as regularidades do mundo, ainda que essa regularidade fosse histórica e contingente.

Epistemology, or something like it, simply falls into place as a chapter of psychology and hence of natural science. It studies a natural phenomenon, viz., a physical human subject. This human subject is accorded a certain experimentally controlled input-certain patterns of irradiation in assorted frequencies, for instance — and in the fullness of time the subject delivers as output a description of the three-dimensional external world and its history. The relation between the meager input and the torrential output is a relation that we are prompted to study for somewhat the same reasons that always prompted epistemology; namely, in order to see how evidence relates to theory, and in what ways one’s theory of nature transcends any available evidence.

Quine, Epistemology naturalized

Não sou do time da epistemologia naturalizada, mas é preciso cojones para propôr a subordinação da epistemologia à psicologia e um sujeito que ousa propôr algo semelhante certamente não precisa de muletas e tampouco tem medo do boi da cara preta.

Adicionar comentário

outras redes

Perfis em outras redes

Preferidos

A categoria Preferidos é especial, porque reúne os textos que eu mais gosto. É uma boa amostra! As outras categorias são mais especializadas e diversas.

Categorias

Arquivos