Suficiência e sobriedade

Eu escrevo na condição de uma pessoa completamente vendida ao capitalismo, como alguém doentiamente vaidoso, que aprecia sem reservas todas as experiências e serviços, os sabores e gostos, as texturas, os mimos, todas as delícias e os confortos do capitalismo: isso aqui é um insustentável!

Não importa como nós vamos resolver o “problema” de entregar às futuras gerações um mundo melhor, qualquer que seja a “solução” que proponhamos, ela passará inevitavelmente pela nossa capacidade de imaginar uma forma de vida orientada à suficiência e à sobriedade — e não à opulência, à abundância e à ostentação. A forma de vida capitalista é francamente incompatível com a nossa existência no planeta.

Precisamos mais do que nunca colocar a arte e o jogo (ludos) no centro da sociedade humana. Agora, precisamos mais da imaginação que do conhecimento.

O canto das sereias

Conhecimento, verdade e sentido

Há pessoas que se perguntam se algum dia a ciência responderá a todas as suas questões, a todos os seus problemas, e decifrará inteiramente o que não sabemos (o desconhecido), e há pessoas como Ludwig Wittgenstein, que pensava: — se tudo que a ciência se pergunta puder um dia ser respondido ainda assim sentiríamos que o mais importante ficou de fora. Esse é o sentido da distinção entre fato e valor, isto é, da consideração de que a ciência só lida com fatos, com coisas que não tem valor nem importância em si mesmas.

Sentimos que, mesmo que todas as questões científicas possíveis tenham obtido resposta, nossos problemas de vida não terão sido sequer tocados. É certo que não restará, nesse caso, mais nenhuma questão; e a resposta é precisamente essa.

Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus, 6.52

Essa consideração dá uma nova perspectiva a tudo que não é ciência, simplesmente porque nem tudo que importa é relativo ao conhecimento. Em realidade, nada do que importa se reduz ao conhecimento, embora o conhecimento possa ser útil na busca daquilo que importa. Aliás, o problema do mundo é que a ciência não podem nos dizer o que fazer, mas nós apostamos todas as nossas fichas nessa ilusão ((Tecnosfera e Tecnocracia)).

Poucas verdades resistem ao tempo, porque embora os cientistas se iludam crendo que o mundo é como um livro cujas leis fundamentais e inexoráveis a ciência desvela, a ciência é sempre histórica e se parece mais ao Livro de areia, de Borges. O sentido, no entanto, perdura. Vejam, por exemplo, a imagem de Ulysses atado ao mastro (imagem que me fascina, mesmo que eu nunca tenha lido a Odisseia). O que pode nos ensinar essa imagem? Certamente nada, num sentido objetivo, e, no entanto, ela atravessa os séculos como se estivesse entalhada em nossa memória coletiva, como um meme, no sentido técnico do termo. Ela evoca o sentido do desejo de deixar-se enfeitiçar, de uma escolha que elege a fruição do feitiço, ainda que tome precauções para evitar agir como um enfeitiçado. O canto das sereias não é uma experiência da qual devemos prescindir e essa ideia parece misteriosamente conectada ao simbolismo da nossa própria vida.

Ulysses atado ao mastro
Ulysses atado ao mastro enquanto escuta o canto das sereias

O aprendizado, num sentido amplo e não tem técnico, não é uma vivência objetiva e com frequência reverbera no tempo, enquanto amealha elementos que se acumulam para, quem sabe um dia, contar-nos algo importante e indispensável.

Quando nos damos conta de que o mundo é muito, muito mais do que o conhecimento, todas as experiências e especialmente a experiência da arte ganham novas cores, porque nunca se sabe onde pode estar a lição que define o sentido da nossa vida e de nossas ações.

Dados, dados, dados: Era Digital

Se estima que a quantidade de dados produzida entre o início da Era Digital, em 2002, e hoje, 2023, é maior do que a humanidade produziu nos 250 mil anos anteriores. Muito maior! Na verdade, tudo que se produziu antes disso HOJE só corresponde a 6% de tudo que nós temos em dados registrados (mais uma vez, estimativas).

Loucura ter mudado de registro, né? Ter saído do texto ao hipertexto (HTML5 e o streaming de vídeo em HTTP). O império do vídeo trazido pelo hipertexto tem como consequência o aumento exponencial do volume de dados produzidos e trafegados nas redes. E a necessidade de tecnologias de diminuição de latência nas redes, como a 5G. A necessidade de tecnologias que permitem diminuição do tamanho das unidades de armazenamento, como a do Solid State Drive. Você pode gravar Shakespeare num arquivo plain-text, num Markdown de 50Kb, mas você pode armazenar 13Gb ou 30 Gb numa peça de teatro gravada, num mp4 ou mkv, ou um filme que encena alguma de suas peças. Em termos de infraestrutura parece como se fosse o mesmo — como se um disco de armazenamento de 1Tb SSD fosse uma tecnologia tão comum e acessível quanto um pedaço de papel. A sociedade digital é um castelo de cartas! Você tem feito seu backup?


Eu leio David Foster Wallace falando sobre o impacto da Televisão na cultura dos EUA e penso: “Caralho, a gente mal processou isso e o paradigma já mudou”. É como se a gente estivesse cego pro presente, pro hoje! O digital é muito novo, ainda brilha com a luz de uma estrela luminosa demais para ser olhada a olho nu.

Esse texto foi publicado em “A Supposedly Fun Thing I’ll Never Do Again“, que eu não sei se foi editado no Brasil.

Sobre o empobrecimento produzido pela ciência

Desde que os terra-planistas começaram a colecionar vitórias eleitorais em todo o mundo, nós estamos especialmente distantes de uma crítica à ciência necessária e urgente. Diante do perigo de se ver governado por gente estúpida, as pessoas redobraram a tendência a defender cegamente a ciência, ou melhor, a fazer propaganda da ciência como se ela fosse uma espécie de panaceia aos problemas do mundo — e não uma ferramenta a nosso serviço. O último episódio dessa degeneração própria à Tecnosfera se reflete na ideia que a ciência vai tornar obsoleto também o político, como se a política fosse uma forma primitiva de relação humana a ser suplantada pelo avanço tecnológico. A crença cega em respostas tecnológicas é um dogma profundamente enraizado em nossa mentalidade.

Antes de mais nada, convém realçar que não se trata de recursar o científico, mas de tão somente introduzir um elemento ausente na perspectiva que temos hoje sobre a ciência, a saber, uma compreensão que mostre o limite dos seus poderes, por oposição à crença num poder sem limites que hoje domina nosso entendimento.

O poder da ciência pode ser resumido numa palavra, regularidade. Regularidade é aquilo que nos permite unir conceitos bem diferentes, como norma, regra e razão. A possibilidade de conhecer qualquer coisa depende de que essa coisa que pretendemos conhecer tenha um comportamento regular. Mas o que acontece se esse objeto que pretendemos conhecer não tiver um comportamento regular? Bem, é aqui que nós temos a oportunidade de apresentar a ciência como criadora de sua própria totalidade, sem que, por causa disso, esteja implicada uma equivalência entre a totalidade suposta no discurso científico e aquilo que designamos com a ideia de realidade. A realidade é o todo maior que a soma das partes.

Do ponto de vista científico, aquilo que é inescapavelmente irregular pode ainda assim ser categorizado, embora não possa ser conhecido, no sentido estrito. Por exemplo, o irregular pode ser caótico ou indeterminado, a depender da área de conhecimento a partir da qual o enquadramos. Essa categorização é uma maneira de separar um espaço em negativo, sem que o enquadramento possa produzir leis. No entanto, de um ponto de vista mais amplo (lógico e não epistêmico), o irregular não pode nem mesmo ser identificado. Wittgenstein apresenta esse tema assim:

Imaginemos que as pessoas naquele país executassem atividades humanas habituais [Wittgenstein considera um caso ficcional mencionado no parágrafo anterior], e, ao fazê-lo, se utilizassem, ao que tudo indica, de uma linguagem articulada. Se observamos suas atividades, é compreensível que nos pareçam “lógicas”. Se tentamos, porém, aprender sua língua, vemos que é impossível. Pois entre elas não existe nenhuma conexão regular do que é falado, dos sons, com as ações; contudo esses sons não são supérfluos; pois se amordaçamos, por exemplo, uma dessas pessoas, este fato terá as mesmas consequências que tem para nós: sem aqueles sons, suas ações se tornariam confusas — se podemos dizer assim. Diríamos que estas pessoas têm uma linguagem, ordens, comunicações, etc? Para aquilo que chamamos de “linguagem”, falta a regularidade.

Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 207.

Trocando em miúdos, onde não há regularidade, não apenas não pode haver verdade (conhecimento), quanto nem sequer podemos enxergar qualquer sentido. Vamos tentar compreender uma ideia parecida também no contexto científico. No livro O que é a vida?, Erwin Schrödinger fala da diferença entre o movimento de uma partícula muito pequena (não um átomo) e o movimento de conjunto dessas partículas (a neblina encapsulada num recipiente de vidro), sua ideia é contrastar a uniformidade e a previsibilidade do conjunto por oposição à quase aleatoriedade do movimento da partícula isolada (e ao tratamento estatístico que ela, portanto, está submetida).

Ilustração do movimento de uma partícula de neblina isolada, chamado movimento browniano.

O movimento do conjunto é regular e previsível, enquanto que o movimento da partícula isolada é quase caótico, Schrödinger afirma: “Esse exemplo mostra que estranha e desordenada experiência teríamos se nossos sentidos fossem sensíveis ao impacto de umas poucas moléculas”.

A partir de tudo isso poderíamos dizer: a regularidade (ordem) torna as coisas visíveis. Sem a regularidade, não poderíamos ver o que vemos. Mas existe alguma coisa para além do regular? A ciência crê que o mundo e a realidade são inteiramente regulares e supõe que a totalidade de suas leis os esgota, pois o irregular e o indeterminado são em boa medida apenas o espaço do que ainda é desconhecido, daquilo que um dia se converterá em aspectos conhecidos e previsíveis. Mas essa crença é apenas parte da ideologia da ciência, ou melhor, da metafísica publicitária que a sustenta simbolicamente. Na realidade, estamos longe de tornar real a promessa ilusão de mapear a totalidade dos fenômenos do universo — e para constatar isso basta olhar, por exemplo, para o papel reservado à matéria escura no quadro da física ou a importância fundamental que os sistemas complexos tem ganhado nos últimos anos e décadas.

De tudo isso o que importa na verdade é a possibilidade de ver o mundo para além das lentes científicas, é entender que a colossal e inegável capacidade instrumental da ciência só se constitui por meio de um empobrecimento do real. O real é rico o bastante para que o empobrecimento científico não seja sentido como empobrecimento, isto é, como o real é irredutivelmente indeterminado, ele pode e será sempre a fonte de toda determinação e sentido, aquilo que a inteligência usa como recurso para estabelecer suas regularidades, para fazer ver as regularidades que só ela vê. Nesse sentido, a inteligência não cria nada (ou não cria ex nihil), ela apenas nota regularidades não notadas pelas outras inteligências e assim pode inaugurar novos campos normativos (criar). O real e o regular não coincidem, como o determinado e o indeterminado não podem conviver. A exclusão que a ciência opera por meio da verdade, tudo que é falso, tudo aquilo que não é o caso — nada disso esgota o real. O real não é o espaço lógico, esse conjunto, essa extensão formada pela união dos campos do verdadeiro e do falso não esgota tudo que é possível, porque o possível não é simplesmente lógico.

É como se tivéssemos esquecido disso, como se as possibilidades abertas pela ciência tivessem nos levado a pensar que tudo já está determinado e pode ser perfeitamente conhecido e computado com nossas poderosas máquinas computadoras (o computador quântico está vindo aí). Mesmo que pudéssemos conhecer tudo que há para ser conhecido hoje, não apenas haveria muita coisa do lado de fora, como tudo de importante estaria excluído dessa totalidade formada pelo nosso conhecimento — a lição de Wittgenstein que eu não canso de repetir. Por isso é tão urgente que saibamos ver o mundo de outra forma, que saibamos usar o conhecimento como ferramenta — não como doutrina e dogma — para escapar ao desafio que a complexidade da sociedade humana alimenta e na qual está envolvida. O desafio de pensar que devemos lidar com o mundo não apenas com instrumentos, mas, sobretudo, com símbolos, símbolos que nos fazem lembrar da importância da simplicidade, uma lição que é especialmente difícil de aprender na Tecnosfera, indo em direção às Smart Cities.

Nós temos meios de enxergar o que a ciência não vê, o que ela exclui conforme sua autoridade suprema, a linguagem e o simbolismo como forças criadoras; temos meios de resgatar os ocidentais (e os que estão subordinados a eles) da húbris tecnológica e científica que nos faz rumar inadvertidamente em direção ao colapso: a arte pode nos ensinar — the forgotten lesson de Wittgenstein, como lembra seu biógrafo, Ray Monk — a ver de outra maneira o possível, a reabilitar a imaginação e, por fim, a regressar ao político como campo incontornável para aqueles que conhecem os limites da técnica. Eu sugiro que a gente comece vendo a série Station Eleven, se começarmos por aí já estamos num bom caminho. A série é uma excelente oportunidade para contemplar o que poderia ser um mundo de simplicidade, orientado fundamentalmente à arte — há coisas que só a ficção pode fazer por nós.


Sobre o empobrecimento em si, como conceito, eu diria que toda a objetivação empobrece quando nos faz esquecer que o mundo não é objetivo, quando, em nome da manutenção do poder e da pretensão de controle, olvidamos que o mundo não tem o fechamento necessário à ciência. Só quando aprendemos que a realidade transcende explicações podemos gestar um modo de agir que não esteja contaminado pelas doces e perigosas ilusões que a ciência alenta.

A irredutibilidade do valor ao fato

O conhecimento verdadeiro ignora os valores, mas, para fundá-lo, é preciso um julgamento, ou melhor, um axioma de valor.

Jacques Monod, O acaso e a necessidade

Um dos legados mais impactantes do pensamento de Wittgenstein é sem dúvida a distinção entre fato e valor, ou melhor, a irredutibilidade do valor ao fato. É certo que o pensamento de Wittgenstein muda e que, no segundo Wittgenstein, os conceitos de fato e de valor não têm uma importância marcante, não são tão centrais quanto no Tractatus Logico-Philosophicus; é certo também que Hillary Putnam tentou armar uma gambiarra para corrigir esse problema, com toda a elegância e inteligência que marcam seu pensamento, mas sem sucesso; por fim, é bem possível que a essa altura do campeonato já existam meia dúzia de filósofos revolucionários que não apenas superaram o problema de Wittgenstein, mas que construíram toda uma filosofia que se estabelece a partir disso, com décadas de intenso debate universitário, artigos e livros publicados, toda uma extensa literatura estabelecida após a superação dessa aparente dificuldade que era a irredutibilidade do valor ao fato.

Eu sei pouco dos rumos que a filosofia universitária tem tomado, embora goste de muita coisa dentro dela, mas duvido que exista uma resposta à irredutibilidade de que fala Wittgenstein. Essa irredutibilidade é um ponto insuperável de uma filosofia superada, e que esse ponto se conserve com firmeza, a despeito do colapso de grande parte à sua volta, mostra o quanto estamos longe de ter uma atitude reflexiva a respeito da ciência. — O que quer dizer e o que implica a irredutibilidade do valor ao fato? A mais forte implicação é a seguinte: o conhecimento não pode determinar o que devemos fazer. Entendo determinar naquele sentido demolido pela segunda fase do pensamento de Wittgenstein, como se o conhecimento pudesse em certo sentido ditar e constranger o que devemos fazer, como devemos agir, o que devemos querer — todo o reino da ação está não apenas inseparavelmente ligada a interesses, mas é determinado por valores. (O que fazemos && o que devemos fazer) está amarrado aos valores. Toda ação mostra os valores que a mobilizam, não é como se o conhecimento pudesse vir depois e restabelecer o que devemos fazer. Essa separação radical entre conhecimento e ética nos lembra o lugar da arbitrariedade, isto é, daquilo que está além da pretensão de determinar, do que não pode ser determinado, daquilo que é emergente e vêm com a inteligência. É difícil aceitar o lugar da instabilidade, da rebeldia, da radicalidade, do acaso, de tudo que ameaça uma estabilidade e ordem (previsível) que buscamos como se nossa vida dependesse disso. Bem, mas assim o tema se encaminha a outros temas igualmente complexos, e é melhor deixar essa conversa para outra ocasião.

(Essa discussão é também uma forma de apresentar o velho dilema da filosofia, a relação entre teoria e prática; como aquilo que estabelecemos em teorias que se pretendem verdadeiras se relaciona com nossas ações, com aquilo que fazemos e com a determinação dos fins das ações humanas e com o que fazer?)

Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar.

Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus. 7

Como fica a relação entre fato e valor no segundo Wittgenstein, no pensamento que se seguiu ao Tractatus? Ali, fato já não é mais uma peça realista, como no realismo lógico do Tractatus*, não é mais aquela estrutura mínima que arma tudo e na qual está dada a substância do mundo. Fato pro segundo Wittgenstein já está livre de pretensões fundacionais, então já não pode mais cumprir o papel que cumpre numa filosofia preocupada em falar sobre as coisas que tem sentido dizer e num pensamento que acredita que a única função da linguagem é figurar fatos. Tudo que não fosse figuração de fatos era sem sentido no Tractatus, era a pretensão compreensível, mas vã de falar de coisas sobre as quais não deveríamos falar. Sobre aquelas coisas que nós realmente podemos falar, o mundo nos fatos, nós podemos falar claramente, sobre o resto, como o mundo dos valores — o mundo mais importante, Wittgenstein nos lembra incansavelmente — estaríamos condenados a balbuciar e berrar coisas sem sentido, como uma mosca que arremete contra o vidro, tentando escapar de uma garrafa fechada. Sobre o valor, sobre o que importa — e acredite!, o que importa não são os fatos — nós estaríamos condenados a calar, ao silêncio, se entendêssemos que não poderíamos falar sobre elas, porque elas não são fatos. Tudo que não é fato carece de sentido no mundo onde a única função da linguagem é representar fatos, tudo que não é fato carece de sentido no mundo onde tudo que tem sentido tem uma relação fundamental com o verdadeiro, sobre todas as coisas que não são fato nós faríamos melhor se simplesmente não falássemos sobre elas, já que não podemos tratá-las objetivamente — é um dever ético o que se enuncia no final do Tractatus, a ponte para o segundo livro, o mais importante, aquele que nunca foi escrito. Essa talvez seja a mais breve impossível explicação para o aforismo 7 do Tractatus Logico-Philosophicus.

Sentimos que, mesmo que todas as questões científicas possíveis tenham obtido resposta, nossos problemas de vida não terão sido sequer tocados. É certo que não restará, nesse caso, mais nenhuma questão; e a resposta é precisamente essa. 

Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus, 6.52

No pensamento do segundo Wittgenstein o fato já é um artefato relativista, sua correspondência aos nossos conceitos não os justifica, apenas testemunha que nossos conceitos — mesmo os mais gerais, como o de lógica, ou o conceito de regra, lei e norma — estão inseparável e irremediavelmente presos ao tempo, a uma experiência (não pura), e que eles não podem ser formalizados e pois são históricos, estando, portanto, sujeitos à vicissitude como tudo o mais.

O cientificismo é o dogma que organiza a sociedade porque, conscientemente, nos seduz a possibilidade de controle instrumental sobre o mundo, e mesmo os excluídos dos prazeres e confortos do mundo desenvolvido sonham ingenuamente em desfrutar desses privilégios. Inconscientemente, leigos e cientistas supõem igualmente que o conhecimento nos dirá o que fazer porque creem que é assim e sempre tem sido. É verdade que o mundo produtivo, dirigido por políticas econômicas que têm a ciência como braço direito, se orienta por aspectos técnicos, especialmente num mundo ligado à (e dependente da) inovação tecnológica, mas isso não significa senão que a ciência estrutura os marcos tecnológicos e produtivos, não que estipula o que devemos desejar e fazer. A ingenuidade do cientistas — que é especialmente desconcertante, se comparada à dos leigos — se deve à que a ciência já não tenha nenhum vínculo com a filosofia, entendida como signo de um compromisso histórico com a reflexão, compromisso que tem um componente de instabilidade inaceitável para pessoas que alimentam sonhos de abarcar a totalidade e estabelecer determinações absolutas. O efeito cascata criado por este estado de coisas é o seguinte: uma ciência de complexidade crescente, profundamente técnica e inacessível senão às poucas autoridades de um certo campo (nem mesmo campos de pesquisa adjacentes podem contemplar inteiramente o que concerne a um campo específico, dada a complexidade que tem se armado), é respaldada por leigos que pensam que seu dever é apoiar cegamente coisas que não entendem, sob pena de seres confundido com negacionistas. A batalha do bem contra o mal reeditada em outro campo. Uma ciência inquestionada e inquestionável, cega, é instrumento dócil de um complexo sistema político que a subordina a interesses que ela não compreende porque não fazem parte do seu quadro técnico de questões e problemas (daí o lugar dos puzzle solvers) e que, portanto, ela só pode aceitar sem examinar.

A impossibilidade de fundar o valor no fato nos constrange uma vez mais a voltar à política, à dialética (nos lembrará Gérard Lebrun desconfiado), à necessidade de estabelecer mediações e, sobretudo, de aceitar o caráter convencional (na falta de melhor palavra) das nossas construções, e abdicar das ilusões de determinação ainda predominantes no tempo da Tecnosfera e da Tecnocracia.


Encontrei essa pichação na 25 de março, em Sampa, e fiquei surpreendido com a coincidência de temas

* Se existe um realismo no Tractatus, não é um realismo de fatos, mas das coisas. Os fatos já estão no nível das contingências, das complexidades articuladas, do que pode ou não ser o caso. As coisas, por outro lado, são a substância do mundo, fixa, imutável e simples.

Por que bons argumentos não importam?

Por que as pessoas não mudam de opinião mesmo quando ouvem bons argumentos e/ou fatos que contrariam suas crenças? Bem, primeiro, porque fatos importam muito menos do que creem os cientistas (e os realistas em geral). Mas o mais importante é: porque a psicologia é o centro da vida simbólica humana, não a lógica. E a vontade é o único fator que determina o colapso ou a manutenção de sistemas de crenças. O único.

Pode-se conduzir um cavalo à beira d’água, mas não se pode obrigá-lo a beber.

Sommerset Maughan, A servidão humana

E adivinha? Todo mundo quer manter o seu sistema de crenças. Tendemos à estabilidade (o contrário disso pode bem ser a loucura). Tanto as pessoas estúpidas quanto as inteligentes tendem à estabilidade. A inventividade e o engenho de um cientista — nosso único modelo de inteligência — não necessariamente o abrem à transformação, ele apenas vive num mundo mais complexo que o estúpido (quando não é um deles), não significa que ele esteja mais disposto a trocar de mundo. Um mundo complexo é um mundo mais difícil de desestabilizar.

(Thomas Kuhn e Imre Lakatos falam, cada um à sua maneira, sobre a relação da ciência com a estabilidade: em Kuhn o ponto de vista é o dia a dia do desenvolvimento das pesquisas cientificas, a relação conservadora da ciência normal com as mudanças de paradigma; Lakatos parte da perspectiva de alguém que quer entender e explicar as transformações do falsificacionismo de Popper, do seu falsificacionismo dogmático até suas formas mais sofisticadas onde a psicologia ganha o espaço inevitável que deve ter.)

Ouvir um argumento e estar disposto a ouvir argumentos significa aceitar um jogo cujos limites cada um tem a atribuição de fixar, nesse jogo nada pode obrigar e constranger alguém, apesar da enorme importância que concedemos a fatos e verdades, leis e normas. Absolutamente nada. Não somos máquinas, sistemas input/output, embora esse seja um bom modelo para pensar nossa relação com os argumentos e seu efeitos proposicionais e epistêmicos.

Não é essa a questão: “E se você tivesse que mudar de opinião mesmo sobre aquelas coisas mais fundamentais?” E a resposta a essa questão parece ser: “Você não tem que mudar. Isso é exatamente o que ser ‘fundamental’ significa”

Ludwig Wittenstein, Sobre a certeza, § 512

A impossibilidade da coerção/coação e a falta de acordo sobre os fundamentos sempre levará alguém a sonhar com a ideia de que a linguagem (natural) deveria obedecer… ou melhor, funcionar como pretensamente funcionam a matemática e a lógica. Assim nascem os impulsos intelectuais envolvidos num mito importante — um dos muitos mitos de uma sociedade tecnológica e sem mitos, a Tecnosfera: o mito da determinação (derivado da mitologia das regras1). Mas não convém falar disso agora.

Não levanta nenhuma controvérsia (entre matemáticos, por exemplo) o fato da regra ser ou não seguida adequadamente. Não se chega por isso a atos de violência. Pertence ao arcabouço a partir do qual nossa linguagem atua (por exemplo, dá uma descrição).

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 240

O caso é que vivemos em mundos diferentes, e a pretensão de comunicar-se com outros seres humanos a partir de chaves intelectuais universais não basta para afetá-los (isso significa que essa saída pela universalização está bloqueada de Kant e Frege até Habermas).

Não é como se a única forma de nos afetar fosse por meio de argumentos, ou como se nossa visão de mundo pudesse ser reduzida à totalidade de um sistema de proposições. Levar as pessoas a mudar não é apenas um processo de controle de inferências.

Imaginar uma linguagem significa imaginar uma forma de vida.

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas § 19

Vou fazer duas considerações gerais sobre o que acabo de dizer, dois comentários sobre os quais deveríamos refletir, se é verdade que nosso modo de afetar se afunilou a uma, digamos, dieta unilateral:

A arte (como domínio do não-factual) precisa ser integrada à cultura humana não apenas como forma de entretenimento, mas como fonte de aprendizado. E em um lugar central. Como uma maneira de entender a importância do ficcional… e seu alcance ético. Ou como um modo de nos ensinar a diminuir a importância que acreditamos que o conhecimento tem para a ética (abandonar Platão), de repensar o lugar da ciência na cultura humana e de aceitar a verdade da post-truth, como a extrema-direita já tem feito um monte de gente aceitar (para desespero de uma esquerda que não sabe bem o que fazer, e que parece ainda disposta usar o fact-checking como arma política/ideológica). Enfim, abraçar a pós-modernidade e tirar proveito dessa perspectiva.

A filosofia e o pensar precisam tornar-se comuns, parte do maquinário cotidiano dos seres humano, como uma maneira de nos adaptar à instabilidade, à mudança a que nos conduziu o progresso tecnológico que iniciamos no último século. Filosofar significa aceitar a instabilidade, construir quadros normativos, isso é certo e inevitável, mas sobretudo aprender a valorar, a determinar valor a medida que as circunstâncias se dão — aprendizado que não pode ser reduzido à constituição de quadros normativos e a qualquer forma de objetividade (lição do Tractatus, da Conferência sobre a ética). Não se pode ensinar a julgar e a pensar.

Sentimos que, mesmo que todas as questões científicas possíveis tenham obtido resposta, nossos problemas de vida não terão sido sequer tocados. É certo que não restará, nesse caso, mais nenhuma questão; e a resposta é precisamente essa.

Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus § 6.52

É claro que bons argumentos importam! Aceitar a pós-modernidade não significa transformar-se num marqueteiro ou num pastor — e vender qualquer coisa. A verdade importa profundamente! Mas não como instrumento capaz de constranger e coagir, de acionar as engrenagens da necessidade (lógica), e definitivamente não como parte do único modo de lidar com o Real, como retrato e representação do Real que não admite concorrentes.

“Então você está dizendo que o acordo entre homens decide o que é verdadeiro e o que é falso?” — Verdade ou falsidade é o que os homens dizem; e na linguagem os homens estão de acordo. Esse não é um acordo de opinião, mas de formas de vida.

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas § 241

1 Escrevi sobre o modelo determinação e a mitologia das regras na tese de doutorado, e essa ideia é uma das três pedradas na matemática que foram lançadas no século XX. Uma delas é a pedrada de Gödel no Principia Mathematica, de Russell; a outra é a de Turing, uma pedrada nas definições em sua passagem ao jogo da imitação; e há a pedrada de Wittgenstein em si mesmo, no Tractatus e em seu perfeito modelo de determinação, que as Investigações Filosóficas apresenta como a máquina, arquétipo invencível de determinação (e que afeta não só a matemática, mas todo o simbolismo, por isso Kripke considerou o que ele chama de paradoxo cético o mais bombástico problema filosófico já formulado). Esse comentário sobre a determinação está na segunda seção do quarto capítulo da tese, e tem só 6 páginas. A matemática é o zombie mais poderoso que existe — e porque vivemos no mundo da computação e dos computadores, a determinação não sairá do nosso horizonte intelectual tão cedo. (Mesmo que o quanta traga um cenário tão diferente e desafiador para perspectivas determinísticas em causalidade.)