Sobre o empobrecimento produzido pela ciência

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Desde que os terra-planistas começaram a colecionar vitórias eleitorais em todo o mundo, nós estamos especialmente distantes de uma crítica à ciência necessária e urgente. Diante do perigo de se ver governado por gente estúpida, as pessoas redobraram a tendência a defender cegamente a ciência, ou melhor, a fazer propaganda da ciência como se ela fosse uma espécie de panaceia aos problemas do mundo — e não uma ferramenta a nosso serviço. O último episódio dessa degeneração própria à Tecnosfera se reflete na ideia que a ciência vai tornar obsoleto também o político, como se a política fosse uma forma primitiva de relação humana a ser suplantada pelo avanço tecnológico. A crença cega em respostas tecnológicas é um dogma profundamente enraizado em nossa mentalidade.

Antes de mais nada, convém realçar que não se trata de recursar o científico, mas de tão somente introduzir um elemento ausente na perspectiva que temos hoje sobre a ciência, a saber, uma compreensão que mostre o limite dos seus poderes, por oposição à crença num poder sem limites que hoje domina nosso entendimento.

O poder da ciência pode ser resumido numa palavra, regularidade. Regularidade é aquilo que nos permite unir conceitos bem diferentes, como norma, regra e razão. A possibilidade de conhecer qualquer coisa depende de que essa coisa que pretendemos conhecer tenha um comportamento regular. Mas o que acontece se esse objeto que pretendemos conhecer não tiver um comportamento regular? Bem, é aqui que nós temos a oportunidade de apresentar a ciência como criadora de sua própria totalidade, sem que, por causa disso, esteja implicada uma equivalência entre a totalidade suposta no discurso científico e aquilo que designamos com a ideia de realidade. A realidade é o todo maior que a soma das partes.

Do ponto de vista científico, aquilo que é inescapavelmente irregular pode ainda assim ser categorizado, embora não possa ser conhecido, no sentido estrito. Por exemplo, o irregular pode ser caótico ou indeterminado, a depender da área de conhecimento a partir da qual o enquadramos. Essa categorização é uma maneira de separar um espaço em negativo, sem que o enquadramento possa produzir leis. No entanto, de um ponto de vista mais amplo (lógico e não epistêmico), o irregular não pode nem mesmo ser identificado. Wittgenstein apresenta esse tema assim:

Imaginemos que as pessoas naquele país executassem atividades humanas habituais [Wittgenstein considera um caso ficcional mencionado no parágrafo anterior], e, ao fazê-lo, se utilizassem, ao que tudo indica, de uma linguagem articulada. Se observamos suas atividades, é compreensível que nos pareçam “lógicas”. Se tentamos, porém, aprender sua língua, vemos que é impossível. Pois entre elas não existe nenhuma conexão regular do que é falado, dos sons, com as ações; contudo esses sons não são supérfluos; pois se amordaçamos, por exemplo, uma dessas pessoas, este fato terá as mesmas consequências que tem para nós: sem aqueles sons, suas ações se tornariam confusas — se podemos dizer assim. Diríamos que estas pessoas têm uma linguagem, ordens, comunicações, etc? Para aquilo que chamamos de “linguagem”, falta a regularidade.

Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 207.

Trocando em miúdos, onde não há regularidade, não apenas não pode haver verdade (conhecimento), quanto nem sequer podemos enxergar qualquer sentido. Vamos tentar compreender uma ideia parecida também no contexto científico. No livro O que é a vida?, Erwin Schrödinger fala da diferença entre o movimento de uma partícula muito pequena (não um átomo) e o movimento de conjunto dessas partículas (a neblina encapsulada num recipiente de vidro), sua ideia é contrastar a uniformidade e a previsibilidade do conjunto por oposição à quase aleatoriedade do movimento da partícula isolada (e ao tratamento estatístico que ela, portanto, está submetida).

Ilustração do movimento de uma partícula de neblina isolada, chamado movimento browniano.

O movimento do conjunto é regular e previsível, enquanto que o movimento da partícula isolada é quase caótico, Schrödinger afirma: “Esse exemplo mostra que estranha e desordenada experiência teríamos se nossos sentidos fossem sensíveis ao impacto de umas poucas moléculas”.

A partir de tudo isso poderíamos dizer: a regularidade (ordem) torna as coisas visíveis. Sem a regularidade, não poderíamos ver o que vemos. Mas existe alguma coisa para além do regular? A ciência crê que o mundo e a realidade são inteiramente regulares e supõe que a totalidade de suas leis os esgota, pois o irregular e o indeterminado são em boa medida apenas o espaço do que ainda é desconhecido, daquilo que um dia se converterá em aspectos conhecidos e previsíveis. Mas essa crença é apenas parte da ideologia da ciência, ou melhor, da metafísica publicitária que a sustenta simbolicamente. Na realidade, estamos longe de tornar real a promessa ilusão de mapear a totalidade dos fenômenos do universo — e para constatar isso basta olhar, por exemplo, para o papel reservado à matéria escura no quadro da física ou a importância fundamental que os sistemas complexos tem ganhado nos últimos anos e décadas.

De tudo isso o que importa na verdade é a possibilidade de ver o mundo para além das lentes científicas, é entender que a colossal e inegável capacidade instrumental da ciência só se constitui por meio de um empobrecimento do real. O real é rico o bastante para que o empobrecimento científico não seja sentido como empobrecimento, isto é, como o real é irredutivelmente indeterminado, ele pode e será sempre a fonte de toda determinação e sentido, aquilo que a inteligência usa como recurso para estabelecer suas regularidades, para fazer ver as regularidades que só ela vê. Nesse sentido, a inteligência não cria nada (ou não cria ex nihil), ela apenas nota regularidades não notadas pelas outras inteligências e assim pode inaugurar novos campos normativos (criar). O real e o regular não coincidem, como o determinado e o indeterminado não podem conviver. A exclusão que a ciência opera por meio da verdade, tudo que é falso, tudo aquilo que não é o caso — nada disso esgota o real. O real não é o espaço lógico, esse conjunto, essa extensão formada pela união dos campos do verdadeiro e do falso não esgota tudo que é possível, porque o possível não é simplesmente lógico.

É como se tivéssemos esquecido disso, como se as possibilidades abertas pela ciência tivessem nos levado a pensar que tudo já está determinado e pode ser perfeitamente conhecido e computado com nossas poderosas máquinas computadoras (o computador quântico está vindo aí). Mesmo que pudéssemos conhecer tudo que há para ser conhecido hoje, não apenas haveria muita coisa do lado de fora, como tudo de importante estaria excluído dessa totalidade formada pelo nosso conhecimento — a lição de Wittgenstein que eu não canso de repetir. Por isso é tão urgente que saibamos ver o mundo de outra forma, que saibamos usar o conhecimento como ferramenta — não como doutrina e dogma — para escapar ao desafio que a complexidade da sociedade humana alimenta e na qual está envolvida. O desafio de pensar que devemos lidar com o mundo não apenas com instrumentos, mas, sobretudo, com símbolos, símbolos que nos fazem lembrar da importância da simplicidade, uma lição que é especialmente difícil de aprender na Tecnosfera, indo em direção às Smart Cities.

Nós temos meios de enxergar o que a ciência não vê, o que ela exclui conforme sua autoridade suprema, a linguagem e o simbolismo como forças criadoras; temos meios de resgatar os ocidentais (e os que estão subordinados a eles) da húbris tecnológica e científica que nos faz rumar inadvertidamente em direção ao colapso: a arte pode nos ensinar — the forgotten lesson de Wittgenstein, como lembra seu biógrafo, Ray Monk — a ver de outra maneira o possível, a reabilitar a imaginação e, por fim, a regressar ao político como campo incontornável para aqueles que conhecem os limites da técnica. Eu sugiro que a gente comece vendo a série Station Eleven, se começarmos por aí já estamos num bom caminho. A série é uma excelente oportunidade para contemplar o que poderia ser um mundo de simplicidade, orientado fundamentalmente à arte — há coisas que só a ficção pode fazer por nós.


Sobre o empobrecimento em si, como conceito, eu diria que toda a objetivação empobrece quando nos faz esquecer que o mundo não é objetivo, quando, em nome da manutenção do poder e da pretensão de controle, olvidamos que o mundo não tem o fechamento necessário à ciência. Só quando aprendemos que a realidade transcende explicações podemos gestar um modo de agir que não esteja contaminado pelas doces e perigosas ilusões que a ciência alenta.

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