Invocações, encantamentos e entoações

I

Tudo que pode interferir na cadeia causal de fatos naturais tem que, em certo sentido, já estar nessa cadeia. A natureza não é mais que uma cadeia, uma série de eventos que se estendem do agora ao passado e ao futuro. Esses eventos estão indissociavelmente ligados, de tal sorte que qualquer mudança nos fatos que compõem a cadeia implica uma mudança em todo o sistema. É por isso que muitos não admitem a ideia de vontade, porque a vontade (livre) pode atuar sobre os fatos como se não estivesse constrangida por eles, daí a separação entre natureza e liberdade. A liberdade da vontade é a irredutível à determinação (de qualquer sorte). A ideia de uma subjetividade que não está completamente determinada pela regras que governam as cadeias causais e que por isso pode interferir no reino causal espontaneamente (ou quase) dá arrepios em muitos control freaks. O reino da liberdade tem suas próprias regras (moralidade). Kant sabiamente não via nenhum conflito entre as duas perspectivas:

Independente do conceito que se possa formar, com propósitos metafísicos, sobre a liberdade da vontade, as manifestações fenomênicas desta, as ações humanas, se encontram determinadas conforme leis universais da Natureza, como qualquer outro acontecimento natural.

Kant, Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita

É quase apavorante pensar que pode haver uma dimensão parcialmente excluída do que podemos conhecer e que, ainda assim, pode interferir nos fatos que conhecemos. (As leis da liberdade tem que ser instituídas). Se você deixar passar o boi da “vontade”, passa junto com ele toda a boiada da espiritualidade — tudo que pode interferir na causalidade sem estar na cadeia causal. E como não admiti-la?

Em “Eficácia simbólica”, Levi Strauss relata com detalhe o caso de um xamã que dá um sentido particular às dores de uma mulher que dá à luz, mitingando seu sofrimento, restituindo a experiência ao universo simbólico onde as coisas tem seu lugar.

A cura consistiria, portanto, em tornar pensável uma situação dada inicialmente em termos afetivos, e aceitáveis, pelo espírito, dores que o corpo se recusa a tolerar. O fato de a mitologia do xamã não corresponder a uma realidade objetiva não tem importância, pois que a paciente nela crê e é membro de uma sociedade que nela crê. Espíritos protetores e espíritos maléficos, monstros sobrenaturais e animais mágicos fazem parte de um sistema coerente que funda a concepção indígena do universo. A paciente os aceita ou, mais precisamente, jamais duvidou deles. O que ela não aceita são as dores incoerentes e arbitrárias que constituem um elemento estranho a seu sistema, mas que o xamã, recorrendo ao mito, irá inserir num sistema em que tudo se encaixa.

Claude Lévi-Strauss, “A eficácia simbólica”. Antropologia estrutural

A observação cuidadosa de Lévi-Strauss destaca um aspecto importante: se trata de um tipo particular de eficácia, uma eficácia simbólica. Não estou certo de que ele não empresta à expressão a mesma radicalidade que eu, isto é, que ele a veja como testemunho de algo que escapa à pretensão objetiva de nosso olhar científico. Mas pode ser que sim, repare em sua observação sobre a irredutibilidade da mitologia xamânica. Não pode haver nada do lado de fora do quadro de fatos que a ciência tenta determinar, não pode haver nada exterior à teia de relações definidas pelas leis naturais que governam a série causal. Talvez a mais geral expressão dessa pretensão totalizante seja um comentário de Wittgenstein sobre a lógica no Tractatus Logico-Philosophicus:

A lógica preenche o mundo; os limites do mundo são também seus limites.
Na lógica, portanto, não podemos dizer: há no mundo isso e isso, aquilo não.

Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus 5.61

A lógica preenche o mundo. E, no entanto, há algo do lado de fora, mesmo pro Tractatus. Há algo que mesmo uma linguagem inteiramente devotada a figurar fatos não pode representar*.

Apesar de não nos ensinarem a admitir a possibilidade de que exista algo fora da série causal capaz de intervir nos fatos que testemunhamos, a linguagem, entendida não como uma ferramenta técnica, mas como expressão aberta de nossa milenar relação com o mundo, conserva e multiplica as ocasiões em que constatamos o irredutível mistério do universo. Na tradição cabalística diz-se que uma certa leitura do Talmude poderia nos tornar capazes de criar vida, com uma pequena e decisiva diferença. Se pudéssemos interpretá-lo corretamente, confirme esses ensinamentos secretos, poderíamos criar vida, mas essa vida artificialmente criada, o golém, não teria algo que nós temos, a linguagem. Isso está em sintonia com as observações dos evangelhos, onde se lê:

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.
Ele estava no princípio com Deus.
Tudo foi feito por ele; e nada do que tem sido feito, foi feito sem ele.
Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens.

João 1:1-4

O verbo é algo que só Deus pode conceder, é um poder que nos escapa. Deus sopra em nossa boca o verbo e nos infunde o espírito. Participamos da força divina através da linguagem. Meu virulento ateísmo e minhas críticas à religiosidade me credenciam a falar de todas essas coisas sem reservas, como quem senta num bar e conversa com amigos. A linguagem é uma força cuja medida escapa aos estreitos limites da nossa pretensamente totalizante visão científica do mundo.

A linguagem comporta algo de irreal, mágico, sobrenatural, algo que muitas experiências espirituais se esforçaram por canalizar e integrar (não entender). Ainda que essa ideia pareça algo distante para nós, seres (humanos && urbanos) de um mundo desencantado, não é assim tão distante quanto parece. É apenas algo com o que não fomos ensinados a lidar — mas podemos aprender tudo. Como uma criança pode ser ensinada a acreditar em Deus. O cinema, como a arte em geral, é o que nos torna capazes de ver aquilo que não fomos ensinados a enxergar. Vejam esse fragmento de The ballad of Buster Scruggs:

Fragmento de “The Ballad Of Buster Scruggs”, dos irmãos Coen.

A expressão no rosto dos espectadores diante de um garoto sem braços nem pernas cuja força dramática se impõe de modo quase sobrenatural é desses detalhes cuidadosamente pensados pelos bons diretores. Mas ainda não é o suficiente. O que melhor manifesta essa ponte que eu quero estabelecer entre a linguagem como ferramenta prática e sua dimensão divina são suas invocações, seus usos aparentados a tudo que poderíamos designar como encantamento e feitiço. E mais uma vez o cinema nos ajuda a entender o que está tão profundamente segregado da experiência urbana da nossa vida cotidiana:

Infelizmente o vídeo não pode ser visto fora do Youtube, clique aqui acima para assisti-lo.

Certamente essa invocação a Netuno não nos soaria tão assustadora quanto soou ao personagem de Robert Pattinson, mas podemos entender o sentido do seu terror. Basta lembrar de suas circunstâncias: dois homens provavelmente no final do século XIX presos numa ilha atormentada por uma tempestade infindável, sem perspectiva de serem resgatados, quase sem recursos, bebendo toda sorte de derivados de petróleo (querosene, gasolina?) para se entorpecer — como os meninos de rua que cheiram cola de sapateiro para aliviar a dor e a fome. Duas pessoas acostumadas a olhar o mar não como objeto a ser analítica e descritivamente entendido, mas como uma força sem par que eles se sentem inclinados a respeitar quase com adoração. A invocação que nos apresenta Willem Defoe é mágica, ela manifesta a força esquecida da linguagem, a força sublinhada por Lévi-Strauss na atuação xamânica. A inteligência humana é a expressão de forças criadoras que a atravessam e das quais devemos participar como uma célula participa dos sistemas celulares — e o trabalho criativo dos atores é a maneira mais fácil de notar a interface entre o que é humano e aquilo que tentamos evocar ao usar a palavra divino.

Não posso terminar um post sobre a força esquecida da linguagem sem lembrar dos poetas. Sem lembrar que a devoção dos poetas à linguagem é a última trincheira na luta contra o estreitamento imposto pelo predomínio da visão instrumental da sociedade tecnológica. Vejam o que fala Paulo Leminski sobre a linguagem nesse fabuloso documentário, Ervilha da Fantasia:

Documentário para TV dirigido por Werner Schumann

Sem lembrar, además, do compromisso quase solipsista de Hilda Hilst à linguagem. Nada disso se afasta do entendimento da linguagem como entoação, como enunciação aos ouvidos, cujo poder conserva algo de inefável e insondável — mesmo quando o suporte é escrito. Nietzsche se queixava de que os alemães não escreviam com ritmo e que deixavam os ouvidos na gaveta ao escrever. Há uma continuidade inanalisável entre a fala, a música, feitiços e encantamentos. Todo uso da linguagem deve chegar aos nossos ouvidos como o canto das sereias chegou aos ouvidos de Ulisses, como a manifestação de algo irredutível às pretensões comezinhas do nosso medo e da nossa vontade de controle. Algo que não devemos controlar, mas do qual devemos voltar a participar quase com urgência.


* Tecnicamente, não há nada de fora, porque aquilo que deve existir (a ontologia) no Tractatus é determinada. A substância do mundo é um infinito atual, algo já dado que garante a determinação do sentido e toda a determinação do espaço lógico, mas quando digo que há algo do lado de fora, não estou usando o verbo haver tecnicamente.


Escrevi um ensaio sobre Liberdade e determinismo, pra quem se interessar pelo tema.

Adicionar comentário

outras redes

Perfis em outras redes

Preferidos

A categoria Preferidos é especial, porque reúne os textos que eu mais gosto. É uma boa amostra! As outras categorias são mais especializadas e diversas.

Categorias

Arquivos