O canto das sereias

Conhecimento, verdade e sentido

Há pessoas que se perguntam se algum dia a ciência responderá a todas as suas questões, a todos os seus problemas, e decifrará inteiramente o que não sabemos (o desconhecido), e há pessoas como Ludwig Wittgenstein, que pensava: — se tudo que a ciência se pergunta puder um dia ser respondido ainda assim sentiríamos que o mais importante ficou de fora. Esse é o sentido da distinção entre fato e valor, isto é, da consideração de que a ciência só lida com fatos, com coisas que não tem valor nem importância em si mesmas.

Sentimos que, mesmo que todas as questões científicas possíveis tenham obtido resposta, nossos problemas de vida não terão sido sequer tocados. É certo que não restará, nesse caso, mais nenhuma questão; e a resposta é precisamente essa.

Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus, 6.52

Essa consideração dá uma nova perspectiva a tudo que não é ciência, simplesmente porque nem tudo que importa é relativo ao conhecimento. Em realidade, nada do que importa se reduz ao conhecimento, embora o conhecimento possa ser útil na busca daquilo que importa. Aliás, o problema do mundo é que a ciência não podem nos dizer o que fazer, mas nós apostamos todas as nossas fichas nessa ilusão ((Tecnosfera e Tecnocracia)).

Poucas verdades resistem ao tempo, porque embora os cientistas se iludam crendo que o mundo é como um livro cujas leis fundamentais e inexoráveis a ciência desvela, a ciência é sempre histórica e se parece mais ao Livro de areia, de Borges. O sentido, no entanto, perdura. Vejam, por exemplo, a imagem de Ulysses atado ao mastro (imagem que me fascina, mesmo que eu nunca tenha lido a Odisseia). O que pode nos ensinar essa imagem? Certamente nada, num sentido objetivo, e, no entanto, ela atravessa os séculos como se estivesse entalhada em nossa memória coletiva, como um meme, no sentido técnico do termo. Ela evoca o sentido do desejo de deixar-se enfeitiçar, de uma escolha que elege a fruição do feitiço, ainda que tome precauções para evitar agir como um enfeitiçado. O canto das sereias não é uma experiência da qual devemos prescindir e essa ideia parece misteriosamente conectada ao simbolismo da nossa própria vida.

Ulysses atado ao mastro
Ulysses atado ao mastro enquanto escuta o canto das sereias

O aprendizado, num sentido amplo e não tem técnico, não é uma vivência objetiva e com frequência reverbera no tempo, enquanto amealha elementos que se acumulam para, quem sabe um dia, contar-nos algo importante e indispensável.

Quando nos damos conta de que o mundo é muito, muito mais do que o conhecimento, todas as experiências e especialmente a experiência da arte ganham novas cores, porque nunca se sabe onde pode estar a lição que define o sentido da nossa vida e de nossas ações.

Um animal de outro tipo

Uma nova espécie, o chimpanzé elefante.

Meu corpo me responde, como uma máquina. Eu não tenho muita energia, mas tenho um corpo saudável e responsive. Se eu voltasse a malhar em pouco tempo estaria em forma. Tanto quanto pode estar alguém que pesa ao redor de 100 Kg, bebe e fuma (ainda que moderadamente) por mais de 20 anos. Mas é aquela coisa: tem gente que não bebe e está morrendo. E porque meu corpo me responde e tenho saúde eu sinto vergonha de me queixar dos meus problemas e dificuldades mentais, das dificuldades que enfrenta meu espírito. São tantas as pessoas que, além de ter as dificuldades do espírito, tem também dificuldades com o corpo. Sem falar do reflexo de um no outro (eu não creio em determinação unívoca de nenhum tipo), do corpo na alma, da alma no corpo. A gente nunca valoriza apropriadamente (com justiça) o que tem com constância. E eu sinto isso, que não valorizo tanto meu corpo e minha saúde porque os tenho constantemente, como variáveis com as que não preciso me preocupar. Não se valoriza o que não se nota, o que funciona bem não notamos a menos que a gente dirija a nossa atenção a isso deliberadamente. A saúde quando falta nós logo sentimos, sentimos sua ausência. Isso é ainda mais fácil de notar numa pandemia.

Clique em CC, dentro do vídeo, para ativar as legendas. Wim Wenders representa (ou apresenta?) anjos que desejam ter um corpo e serem finitos, mortais. Eu não tenho a relação com o meu corpo que teria um anjo, pois os anjos invejam nosso corpo como quem quer o que não pode ter. Um anjo quer sentir o cheiro do café, o gosto do cigarro. Um anjo sabe dar valor a um bom cigarro. Asas do Desejo (Der Himmel über Berlin, 1987)

Assim, eu escrevo pra me lembrar do meu corpo. Pra reconhecer minha própria força e vitalidade apesar do esmagamento a que meu espírito está constantemente submetido. Durante um bom tempo eu frequentei (sempre preguiçosamente) a academia, conheço o fascínio do corpo e da força física. Não sou dessas pessoas com histórico de atleta, mas conheço o que há de aditivo e viciante em correr. O corpo é um poder, todos sabem. Infelizmente, minhas convicções biriteiras limitavam a expansão do meu interesse esportivo até que finalmente a conveniência do dia a dia, aliada à preguiça, escantearam meu interesse pelas atividades físicas numa gaveta, em algum lugar desconhecido. Às vezes flerto com a ideia de voltar à natação, mas a verdade é que como animal, ainda que forte e saudável, eu sou uma mosca (ou uma formiga) perto de qualquer chimpanzé.

A alopecia de um chimpanzé revela seus músculos e sua força.

Na sociedade, a prevalência da mente foi setorizando o lugar do corpo, limitando-o ao esporte. O corpo não tem nenhum lugar central nessa sociedade — senão como suporte, como ghost ou shell, a depender de como se olhe, que em breve vamos substituir por algo mais apropriado à nossa aspiração à imortalidade —, porque nela tudo gira em torno do nosso espírito, ou como gostam de chamar os que rejeitam o animismo, da inteligência. Claro que as expressões não são sinônimas, elas têm apenas uma relação de família, mas essa familiaridade serve ao meu propósito. Naturalmente, a prevalência da mente tem impacto sobre o corpo. É o que eu gosto na Tradeoff Hypothesis, uma hipótese que eu já mencionei aqui uma vez. É como se nós tivéssemos trocado a extraordinária memória de curto prazo dos chimpanzés pela expansão da habilidade para usar nossa memória de longo prazo. Isso é o que nos permite criar, compor a partir das memórias. Criar ficções, sentido, fantasias, teorias, hipóteses… beleza!

Não nós somos apenas animais que figuram fatos, em certo sentido os chimpanzés figuram fatos melhor que nós. Nosso forte é criar, é usar o oceânico manancial de nossas memórias para criar sentido do nada. O reservatório da memória nunca é nada — é muita coisa, pra ser preciso —, mas as possibilidades da criação não são as mesmas da representação. Embora o mundo da ciência, o nosso mundo, e os próprios cientistas ainda vivam no sonho do conhecimento como espelho da natureza, as possibilidades da criação são muito mais amplas e audaciosas, porque são a possibilidade da beleza. Somos animais artísticos, a beleza não é um fato, mas fascina como a luz do sol deve ter fascinado Ícaro. Fascina não com universalidade que gostaríamos de emprestar ao nosso conhecimento, mas com uma força desconhecida que parece afetar a quase tudo que é capaz de sentir.

Não é o quantitativo o que nos dá o que temos de mais sublime, e creio que essa ênfase sobre o papel da arte marca certa perspectiva importante do pensamento de Wittgenstein, é uma das suas lições esquecidas — como sublinha seu biógrafo, Ray Monk.

Nos nossos dias as pessoas pensam que os cientistas existem para instruí-las, poetas, músicos, etc., para entretê-las. A ideia de que estes tenham alguma coisa que lhes ensinar, isso não lhes passa pela cabeça.

Wittgenstein, cultura e valor

E é nesse sentido que vai também as ideias de Richard Rorty (creio muito pretensiosamente) sobre a cultura literária, em seu precioso artigo: O declínio da verdade redentora e a ascensão da cultura literária, um artigo que eu vou passar a vida tentando terminar de traduzir:

A questão “você acredita que a verdade existe?” é uma abreviação para algo como “você acredita que há um fim natural da investigação científica (inquiry), um modo como as coisas realmente são, e que entender o modo como as coisas são vai nos dizer o que fazer de nós mesmos?”.

Aqueles que, como eu, são acusados de frivolidade posmodernista não pensam que há um tal fim. Nós acreditamos que a investigação é apenas outro nome para a resolução de problemas e não podemos imaginar chegando a um fim a investigação sobre como seres humanos devem viver, sobre o que nós devemos fazer com nós mesmo. Pois soluções para velhos problemas produzirão novos problemas e assim eternamente. Assim como para o indivíduo, também para a espécie e a sociedade: cada estágio de maturação superará antigos dilemas para em seguida criar novos.

richard Rorty, The Decline Of Redemptive Truth And The Rise Of A Literary Culture

É isso que nós somos, animais artísticos, capazes de cantar e contar histórias, inventar mundos, por isso a arte também deve nos ensinar. Precisamos dela mais do que nunca para imaginar coisas muito diferentes. Bem, esse só pode ser o começo de uma longa conversa, porque disso tudo sai muita coisa, mas essa conversa fica pra outro dia.


Depois de escrever o texto, por coincidência topei com essa entrevista do Yamandu Costa. Nunca tinha ouvido o Yamandu falando sério! Nas entrevistas que eu vi ele sempre estava brincando, mesmo que falasse sério, com a música e os amigos. Essa entrevista aqui tá bem diferente, uma lindeza! Ele falando da morte, de arte, de amizade, tá de quebrar o vidro dos olhos.

Cultura Pop, Humor e Inteligência

Há duas coisas que eu gosto em Zizek: o humor sempre presente nos seus textos e falas, e a sua atitude em relação à cultura pop. Meus textos não tem nem um grão de humor, são completamente planos nesse quesito. Boa parte dos comentaristas políticos de quem eu gosto incorpora o humor no que escreve e isso torna a atmosfera dos seus textos menos rarefeita — eu tenho em mente: Celso Rocha de Barros, José Roberto de Toledo, Conrado Hübner Mendes e em certa medida até Marcos Nobre. Aceitar a cultura pop — essa categoria tão abrangente e vaga — é outro elemento que ajuda trazer oxigênio à atmosfera dos pensamentos.

A chave pra entender a oxigenação da atmosfera promovida pela cultura pop está na flexibilização dos padrões de inteligência e em suas consequências discursivas. Usemos uma meia verdade para ilustrar como se dá essa flexibilização. Suponhamos que em relação ao entendimento e à capacidade de julgar há duas posições particularmente importantes e antagônicas. Duas posições distintas a respeito da importância do exemplo e da abstração. Kant acreditava que o exemplo era uma muleta e os que fossem capazes disso deveriam prescindir do seu uso:

Pois, no tocante ao rigor e precisão dos conhecimentos do entendimento, os exemplos são, geralmente, mais prejudiciais que vantajosos, porque é raro cumprirem adequadamente a condição da regra (como casus in terminis) e enfraquecem, além disso, muitas vezes, o esforço do entendimento para apreender (…) Assim, os exemplos são as muletas da faculdade de julgar de que nunca poderá prescindir quem careça desse dom natural.

Immanuel Kant, Crítica da Razão pura, B173-4

Embora essa posição pareça esnobe e arrogante, ela está conforme às exigências próprias ao pensamento de Kant e à sua inclinação ao que é puro, ao que está livre das opacidade e da incerteza da experiência e dos fatos. No Tractatus Logico-Philosophicus, Ludwig Wittgenstein apresentou um pensamento que para muitos tem o sabor de um pensamento kantiano:

O pensamento é cercado por uma bruma. — Sua essência, a lógica, apresenta uma ordem: a saber, a ordem a priori do mundo; isto é, a ordem das possibilidades, que o mundo e o pensamento tem em comum. Mas essa ordem, parece, deve ser extremamente simples. Ela antecede toda experiência e deve atravessar toda a experiência; nenhuma opacidade e incerteza empírica deve aderir a essa ordem. — Ela deve ser o mais puro cristal. Mas esse cristal não parece uma abstração, mas algo concreto, na verdade como o mais concreto, como se fosse há coisa mais dura que há (Tractatus Logico-Philosophicus 5.5563).

Wittgenstein, Investigações filosóficas, 97

Esse é o contexto em que a pureza tem lugar e onde convém afastar-se da opacidade das coisas empíricas, abstrair-se de suas impurezas e distorções. Acontece que direta ou indiretamente esse contexto marca uma posição sobre um modelo de inteligência. Nessa posição está privilegiado o modelo de inteligência ligado à abstração, ao esvaziamento ou ao descarnamento (descarnação? não sei como dizer) da experiência em busca de regras de determinação do sentido cada vez mais gerais. Pra essa perspectiva, o exemplo só pode ser uma muleta, porque diz mais do que o necessário. Diz o contingente, diz o irrelevante. E ao dizer tanto introduz a vagueza, a pluralidade de sentidos, tudo aquilo que deve ser evitado para que a linguagem possa dizer o sentido claramente, de modo determinado.

(Minha leitura do parágrafo de Kant citado acima é enviesada, o próprio recorte é enviesado — leiam todo o contexto. Por isso o que eu disse é uma meia verdade, Kant não difere de Wittgenstein sobre o papel dos exemplos [dos casos], a diferença entre eles reside no fato de que a lei e a regra para a pragmática de Wittgenstein são determinadas pela constância da prática, enquanto que o problema da determinação [do seguir a regra] não estava nem mesmo posto no marco determinista do pensamento de Kant. Para Kant, a estruturação começa pelo mais geral [o vetor de determinação é a generalidade] e não há interesse lógico em uma genealogia como a de Wittgenstein ou a de Foucault.)

Quando o pensamento de Wittgenstein começa a mudar, muda também a sua relação com o caso, com o exemplo. A ênfase sobre o papel da ação — que o leva a valorizar tanto a etnologia — tira o exemplo da lata de lixo e em certo sentido o coloca no próprio centro da atividade de esclarecimento conceitual que é a filosofia. Isso abre espaço a um modo completamente diferente de pensar a inteligência. Um modo mais plural, mais generoso no seu olhar. Nosso olhar continua sendo arrogante, porque não conseguimos conceber inteligências dignas do nosso apreço se não possuirem, por exemplo, conceitos aritméticos. Mas o espaço está aberto para que o cinema — como desde sempre a literatura — possa nos instruir sobre o mundo fora das nossas bolhas. Assim, podemos forjar nós mesmos as medidas e os padrões de inteligência que usaremos de agora em diante — ao invés de nos fiar nesse elogio à abstração. Sobre esse mesmo tema um exemplo do cinema pode nos ajudar.

Uma boa imitação da inteligência humana? (Não há legendas porque o vídeo não é meu, peguei no Youtube, essa é uma cena clássica de Blade Runner.)

A flexibilização dos padrões de inteligência estimulada pela pragmática se dá quase ao mesmo tempo que a busca de Alan Turing por um modo de distinguir a inteligência humana da inteligência artificial. O que vale pra seres humanos e androides, vale também na relação dos humanos entre si e entre os humanos e os animais. Digo, podemos também nos perguntar pela expressão de diferentes formas de inteligência. Vamos deixar de lado a inteligência dos animais e a dos androides e ficar somente com os diferentes paradigmas de inteligência entre humanos. Depois de ter dado essa volta, fica fácil (ou menos difícil) ver porque a cultura pop pode trazer oxigênio à atmosfera do pensamento. Porque o exemplo, a concretude de casos particulares próximos ao maior número de pessoas, reduz o peso da abstração como critério de inteligência e permite que outras formas de inteligência se expressem ou possam ser vistas por nossos olhares, agora menos engessados. O pensamento precisa tanto da abstração como da imaginação e nem sempre a capacidade de abstrair e de imaginar coincidem. Podendo circular entre diversas expressões de inteligência, o pensamento — já como coisa sem dono — está livre para se manifestar nos mais variados cantos da cultura. (Virar um meme?)

Essa valorização da multiplicidade da inteligência produz um efeito cascata cujo alcance não podemos esgotar. Da perspectiva do indivíduo ela abre espaço à criação, à ruptura de paradigmas, na medida em que abranda a força normativa sedimentada em modos estáveis de avaliar a inteligência. Da perspectiva social, ela recoloca os atos inteligentes em contextos, isto é, em contextos históricos, explicita valores, e pouco a pouco a flexibilização pode construir a atmosfera para pensamentos novos, dirigidos por novos eixos. Como enxergar o mundo sob novas lentes, apoiado em novos eixos? Como dar espaço a novas perspectivas sem reavaliar também a própria medida de inteligência, sem flexibilizar seus próprios padrões? Como resistir à tendência à estabilidade encontrando uma boa justificação para não mudar?

Nossa obsessão por medidas é tão grande que, quando pensamos na Teoria da Relatividade como expressão inconteste da inteligência, e queremos identificar inteligências igualmente grandiosas fora desse marco teórico, tendemos a recorrer a medidas institucionalmente estabelecidas — e dizemos, por exemplo, que Shakespeare é um gênio fora das ciências. No entanto, o problema persiste porque a generalização dos padrões de inteligência tende a nos tornar meros aplicadores de normas, pessoas inclinadas a usar os critérios consensualmente reconhecidos, ao invés de criar nossas próprias medidas. A tendência a confiar nos quadros de organização de valor (quadros normativos) tem o mesmo pendor a engessar nossa capacidade de enxergar a inteligência que o apego à abstração. Isso sem falar no que pode haver de meramente performático na expressão da inteligência, como, por exemplo, a erudição. Não há melhor máscara para a estupidez.

Entre o caso e a regra estivemos sempre a buscar as regras e a leis mais gerais. Precisamos de outro olhar, um olhar que saiba também privilegiar o concreto, que saiba ver no concreto o manancial de novas generalidades, de novos abstratos.

O humor é uma das expressões mais interessantes da inteligência e, no contexto dessa discussão, a questão que se coloca pra mim uma e outra vez é: qual é a expressão máxima da inteligência no humor? Como identificá-la em sua particularidade, em sua singularidade? É uma obra? O humor é um trabalho não poucas vezes fragmentário, embora constante. Mas só podemos constatar sua grandiosidade contemplando uma obra inteira, uma seleção dos seus melhores momentos? Nenhum particular a revela? É a partir dos casos que alguém aprende a enxergar a regra, são os exemplos e as amostras (a constância delas) que determinam as dimensões gerais que depois vemos claramente nas leis e padrões que descrevem uma regularidade. Quando nos damos conta disso, descobrimos que há milhões de domínios recônditos onde a inteligência se manifesta sem testemunhas (e não apenas dentro da cultura popular). Embora minha tendência à didática do radicalismo me dirija à inteligência dos animais, das aranhas, por exemplo, o humor, essa marca tão própria ao humano, é um bom ponto de partida para o exercício do olhar.

Laerte e sua obra monumental
Linha do trem, recentemente redescoberto.
Molg H., um gênio incompreendido.

Nunca é demais lembrar que não se trata de abolir distinções de valor, como elas fossem inúteis ou inadequadas tal como são. Não podemos viver sem valor, mas podemos nos tornar melhores juízes, juízes mais criteriosos, autônomos, generosos, há muito o que melhorar e sem tornar flexíveis nossos padrões é quase impossível ver o que está fora das nossas lentes.

Quanto de verdade cada um pode aguentar?

Sem o pano de fundo de uma psicologia a verdade pode ser a simples peça de um quebra-cabeças, uma parte que ajuda a saturar um espaço lógico (do conhecimento). O fragmento de uma totalidade. Ainda que esse espaço lógico seja infinito, ele pode ser inteiramente determinado porque em certo sentido é um infinito atual e toda sua extensão está determinada conforme as leis naturais que o constituem. Bem, essa é somente uma perspectiva.

Mas quando trazemos a psicologia de volta — e pensamos a verdade — algo novo se acrescenta, algo que não podia estar presente aí onde a arbitrariedade não era permitida, a ideia de intensidade. A verdade então se transforma em um elemento a ser digerido pelas personalidades às quais ela se expõe e um dilema ético se apresenta. Hilda Hilst expressa de modo cristalino como essas dificuldades se colocam para o escritor.

LÉO GILSON RIBEIRO O que é uma grande abertura de intensidade?
HILDA HILST É difícil de definir, talvez fosse mais fácil sentir isso. É mostrar ao outro que ele pode desvendar o seu “eu” desconhecido; é proporcionar ao outro o “autoconhecimento”, uma compreensão definitiva de si mesmo, com suas potencialidades, falhas e virtudes.
 
LGB E isso não seria ampliar o outro, libertá-lo?
HH É justamente o que eu queria discutir com você: eticamente algum escritor, alguma pessoa, pode assumir a tremenda responsabilidade de romper os limites que o outro aceitou, ou porque lhe foram impostos de fora ou porque ele se arrumou diante dessa conciliação com a opressão externa e o condicionamento interno de que foi vítima? Revelar ao outro que ele pode ser muito mais e pode ser ele mesmo com uma liberdade total de qualquer tipo de repressão política, econômica, sexual, religiosa, psicológica etc., eu me pergunto, não pode levar uma pessoa à morte, à loucura sem retorno?
 
LGB Mas por que você pressupõe que as pessoas não queiram se libertar?
HH Talvez algumas queiram, mas poderão aguentar a sua nova condição? Que direito tenho eu de interferir na sua vida burguesa, arrumadinha, na qual, bem ou mal, ela sobrevive? E uma questão eminentemente ética!
 
LGB Você acha que seria uma onipotência ou uma presunção do autor ambicionar isso?
HH Sim, porque talvez depois de se conhecer a si mesma esse destinatário da minha mensagem de autolibertação não suporte a ruptura com o seu mundo anterior de tabus, de repressões, mas um mundo no qual ele pôde sobreviver. E se a descoberta plena de si mesmo for uma descoberta tão maior do que a sua capacidade? Se o levar a um nível de intensidade de autodescoberta que se revele intolerável para ele?

cristiano diniz (org.), Fico besta quando me entendem: entrevistas com hilda hilst

Na terceira temporada de The Sinner, uma situação apresenta o mesmo dilema. Um professor atordoado por seus próprios fantasmas e cansado de assistir impassível à infelicidade da sua aluna decide aconselhá-la. Ele decide lhe falar sobre o quanto a sociedade nos impele ao gregarismo e como é difícil escapar desse impulso, quer estimulá-la a emancipar-se do jugo dos pais tiranos (do pai, pra ser mais exato), sob pena de prolongar sua infelicidade indefinidamente. Mas como fazer isso sem ferir, sem exceder involuntariamente a quota que cada um pode suportar de verdade? Hilda Hilst tem boas razões pra pensar assim.

A Ética da Autenticidade

Os franceses são muito formais, todo mundo sabe disso. Quando criança minha esposa foi viver em Paris e, embora tenha absorvido muita coisa dos franceses, não morre de amores pelos parisienses. Ela me conta como ainda se sente constrangida, sempre que precisa falar com franceses, a repetir o mantra que lhe foi inculcado: “Bonjour! Excusez-moi de vous déranger. S’il vous plaît, pourriez-vous…” (Bom dia! Desculpa incomodá-lo. Por favor, seria possível…). Apesar da fórmula, da sentença quase mecânica, é preciso compreendê-los. Na França, a cidadania é uma ideia muito forte (Paulo Arantes conta isso e muitas outras coisas nesse vídeo) e em certo sentido eles são aristotélicos em seu intuito de tentar moldar a mentalidade dos seus citoyens. Isto é, eles creem que a ação (a Praxis) tem uma força determinante na constituição da virtude e que o respeito aos outros se constrói adestrando os jovens desde cedo a agir como se reconhecessem que as pessoas estão imersas em suas próprias vidas — tem seus próprios problemas e dores — e não estão à nossa disposição para nos servir. É um panorama muito diferente do que predomina no Brasil. Quem pode criticá-los por agir assim e por prescrever que assim sejam educadas as crianças?

Eu também sou aristotélico em muitos sentidos, especialmente porque me parece verdadeira e decisiva a importância da prática e da ação na constituição dos hábitos — e dos hábitos para constituição da virtude. Mas o que há de artificial e não espontâneo na formalidade faz lembrar um problema posto pelo pensamento de Kant. É verdade que nós devemos esperar que os outros nos tratem bem e corretamente, mas é fundamental que esse tratamento não seja apenas o resultado do temor de ser repreendido em caso contrário. Se o que nos impede de tratar os outros com brutalidade, indiferença e indignidade é somente a presença da lei, da justiça, de qualquer expressão simbólica ou imaginária da autoridade, então este tratamento não é verdadeiramente autêntico. Dizem que está em algum lugar de Irmãos Karamazov aquela frase: “Se Deus não existe, tudo é permitido”. Ariano Suassuna cita a frase numa coluna na Folha, em 1999¹. Se a autoridade representada por Deus é o fiador da civilidade, então não me parece que tenhamos conquistado muito.

Nesse sentido, a filosofia de Kant introduz uma distinção indispensável: agir de acordo com a lei e agir conforme a lei. A distinção é feita para separar o cálculo interessado da ação espontânea². A espontaneidade é a expressão de um tipo diferente de inculcação, não se trata de um mero adestramento (a palavra drill é muito boa!). Trata-se de entender e praticar espontaneamente o sentido profundo de uma norma e não meramente repeti-la por costume. Pode ser que nunca notemos, numa pessoa hospitaleira, o quanto seus atos são calculados para causar uma impressão que o favorece, direta ou indiretamente. Mas se desconfiamos que a ação de alguém é interessada não lhe damos o mesmo significado que quando acreditamos que a ação é espontânea.

O pensamento de Kant não estava interessado na questão da autenticidade; nem tampouco no debate lógico sobre a normatividade da regra (presente na discussão sobre “o seguir a regra” resgatada por Saul Kripke ao escrever sobre certos fragmentos das Investigações Filosóficas). E, ainda assim, todas essas ideias parecem convergir. A ação espontânea tem a naturalidade das coisas não mediadas, do orgânico. É claro que a cultura é inescapavelmente uma mediação, a tal ponto da linguagem constituir a própria realidade, mas isso não significa que toda ação dos seres humanos é teatral, mecânica ou previamente determinada por normas. As crianças são símbolos de uma autenticidade cujo encanto muitos sabem reconhecer, mas somente nas crianças. Nos adultos predomina o gosto pelo teatro e pelas regras sociais, as máscaras da civilização. Qualquer outra inclinação será vista como ingenuidade indesculpável. Só às crianças e aos anjos é permitido ser e ver o real.

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O filme A Favorita é uma antípoda à autenticidade infantil e escancara a burlesca sofisticação das regras e dos jogos sociais. O perigo para os que veem os jogos sociais desde a perspectiva do jogador hábil está em deixar-se consumir pelo cinismo, isto é, em não acreditar mais em ações espontâneas e autênticas, em ver por toda parte cálculos, interesses camuflados, ilusões projetadas para alimentar este ou aquele propósito. É assim também em Mad Med.

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O que sempre me atraiu nessa cena é que, após um instante de hesitação, Rachel Menken decide falar com franqueza sobre a razão porque nunca se casou. E a resposta de Don Draper é a sarcástica manifestação do cinismo de um jogador hábil, charmoso e impiedoso com toda forma de ingenuidade. (Como reza a cartilha masculina.) Ela não se abala com a resposta, ao contrário, sua atitude manifesta uma altivez e uma superioridade quase divinas. No mundo real de sentimentos reais seu olhar atravessa Draper como uma flecha e o desarma. E ao final não lhe resta mais que um constrangimento mal disfarçado.

Esmagada na vida social pelo império das regras, a autenticidade se refugia na arte, o único setor da cultura humana que pode acolher e nutrir os que se sentem enclausurados pelas regras. E aí germina um foco de instabilidade. A ciência é lugar para os puzzle-solvers (pra usar uma noção realçada por Thomas Kuhn) e, embora as revoluções sejam também boas fontes de desafios, ela é altamente resistente à mudança. A tendência à estabilidade e a complexidade dos sistemas teóricos de cada disciplina científica (alimentada pela tendência analítica) tornam as mudanças de paradigma quase impossíveis. A arte, por outro lado, não tem nenhum compromisso com a estabilidade — ao contrário, a ansiedade é justo a da busca pela singularidade e pelo que ela tem de desestabilizadora (ou disruptiva, a palavra da moda [por que será?]).

São justo os fingidores (atores e atrizes) quem melhor podem falar sobre a autenticidade. Em entrevista a Amy Cuddy, Julianne Moore faz uma longa consideração sobre como a presença influencia o trabalho dos atores e a relação com as pessoas em geral:

— Às vezes é como se você estivesse se arrastando pela lama, sem chegar a lugar algum. Outras vezes você simplesmente decola. E isso faz com que você se sinta muito viva. Por isso nós fazemos. Por isso todo ator faz. Para que esses momentos não sejam artificiais, mas pareçam transcendentes.
Ela continuou:
— A sensação de impotência e o desgaste tornam a pessoa tensa demais para estar presente. Caso haja uma proteção contra o dano emocional ou a humilhação, a pessoa também não consegue estar presente, porque existe um comportamento defensivo.
Após uma pausa, ela disse:
— É o poder. Trata-se sempre de poder, não é?
Será? Será que no final presença é apenas mais uma palavra para “poder”? Isso explicaria muita coisa.
— O que você faz quando está presente e pronta para se envolver, mas o outro ator na cena não está? — perguntei.
— Algumas pessoas já decidiram o que irão e o que não irão fazer com você, e vão lá e fazem. Mas aí você não consegue se conectar com elas através do olhar e não consegue se conectar fisicamente. E a coisa toda na atuação é parte de uma enorme troca, entende? O mais empolgante é quando duas pessoas presentes estão conectadas e, mesmo sem saber o que vai acontecer, trazem algo juntas… É aí que é transcendente.
Mas, se o outro ator não está envolvido, o poder da presença às vezes é capaz de superar até mesmo esse obstáculo, ressaltou Julianne.
— Quando você está presente e disponível, as pessoas têm um desejo de lhe oferecer seu eu autêntico. Você só precisa pedir. Elas podem resistir a se abrir de início, mas acabarão oferecendo toda sua história de vida — disse Julianne. — E isso se deve ao desejo que as pessoas têm de serem notadas.
Então eu falei:
— Parece que quando você se torna presente, permite que os outros estejam presentes. A presença não torna você dominante no sentido alfa. Na verdade, permite que você ouça as outras pessoas. E que elas se sintam ouvidas e se tornem presentes. Você pode ajudar as pessoas a se sentirem mais poderosas, ainda que não consiga lhes dar poder formal. Ela fez uma pausa e seu rosto se iluminou.
— Isso! E quando isso acontece, quando sua presença consegue evocar a presença delas, você eleva tudo – concluiu.

Amy Cuddy, presença

Como todos conhecemos dezenas de pessoas cuja desinibição faz emergir aspectos indesejáveis, parece temário permitir ou recomendar a autenticidade. É que uma coisa é a desinibição esporádica e pontualmente induzida dos que por longos anos aprenderam a mascarar suas sombras, outra coisa é o processo de aprender a estar-à-vontade consigo mesmo que exige a autenticidade. Estar à vontade consigo mesmo, estar à vontade no mundo (como Passarinho), é não apenas uma mudança subjetiva, mas intersubjetiva, que pouco a pouco contamina todas as dimensões da vida. Seu alcance abrange e transforma também as relações sociais e todo o nosso entorno.

Não há como seguir discutindo esse tema sem exemplos, sem referências a pessoas reais cuja autenticidade se articula perfeitamente aos seus papéis sociais (o que poderia parecer um paradoxo, mas não é!). É por isso que este post não é mais que um prelúdio à apresentação da presença na arte (especialmente na música). Quero fazer uma série de posts sobre figuras e personalidades artísticas cuja presença ilustra o que eu quis apresentar aqui com a ideia de autenticidade.


Fragmento de Vidro (2019), de M. Night Shyamalan.

Shyamalan é um diretor controverso e às vezes suas escolhas resvalam no clichê. Mas há verdades importantes mascaradas em clichês e platitudes. A metáfora do super-poder como algo que resistimos ferrenhamente em aceitar é poderosa porque não vem embalada numa perspectiva individualista (embora talvez não escape da armadilha do empoderamento identitário), mas num contexto em que aceitar os próprios dons estimula os outros a fazer o mesmo.


¹ Li Irmãos Karamazov nas traduções do francês que chegaram ao Brasil bem antes das novas e celebradas traduções direto do russo da Editora 34. Tenho os livros da 34, mas eu não os reli e deles lembro apenas de aspectos marcantes, como O grande inquisidor e outras passagens.

² A distinção kantiana conduz a um certo elogio do desinteresse, como se ele fosse marca de intenções verdadeiramente boas. Nietzsche troçava dessa perspectiva kantiana. Também não acho que seja o caso, embora a distinção me pareça indispensável. Autenticidade não é desinteresse, é um interesse naturalizado, transparente, que se deixa ver pelas outras pessoas e que pode ser articulado aos jogos sociais.

Invocações, encantamentos e entoações

Atado ao mastro do navio, Ulisses ouve o canto das sereias. Pintura de Herbert James Draper

Tudo que pode interferir na cadeia causal de fatos naturais tem que, em certo sentido, já estar nessa cadeia. A natureza não é mais que uma cadeia, uma série de eventos que se estendem do agora ao passado e ao futuro. Esses eventos estão indissociavelmente ligados, de tal sorte que qualquer mudança nos fatos que compõem a cadeia implica uma mudança em todo o sistema. É por isso que muitos não admitem a ideia de vontade, porque a vontade (livre) pode atuar sobre os fatos como se não estivesse constrangida por eles, daí a separação entre natureza e liberdade. A liberdade da vontade é a irredutível à determinação (de qualquer sorte). A ideia de uma subjetividade que não está completamente determinada pela regras que governam as cadeias causais e que por isso pode interferir no reino causal espontaneamente (ou quase) dá arrepios em muitos control freaks. O reino da liberdade tem suas próprias regras (moralidade). Kant sabiamente não via nenhum conflito entre as duas perspectivas:

Independente do conceito que se possa formar, com propósitos metafísicos, sobre a liberdade da vontade, as manifestações fenomênicas desta, as ações humanas, se encontram determinadas conforme leis universais da Natureza, como qualquer outro acontecimento natural.

Kant, Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita

É quase apavorante pensar que pode haver uma dimensão parcialmente excluída do que podemos conhecer e que, ainda assim, pode interferir nos fatos que conhecemos. (As leis da liberdade tem que ser instituídas). Se você deixar passar o boi da “vontade”, passa junto com ele toda a boiada da espiritualidade — tudo que pode interferir na causalidade sem estar na cadeia causal. E como não admiti-la?

Em “Eficácia simbólica”, Levi Strauss relata com detalhe o caso de um xamã que dá um sentido particular às dores de uma mulher que dá à luz, mitingando seu sofrimento, restituindo a experiência ao universo simbólico onde as coisas tem seu lugar.

A cura consistiria, portanto, em tornar pensável uma situação dada inicialmente em termos afetivos, e aceitáveis, pelo espírito, dores que o corpo se recusa a tolerar. O fato de a mitologia do xamã não corresponder a uma realidade objetiva não tem importância, pois que a paciente nela crê e é membro de uma sociedade que nela crê. Espíritos protetores e espíritos maléficos, monstros sobrenaturais e animais mágicos fazem parte de um sistema coerente que funda a concepção indígena do universo. A paciente os aceita ou, mais precisamente, jamais duvidou deles. O que ela não aceita são as dores incoerentes e arbitrárias que constituem um elemento estranho a seu sistema, mas que o xamã, recorrendo ao mito, irá inserir num sistema em que tudo se encaixa.

Claude Lévi-Strauss, “A eficácia simbólica”. Antropologia estrutural

A observação cuidadosa de Lévi-Strauss destaca um aspecto importante: se trata de um tipo particular de eficácia, uma eficácia simbólica. Não estou certo de que ele não empresta à expressão a mesma radicalidade que eu, isto é, que ele a veja como testemunho de algo que escapa à pretensão objetiva de nosso olhar científico. Mas pode ser que sim, repare em sua observação sobre a irredutibilidade da mitologia xamânica. Não pode haver nada do lado de fora do quadro de fatos que a ciência tenta determinar, não pode haver nada exterior à teia de relações definidas pelas leis naturais que governam a série causal. Talvez a mais geral expressão dessa pretensão totalizante seja um comentário de Wittgenstein sobre a lógica no Tractatus Logico-Philosophicus:

A lógica preenche o mundo; os limites do mundo são também seus limites.
Na lógica, portanto, não podemos dizer: há no mundo isso e isso, aquilo não.

Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus 5.61

A lógica preenche o mundo. E, no entanto, há algo do lado de fora, mesmo pro Tractatus. Há algo que mesmo uma linguagem inteiramente devotada a figurar fatos não pode representar*.

Apesar de não nos ensinarem a admitir a possibilidade de que exista algo fora da série causal capaz de intervir nos fatos que testemunhamos, a linguagem, entendida não como uma ferramenta técnica, mas como expressão aberta de nossa milenar relação com o mundo, conserva e multiplica as ocasiões em que constatamos o irredutível mistério do universo. Na tradição cabalística diz-se que uma certa leitura do Talmude poderia nos tornar capazes de criar vida, com uma pequena e decisiva diferença. Se pudéssemos interpretá-lo corretamente, confirme esses ensinamentos secretos, poderíamos criar vida, mas essa vida artificialmente criada, o golém, não teria algo que nós temos, a linguagem. Isso está em sintonia com as observações dos evangelhos, onde se lê:

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.
Ele estava no princípio com Deus.
Tudo foi feito por ele; e nada do que tem sido feito, foi feito sem ele.
Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens.

João 1:1-4

O verbo é algo que só Deus pode conceder, é um poder que nos escapa. Deus sopra em nossa boca o verbo e nos infunde o espírito. Participamos da força divina através da linguagem. Meu virulento ateísmo e minhas críticas à religiosidade me credenciam a falar de todas essas coisas sem reservas, como quem senta num bar e conversa com amigos. A linguagem é uma força cuja medida escapa aos estreitos limites da nossa pretensamente totalizante visão científica do mundo.

A linguagem comporta algo de irreal, mágico, sobrenatural, algo que muitas experiências espirituais se esforçaram por canalizar e integrar (não entender). Ainda que essa ideia pareça algo distante para nós, seres (humanos && urbanos) de um mundo desencantado, não é assim tão distante quanto parece. É apenas algo com o que não fomos ensinados a lidar — mas podemos aprender tudo. Como uma criança pode ser ensinada a acreditar em Deus. O cinema, como a arte em geral, é o que nos torna capazes de ver aquilo que não fomos ensinados a enxergar. Vejam esse fragmento de The ballad of Buster Scruggs:

Fragmento de “The Ballad Of Buster Scruggs”, dos irmãos Coen.

A expressão no rosto dos espectadores diante de um garoto sem braços nem pernas cuja força dramática se impõe de modo quase sobrenatural é desses detalhes cuidadosamente pensados pelos bons diretores. Mas ainda não é o suficiente. O que melhor manifesta essa ponte que eu quero estabelecer entre a linguagem como ferramenta prática e sua dimensão divina são suas invocações, seus usos aparentados a tudo que poderíamos designar como encantamento e feitiço. E mais uma vez o cinema nos ajuda a entender o que está tão profundamente segregado da experiência urbana da nossa vida cotidiana:


Infelizmente o vídeo não pode ser visto fora do Youtube, clique no link acima para assisti-lo

Certamente essa invocação a Netuno não nos soaria tão assustadora quanto soou ao personagem de Robert Pattinson, mas podemos entender o sentido do seu terror. Basta lembrar de suas circunstâncias: dois homens provavelmente no final do século XIX presos numa ilha atormentada por uma tempestade infindável, sem perspectiva de serem resgatados, quase sem recursos, bebendo toda sorte de derivados de petróleo (querosene, gasolina?) para se entorpecer — como os meninos de rua que cheiram cola de sapateiro para aliviar a dor e a fome. Duas pessoas acostumadas a olhar o mar não como objeto a ser analítica e descritivamente entendido, mas como uma força sem par que eles se sentem inclinados a respeitar quase com adoração. A invocação que nos apresenta Willem Defoe é mágica, ela manifesta a força esquecida da linguagem, a força sublinhada por Lévi-Strauss na atuação xamânica. A inteligência humana é a expressão de forças criadoras que a atravessam e das quais devemos participar como uma célula participa dos sistemas celulares — e o trabalho criativo dos atores é a maneira mais fácil de notar a interface entre o que é humano e aquilo que tentamos evocar ao usar a palavra divino.

Não posso terminar um post sobre a força esquecida da linguagem sem lembrar dos poetas. Sem lembrar que a devoção dos poetas à linguagem é a última trincheira na luta contra o estreitamento imposto pelo predomínio da visão instrumental da sociedade tecnológica. Vejam o que fala Paulo Leminski sobre a linguagem nesse fabuloso documentário, Ervilha da Fantasia:

Documentário para TV dirigido por Werner Schumann

Sem lembrar, además, do compromisso quase solipsista de Hilda Hilst à linguagem. Nada disso se afasta do entendimento da linguagem como entoação, como enunciação aos ouvidos, cujo poder conserva algo de inefável e insondável — mesmo quando o suporte é escrito. Nietzsche se queixava de que os alemães não escreviam com ritmo e que deixavam os ouvidos na gaveta ao escrever. Há uma continuidade inanalisável entre a fala, a música, feitiços e encantamentos. Todo uso da linguagem deve chegar aos nossos ouvidos como o canto das sereias chegou aos ouvidos de Ulisses, como a manifestação de algo irredutível às pretensões comezinhas do nosso medo e da nossa vontade de controle. Algo que não devemos controlar, mas do qual devemos voltar a participar quase com urgência.


* Tecnicamente, não há nada de fora, porque aquilo que deve existir (a ontologia) no Tractatus é determinada. A substância do mundo é um infinito atual, algo já dado que garante a determinação do sentido e toda a determinação do espaço lógico, mas quando digo que há algo do lado de fora, não estou usando o verbo haver tecnicamente.


Escrevi um ensaio sobre Liberdade e determinismo, pra quem se interessar pelo tema.