A Ética da Autenticidade

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Os franceses são muito formais, todo mundo sabe disso. Quando criança minha esposa foi viver em Paris e, embora tenha absorvido muita coisa dos franceses, não morre de amores pelos parisienses. Ela me conta como ainda se sente constrangida, sempre que precisa falar com franceses, a repetir o mantra que lhe foi inculcado: “Bonjour! Excusez-moi de vous déranger. S’il vous plaît, pourriez-vous…” (Bom dia! Desculpa incomodá-lo. Por favor, seria possível…). Apesar da fórmula, da sentença quase mecânica, é preciso compreendê-los. Na França, a cidadania é uma ideia muito forte (Paulo Arantes conta isso e muitas outras coisas nesse vídeo) e em certo sentido eles são aristotélicos em seu intuito de tentar moldar a mentalidade dos seus citoyens. Isto é, eles creem que a ação (a Praxis) tem uma força determinante na constituição da virtude e que o respeito aos outros se constrói adestrando os jovens desde cedo a agir como se reconhecessem que as pessoas estão imersas em suas próprias vidas — tem seus próprios problemas e dores — e não estão à nossa disposição para nos servir. É um panorama muito diferente do que predomina no Brasil. Quem pode criticá-los por agir assim e por prescrever que assim sejam educadas as crianças?

Eu também sou aristotélico em muitos sentidos, especialmente porque me parece verdadeira e decisiva a importância da prática e da ação na constituição dos hábitos — e dos hábitos para constituição da virtude. Mas o que há de artificial e não espontâneo na formalidade faz lembrar um problema posto pelo pensamento de Kant. É verdade que nós devemos esperar que os outros nos tratem bem e corretamente, mas é fundamental que esse tratamento não seja apenas o resultado do temor de ser repreendido em caso contrário. Se o que nos impede de tratar os outros com brutalidade, indiferença e indignidade é somente a presença da lei, da justiça, de qualquer expressão simbólica ou imaginária da autoridade, então este tratamento não é verdadeiramente autêntico. Dizem que está em algum lugar de Irmãos Karamazov aquela frase: “Se Deus não existe, tudo é permitido”. Ariano Suassuna cita a frase numa coluna na Folha, em 1999¹. Se a autoridade representada por Deus é o fiador da civilidade, então não me parece que tenhamos conquistado muito.

Nesse sentido, a filosofia de Kant introduz uma distinção indispensável: agir de acordo com a lei e agir conforme a lei. A distinção é feita para separar o cálculo interessado da ação espontânea². A espontaneidade é a expressão de um tipo diferente de inculcação, não se trata de um mero adestramento (a palavra drill é muito boa!). Trata-se de entender e praticar espontaneamente o sentido profundo de uma norma e não meramente repeti-la por costume. Pode ser que nunca notemos, numa pessoa hospitaleira, o quanto seus atos são calculados para causar uma impressão que o favorece, direta ou indiretamente. Mas se desconfiamos que a ação de alguém é interessada não lhe damos o mesmo significado que quando acreditamos que a ação é espontânea.

O pensamento de Kant não estava interessado na questão da autenticidade; nem tampouco no debate lógico sobre a normatividade da regra (presente na discussão sobre “o seguir a regra” resgatada por Saul Kripke ao escrever sobre certos fragmentos das Investigações Filosóficas). E, ainda assim, todas essas ideias parecem convergir. A ação espontânea tem a naturalidade das coisas não mediadas, do orgânico. É claro que a cultura é inescapavelmente uma mediação, a tal ponto da linguagem constituir a própria realidade, mas isso não significa que toda ação dos seres humanos é teatral, mecânica ou previamente determinada por normas. As crianças são símbolos de uma autenticidade cujo encanto muitos sabem reconhecer, mas somente nas crianças. Nos adultos predomina o gosto pelo teatro e pelas regras sociais, as máscaras da civilização. Qualquer outra inclinação será vista como ingenuidade indesculpável. Só às crianças e aos anjos é permitido ser e ver o real.

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O filme A Favorita é uma antípoda à autenticidade infantil e escancara a burlesca sofisticação das regras e dos jogos sociais. O perigo para os que veem os jogos sociais desde a perspectiva do jogador hábil está em deixar-se consumir pelo cinismo, isto é, em não acreditar mais em ações espontâneas e autênticas, em ver por toda parte cálculos, interesses camuflados, ilusões projetadas para alimentar este ou aquele propósito. É assim também em Mad Med.

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O que sempre me atraiu nessa cena é que, após um instante de hesitação, Rachel Menken decide falar com franqueza sobre a razão porque nunca se casou. E a resposta de Don Draper é a sarcástica manifestação do cinismo de um jogador hábil, charmoso e impiedoso com toda forma de ingenuidade. (Como reza a cartilha masculina.) Ela não se abala com a resposta, ao contrário, sua atitude manifesta uma altivez e uma superioridade quase divinas. No mundo real de sentimentos reais seu olhar atravessa Draper como uma flecha e o desarma. E ao final não lhe resta mais que um constrangimento mal disfarçado.

Esmagada na vida social pelo império das regras, a autenticidade se refugia na arte, o único setor da cultura humana que pode acolher e nutrir os que se sentem enclausurados pelas regras. E aí germina um foco de instabilidade. A ciência é lugar para os puzzle-solvers (pra usar uma noção realçada por Thomas Kuhn) e, embora as revoluções sejam também boas fontes de desafios, ela é altamente resistente à mudança. A tendência à estabilidade e a complexidade dos sistemas teóricos de cada disciplina científica (alimentada pela tendência analítica) tornam as mudanças de paradigma quase impossíveis. A arte, por outro lado, não tem nenhum compromisso com a estabilidade — ao contrário, a ansiedade é justo a da busca pela singularidade e pelo que ela tem de desestabilizadora (ou disruptiva, a palavra da moda [por que será?]).

São justo os fingidores (atores e atrizes) quem melhor podem falar sobre a autenticidade. Em entrevista a Amy Cuddy, Julianne Moore faz uma longa consideração sobre como a presença influencia o trabalho dos atores e a relação com as pessoas em geral:

— Às vezes é como se você estivesse se arrastando pela lama, sem chegar a lugar algum. Outras vezes você simplesmente decola. E isso faz com que você se sinta muito viva. Por isso nós fazemos. Por isso todo ator faz. Para que esses momentos não sejam artificiais, mas pareçam transcendentes.
Ela continuou:
— A sensação de impotência e o desgaste tornam a pessoa tensa demais para estar presente. Caso haja uma proteção contra o dano emocional ou a humilhação, a pessoa também não consegue estar presente, porque existe um comportamento defensivo.
Após uma pausa, ela disse:
— É o poder. Trata-se sempre de poder, não é?
Será? Será que no final presença é apenas mais uma palavra para “poder”? Isso explicaria muita coisa.
— O que você faz quando está presente e pronta para se envolver, mas o outro ator na cena não está? — perguntei.
— Algumas pessoas já decidiram o que irão e o que não irão fazer com você, e vão lá e fazem. Mas aí você não consegue se conectar com elas através do olhar e não consegue se conectar fisicamente. E a coisa toda na atuação é parte de uma enorme troca, entende? O mais empolgante é quando duas pessoas presentes estão conectadas e, mesmo sem saber o que vai acontecer, trazem algo juntas… É aí que é transcendente.
Mas, se o outro ator não está envolvido, o poder da presença às vezes é capaz de superar até mesmo esse obstáculo, ressaltou Julianne.
— Quando você está presente e disponível, as pessoas têm um desejo de lhe oferecer seu eu autêntico. Você só precisa pedir. Elas podem resistir a se abrir de início, mas acabarão oferecendo toda sua história de vida — disse Julianne. — E isso se deve ao desejo que as pessoas têm de serem notadas.
Então eu falei:
— Parece que quando você se torna presente, permite que os outros estejam presentes. A presença não torna você dominante no sentido alfa. Na verdade, permite que você ouça as outras pessoas. E que elas se sintam ouvidas e se tornem presentes. Você pode ajudar as pessoas a se sentirem mais poderosas, ainda que não consiga lhes dar poder formal. Ela fez uma pausa e seu rosto se iluminou.
— Isso! E quando isso acontece, quando sua presença consegue evocar a presença delas, você eleva tudo – concluiu.

Amy Cuddy, presença

Como todos conhecemos dezenas de pessoas cuja desinibição faz emergir aspectos indesejáveis, parece temário permitir ou recomendar a autenticidade. É que uma coisa é a desinibição esporádica e pontualmente induzida dos que por longos anos aprenderam a mascarar suas sombras, outra coisa é o processo de aprender a estar-à-vontade consigo mesmo que exige a autenticidade. Estar à vontade consigo mesmo, estar à vontade no mundo (como Passarinho), é não apenas uma mudança subjetiva, mas intersubjetiva, que pouco a pouco contamina todas as dimensões da vida. Seu alcance abrange e transforma também as relações sociais e todo o nosso entorno.

Não há como seguir discutindo esse tema sem exemplos, sem referências a pessoas reais cuja autenticidade se articula perfeitamente aos seus papéis sociais (o que poderia parecer um paradoxo, mas não é!). É por isso que este post não é mais que um prelúdio à apresentação da presença na arte (especialmente na música). Quero fazer uma série de posts sobre figuras e personalidades artísticas cuja presença ilustra o que eu quis apresentar aqui com a ideia de autenticidade.


Fragmento de Vidro (2019), de M. Night Shyamalan.

Shyamalan é um diretor controverso e às vezes suas escolhas resvalam no clichê. Mas há verdades importantes mascaradas em clichês e platitudes. A metáfora do super-poder como algo que resistimos ferrenhamente em aceitar é poderosa porque não vem embalada numa perspectiva individualista (embora talvez não escape da armadilha do empoderamento identitário), mas num contexto em que aceitar os próprios dons estimula os outros a fazer o mesmo.


¹ Li Irmãos Karamazov nas traduções do francês que chegaram ao Brasil bem antes das novas e celebradas traduções direto do russo da Editora 34. Tenho os livros da 34, mas eu não os reli e deles lembro apenas de aspectos marcantes, como O grande inquisidor e outras passagens.

² A distinção kantiana conduz a um certo elogio do desinteresse, como se ele fosse marca de intenções verdadeiramente boas. Nietzsche troçava dessa perspectiva kantiana. Também não acho que seja o caso, embora a distinção me pareça indispensável. Autenticidade não é desinteresse, é um interesse naturalizado, transparente, que se deixa ver pelas outras pessoas e que pode ser articulado aos jogos sociais.

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