Pior do que o medo

Quando não sentimos que podemos forjar nossas próprias ferramentas simbólicas para lidar com o mundo sem nos sentir sozinhos (ou loucos), sem nos afastar dos outros, nós nos apegamos às tradições e ao conservadorismo, nos apegamos às regras e ao modo de lidar com o mundo que recebemos quando somos crianças, sem questioná-los. (Nos transformamos em defensores da estabilidade.) Não questionamos essas regras para nos manter confortáveis, para evitar conflitos, — não porque não conseguimos formular críticas! Nós temos poder e capacidade para questioná-las, mas não temos coragem, temos medo. E é pra ter medo! Mas pior do que o medo da loucura e da solidão é a perspectiva de passar toda a vida dentro de uma mesma pele, sem nunca ser capaz de (ousar) mudá-la.

Deixar-se moldar pelo pior

Uma das mais lamentáveis características da ética bolsonarista é a sua tendência a se moldar pelo pior. A preocupação com a criminalidade e com a violência, que todo brasileiro conhece, se transforma numa justificativa para tornar o medo o elemento central da vida e da política. Daí a presença constante de conceitos como “guerra”, “armas”, a frequente necessidade de expressar hostilidade e de saber inspirar medo. O fascismo brasileiro não é assim porque a sociedade é violenta, não é uma resposta corajosa a desafios externos. A sociedade é violenta e os desafios existem, não resta dúvida, mas os fascistas se comprazem de que eles existam, pois assim têm a justificativa para guerrear agindo em nome do bem. Não lhes interessa nenhum tipo de pacificação da sociedade — muito menos uma pacificação de viés coletivista (não capitalista), que contornasse a brutal desigualdade brasileira —, pois eles precisam do medo.

Quando o medo se torna um elemento central numa sociedade, a desconfiança é apenas uma consequência. A desconfiança esgarça os laços sociais, pois as ações se veem refreadas por suspeitas que minam a autenticidade e erodem o sentimento de estar à vontade que nos permite agir com liberdade, sem receios. Se sentimos que está justificada a desconfiança em relação aos seres humanos, a confiança se transforma numa moeda escassa, reservada a uns poucos indivíduos.

E é assim que a família se torna o único espaço de confiança, no pensamento conservador esse é o seu lugar. Só os familiares são dignos de confiança, são o reservatório da lealdade, uma lealdade sanguínea. Na família você pode confiar, pois lá supostamente você pode se desarmar, ser você mesmo, não há violência, não há coação… não há nada daquilo que nos inspira desconfiança quando encontramos em pessoas de fora da família, ou em desconhecidos. E o que caberia aos outros, aos de fora da família? Aos outros caberia a salutar desconfiança, que justifica uma sociedade competitiva e egocêntrica.

A família é importantíssima também para Daniel Plainview, em Sangue Negro, e uma fonte de ressentimento.

Quando pela constante atenção que lhes prestamos permitimos que as piores ações e os piores seres humanos determinem o modo como nos sentimos e pensamos, o ódio cresce dentro de nós. Um ódio como o de Daniel Plainview, que alimenta a semente da misantropia e acentua os mais detestáveis aspectos dos outros. E assim nós passamos a ver as coisas com outros olhos, o mundo ganha tons sombrios, todas as conversas tornam-se cálculos e devem ser parte de uma estratégia onde o que se diz tem de ser pensado para provocar um efeito; toda a interação humana se converte num jogo entre pessoas diferentes que, no entanto, buscam o mesmo: instrumentalizar o outro para seus propósitos, influenciá-lo a agir conforme seus interesses e ter sobre ele alguma forma de poder.

Se você não estiver jogando ou tentando provocar no outro um efeito conforme aos seus interesses, se a sua intenção na conversa é gratuita e genuinamente interessada, aberta, quem garantirá que o outro por sua parte não está jogando e tentando te manipular? Como acreditar que as pessoas não são enganosas e manipuladoras (deceitful)? Quem garantirá que elas não nos têm enredados numa trama em suas cabeças, e fazem e dizem tudo para conseguir o que querem? Como determinar se não somos um peão, uma peça num complexo maquinário? É certo que algumas pessoas são idiotas demais para conseguir sustentar uma trama complexa, mas como acreditar na honestidade das pessoas em geral? Essa é a verdade que o conservador abraça com o desespero de quem se aferra a algo que pode salvar sua vida.

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O elogio à desconfiança como espécie de sabedoria ou astúcia, parte fundamental da lógica capitalista.

Nada de bom pode vir desse ethos que considera sinal de prudência e sabedoria ter sempre presente o pior do ser humano. Essa disposição não é uma espécie de esperteza ou astúcia, mas para quem pensa assim ter outra perspectiva só pode significar ingenuidade risível que pronto se prova amargamente prejudicial. Por tudo isso, é imprescindível recusar as nobres ideologias (conservadoras) que com uma mão tentam envenenar perspectivas coletivas semeando e instrumentalizando a desconfiança, limitando a confiança ao sagrado núcleo familiar, e com a outra alimentam o que há de mais egoísta e egocêntrico no ser humano, fazendo-nos esquecer da nossa programação padrão.

Quando a lógica da desconfiança triunfa, como um parasita a drenar nossas forças, é inevitável pensar em Nietzsche, naquilo que ele nos diz sobre os que lutam com monstros.

Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não se tornar também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você.

Nietzsche, Além do bem e do mal, § 146

Ver o que há de melhor no ser humano é um exercício, um exercício ético, que me parece o único modo de esterilizar o sentimento fascista que varre o mundo mais uma vez. Toda a busca por virtudes éticas nos leva à necessidade de moldar nossas ações, de repeti-las uma e outra vez até que se tornem hábitos e por fim deem lugar a uma segunda natureza, uma segunda pele. Ver o melhor dos seres humanos significa não deixar que as expressões dos piores aspectos da nossa natureza nos faça esquecer as suas melhores características. É a luta para lembrar a si mesmo, mas também para criar e manter uma atmosfera onde não se permita a nenhum outro humano esquecer quantos seres fantásticos existiram e ainda existem, de tal sorte que assim possamos inverter a lógica do abismo.

Mafalda: mamá...
Mamá: ¿Huh?
Mafalda: ¿Este sol es el mismo que alumbró a Napoleón, a Beethoven, a Newton? ¿O  es otro?
Mamá: Es el mismo, Mafalda, ¡Cómo va a ser otro!
Mafalda: ¡Pavada de sol estamos tomando!

Ter sempre presente o melhor do humano não significa viver no mundo dos ursinhos carinhosos, nem ignorar o que nos outros nos inspira medo e desconfiança; não significa colocar seres humanos em pedestais, numa fandom, ou em qualquer contexto em que mesmo a merda que eles cagam pareça divina. A despeito de todas as adversidades, e do sofrimento que se abate sobre nós com mais frequência que a alegria, esperamos que quem tem presente o melhor do humano possa sentir como algo real e concreto a beleza que manifesta nosso espírito, a verdade que transborda de suas expressões, e possa aspirar não ao distanciamento que a desconfiança fomenta, mas à comunhão, a ser também parte disso que é melhor. E que esse desejo molde profundamente sua vida. Pois é só quando estão juntos, e não distantes, é só quando os seres humanos se sentem à vontade para ser quem são juntos a outros humanos que podemos imaginar e criar o melhor — e só assim nos fortaleceremos.


É quase com vergonha me vejo compelido a repetir, repetir e repetir o mantra sobre a amizade. Se desafortunadamente falta a alguém ocasião para constatar os efeitos da amizade, Get Back ilustra primorosa e deliciosamente o modo como a presença de um amigo pode afetar e ampliar nosso próprio espírito; claro, tenho em mente a relação entre Lennon e McCartney, a estimulante afinidade entre eles.


A convivência da família é a fonte de quase todas as coisas boas que creditamos ao sangue. O que não significa que o sangue não tenha importância, tem!, mas ele não é tão determinante como nas perspectivas mais radicalmente inatistas e/ou conservadoras. Acontece que a convivência também pode trazer coisas horríveis, porque nas famílias pode haver pessoas muito diferentes, que não conseguem resolver suas diferenças ou seus próprios problemas. Os conservadores fecham os olhos para as monstruosidades da família, porque de outro modo teriam que admitir que a chave para o tema confiança/desconfiança não é biológica, mas ético-política. No entanto, convém lembrar aos hipócritas algo que sabem todos os que verdadeiramente se importam com o tema: Mais de 70% da violência sexual contra crianças ocorre dentro de casa (Agência Brasil).

O cidadão de bem, o paradigma da hipocrisia brasileira.

Os iconoclastas, a vontade de seguir e a incapacidade de dizer

De onde vem a vontade de liderar? Alguém se pergunta honestamente sobre isso? Os líderes se perguntam? Uma resposta honesta pode ser o freio de mão de muitos impulsos. Everybody wants to rule the world, canta o Tears for fears. O desejo de liderar não é tão diferente do desejo de influenciar. Ele traz a marca do poder, desse poder que seduz porque alimenta egos sedentos pela confirmação de que são tudo que supõem ser.

Embora o desejo narcisista (e inconsciente) de liderar/influenciar seja como uma criança mimada que exige nossa atenção constantemente, há uma contraparte quase tão silenciosa quanto significativa. Dostoievski falava dela no Grande Inquisidor (em Irmãos Karamazov), das massas que a Igreja atraiu e recrutou oferecendo pão — enquanto Jesus oferecia o deserto e a fé. Sartre falava dela quando notava o fardo da liberdade, a paradoxal ânsia de libertação que ela inspira. Para cada tirano que gostaria de governar o mundo com mão de ferro há mil pessoas dispostas a segui-lo, sacrificando sua liberdade na fogueira do fanatismo.

Se cada um fosse capaz de dizer suas próprias verdades — ainda que ninguém as escutasse — talvez o mercado dos líderes e iconoclastas fosse mais enxuto. E talvez a gente pudesse se escutar melhor, com mais justiça. Mas o que predomina são a vergonha e as bolhas. A vergonha que nos impede de dizer e as bolhas onde é seguro se expressar. É verdade que de tempos em tempos os estúpidos perdem a vergonha, ressentidos por nunca serem escutados — e também porque o mundo não é regido pelas regras ridículas que eles creem que nos salvariam do caos —, mas os estúpidos jamais teriam a coragem de abrir a boca para se manifestar se não se sentissem amparados pelo respaldo de figuras públicas.

O mercado da iconoclastia é grande porque é grande a covardia, apesar da algazarra. Apesar dos gritos. Quando as pessoas veem outras dizendo o que elas creem ser verdadeiro logo também se animam a se expôr. Mas os iconoclastas profissionais não tem respeito pela inteligência dos outros, estão interessados apenas em conseguir os bens simbólicos (ou não) relativos à sua posição e em manipular as pessoas em prol dos seus interesses políticos e ideológicos. Não há nada de mais em ver as coisas segundo suas próprias lentes e valores, o problema é a falta de honestidade que acompanha o desrespeito pela inteligência de quem lhe presta atenção.

Os iconoclastas profissionais não respeitam a inteligência de ninguém, não consideram senão sua própria inteligência, e mesmo quando elogiam alguns de seus cúmplices não o fazem senão no interesse de aumentar seu próprio mercado e sua influência, em nome da expansão do seu território. No entanto, nem todo iconoclasta é um mercenário do mercado de ideias, nem todo iconoclasta é um farsante em busca de uma plateia. Alguns tem a marca dos que respeitam a inteligência dos outros, mais do que isso, alguns deles aspiram por aqueles que tem coragem de pensar suas próprias ideias.

Não é curioso que o cristianismo e o pensamento do iconoclasta Nietzsche tenham igualmente a tendência de atrair hipócritas? Gente que gosta de ter a carteirinha de cristão ou de espírito livre sem nunca ter praticado um ato sequer que esteja de acordo com esses conceitos, por pura covardia. Como se uma coisa fosse o conceito de cristão e outra coisa totalmente diferente fossem as ações de quem se diz cristão. Você pode apoiar tortura, a morte e a violência e ainda assim ser cristão. Pode qualquer coisa, né? O conceito sem força é a lei pra inglês ver. Quando escrevi a tese usei a expressão histórica “lei pra inglês ver” pra ilustrar uma regra ou lei sem força normativa, pra explicar a origem pragmática (e não puramente lógica) da normatividade da lei. A mesma coisa se pode dizer do conceito de cristão, é uma categoria que não categoriza nada, ou melhor, que categoriza qualquer coisa. Quais atos deveriam ser os atos dos cristãos? Aqueles que Freud diz serem quase impossíveis, amar o próximo a si mesmo e outras coisas mais. Talvez vocês saibam o quanto eu simpatizo com a abordagem freudiana das religiões, ainda assim não diria que é impossível, mas essa é uma longa conversa. De qualquer forma, é um enorme desafio amar os outros seres humanos como a nós mesmos, um desafio que só é capaz de aceitar quem verdadeiramente tem uma grande capacidade de amar. Se o cristianismo pregasse: “odiar os outros como a si mesmos”, aí sim eu diria que essas pessoas que se dizem cristãos são cristãos de fato. Mas não é o caso e eles são apenas hipócritas.

E o séquito de Nietzsche? Só há uma opção para quem respeita a inteligência de Nietzsche: abandoná-lo. Quem o segue o trai. Não abandoná-lo com desprezo ou ressentimento, como quem se afasta de algo indesejável ou sem valor. Abandoná-lo como quem, fugindo de um perigo que o persegue, abandona o cadáver de alguém amado. Ninguém pode sentir a força das próprias pernas sem antes haver abandonado muitos cadáveres de pessoas de valor e grandiosas. O espírito de Nietzsche é translúcido como o lago Walden, mas profundo como um abismo e pesado demais para carregar. Na verdade Zaratustra é mais severo do que eu:

Agora, meus discípulos, vou sozinho! Segui vós sozinhos também. Quero-o assim. De todo coração vos dou este conselho: Afastai-vos de mim e precavei-vos de Zaratustra! E melhor ainda: Envergonhai-vos dele! Talvez vos tenha enganado.

Nietzsche, assim falou zaratustra

Nietzsche tem muitos seguidores pra alguém que achava que devia ser visto com desconfiança. A maior aspiração do pensamento de Nietzsche é servir como uma escada — como a escada do Tractatus Logico-Philosophicus — que uma vez usada deveria ser imperativamente abandonada. Embora a escada seja útil, ela é apenas um meio e ninguém pode andar com desenvoltura carregando uma escada. Ninguém pode dançar segurando esse fardo.

Essa é uma curiosa forma de influência. A mais estimulante forma de influência sobre o pensamento humano é aquela que sabota sua própria força influente em favor da erupção de uma singularidade, em nome do nascimento de uma certa consciência. Como se dissesse: use isto enquanto for necessário, depois que estiver forte o bastante você deve fabricar suas próprias ferramentas e então abandonar as que lhe dei. Às vezes me envergonha usar uma linguagem quase utilitarista, mas é que é preciso lembrar que a linguagem não é nada mais que ferramenta (a matemática é uma ferramenta), pra que não nos transformemos em escravos da gramática — outra lição do pensamento nietzscheano.

A “razão” na linguagem: oh, que velha e enganadora senhora! Receio que não nos livraremos de Deus, pois ainda cremos na gramática…

Nietzsche, Crepúsculo dos ídolos, §6
(II. A “razão” na filosofia)

A influência narcisista e a manipulação dos iconoclastas profissionais tem efeitos irrisórios e insignificantes porque partem de pessoas que não acreditam realmente na inteligência dos outros, apenas encenam o teatro dessa crença — às vezes com bastante competência. A verdadeira crença na inteligência alheia acompanha um sentido profundo de justiça que avalia cada um com enorme cuidado, caso a caso. Os preconceitos tem lugar, já disse isso há mais de dez anos, mas como ferramentas provisórias e heurísticas na constituição de conceitos e ações regidas pela justiça. O respeito pela inteligência alheia tem uma enorme força porque transforma a todos nós na melhor forma de influência: no solo onde outras consciências sentem-se a vontade para medrar.

Essa é uma maneira interessantíssima de introduzir a ideia de conceito (e categoria) e uma valiosa explicação do seu impacto ético. O vídeo tem legendas em português em CC.

Esse texto faz parte das discussões da psicologia androide, da gênese da psicologia androide. Do nascimento da consciência, natural ou artificial, já que em certa medida o nascimento das diferentes formas de consciência coincide neste ponto: são ambas uma emancipação das regras de determinação do hardware.


Por acaso, há poucos dias topei com uma observação valiosa de Jung. Ele lembrava que Nietzsche era filho de pastor e que os sermões devem ter tido sobre ele uma enorme influência.

Poder-se-ia dizer que o próprio Nietzsche tinha um outro lado que necessitava uma linguagem forte, e todos os sermões dirigem-se principalmente a ele mesmo. Devem lembrar-se que ele era filho de um pastor e que presumivelmente houve alguma herança. Eu sei o que isto significa. (…) Ele necessitava uma linguagem forte para derrubar aquele homenzinho tão esmagado pela
tradição.

Carl Jung, Seminários sobre o zaratustra de Nietzsche

A Ética da Autenticidade

Os franceses são muito formais, todo mundo sabe disso. Quando criança minha esposa foi viver em Paris e, embora tenha absorvido muita coisa dos franceses, não morre de amores pelos parisienses. Ela me conta como ainda se sente constrangida, sempre que precisa falar com franceses, a repetir o mantra que lhe foi inculcado: “Bonjour! Excusez-moi de vous déranger. S’il vous plaît, pourriez-vous…” (Bom dia! Desculpa incomodá-lo. Por favor, seria possível…). Apesar da fórmula, da sentença quase mecânica, é preciso compreendê-los. Na França, a cidadania é uma ideia muito forte (Paulo Arantes conta isso e muitas outras coisas nesse vídeo) e em certo sentido eles são aristotélicos em seu intuito de tentar moldar a mentalidade dos seus citoyens. Isto é, eles creem que a ação (a Praxis) tem uma força determinante na constituição da virtude e que o respeito aos outros se constrói adestrando os jovens desde cedo a agir como se reconhecessem que as pessoas estão imersas em suas próprias vidas — tem seus próprios problemas e dores — e não estão à nossa disposição para nos servir. É um panorama muito diferente do que predomina no Brasil. Quem pode criticá-los por agir assim e por prescrever que assim sejam educadas as crianças?

Eu também sou aristotélico em muitos sentidos, especialmente porque me parece verdadeira e decisiva a importância da prática e da ação na constituição dos hábitos — e dos hábitos para constituição da virtude. Mas o que há de artificial e não espontâneo na formalidade faz lembrar um problema posto pelo pensamento de Kant. É verdade que nós devemos esperar que os outros nos tratem bem e corretamente, mas é fundamental que esse tratamento não seja apenas o resultado do temor de ser repreendido em caso contrário. Se o que nos impede de tratar os outros com brutalidade, indiferença e indignidade é somente a presença da lei, da justiça, de qualquer expressão simbólica ou imaginária da autoridade, então este tratamento não é verdadeiramente autêntico. Dizem que está em algum lugar de Irmãos Karamazov aquela frase: “Se Deus não existe, tudo é permitido”. Ariano Suassuna cita a frase numa coluna na Folha, em 1999¹. Se a autoridade representada por Deus é o fiador da civilidade, então não me parece que tenhamos conquistado muito.

Nesse sentido, a filosofia de Kant introduz uma distinção indispensável: agir de acordo com a lei e agir conforme a lei. A distinção é feita para separar o cálculo interessado da ação espontânea². A espontaneidade é a expressão de um tipo diferente de inculcação, não se trata de um mero adestramento (a palavra drill é muito boa!). Trata-se de entender e praticar espontaneamente o sentido profundo de uma norma e não meramente repeti-la por costume. Pode ser que nunca notemos, numa pessoa hospitaleira, o quanto seus atos são calculados para causar uma impressão que o favorece, direta ou indiretamente. Mas se desconfiamos que a ação de alguém é interessada não lhe damos o mesmo significado que quando acreditamos que a ação é espontânea.

O pensamento de Kant não estava interessado na questão da autenticidade; nem tampouco no debate lógico sobre a normatividade da regra (presente na discussão sobre “o seguir a regra” resgatada por Saul Kripke ao escrever sobre certos fragmentos das Investigações Filosóficas). E, ainda assim, todas essas ideias parecem convergir. A ação espontânea tem a naturalidade das coisas não mediadas, do orgânico. É claro que a cultura é inescapavelmente uma mediação, a tal ponto da linguagem constituir a própria realidade, mas isso não significa que toda ação dos seres humanos é teatral, mecânica ou previamente determinada por normas. As crianças são símbolos de uma autenticidade cujo encanto muitos sabem reconhecer, mas somente nas crianças. Nos adultos predomina o gosto pelo teatro e pelas regras sociais, as máscaras da civilização. Qualquer outra inclinação será vista como ingenuidade indesculpável. Só às crianças e aos anjos é permitido ser e ver o real.

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O filme A Favorita é uma antípoda à autenticidade infantil e escancara a burlesca sofisticação das regras e dos jogos sociais. O perigo para os que veem os jogos sociais desde a perspectiva do jogador hábil está em deixar-se consumir pelo cinismo, isto é, em não acreditar mais em ações espontâneas e autênticas, em ver por toda parte cálculos, interesses camuflados, ilusões projetadas para alimentar este ou aquele propósito. É assim também em Mad Med.

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O que sempre me atraiu nessa cena é que, após um instante de hesitação, Rachel Menken decide falar com franqueza sobre a razão porque nunca se casou. E a resposta de Don Draper é a sarcástica manifestação do cinismo de um jogador hábil, charmoso e impiedoso com toda forma de ingenuidade. (Como reza a cartilha masculina.) Ela não se abala com a resposta, ao contrário, sua atitude manifesta uma altivez e uma superioridade quase divinas. No mundo real de sentimentos reais seu olhar atravessa Draper como uma flecha e o desarma. E ao final não lhe resta mais que um constrangimento mal disfarçado.

Esmagada na vida social pelo império das regras, a autenticidade se refugia na arte, o único setor da cultura humana que pode acolher e nutrir os que se sentem enclausurados pelas regras. E aí germina um foco de instabilidade. A ciência é lugar para os puzzle-solvers (pra usar uma noção realçada por Thomas Kuhn) e, embora as revoluções sejam também boas fontes de desafios, ela é altamente resistente à mudança. A tendência à estabilidade e a complexidade dos sistemas teóricos de cada disciplina científica (alimentada pela tendência analítica) tornam as mudanças de paradigma quase impossíveis. A arte, por outro lado, não tem nenhum compromisso com a estabilidade — ao contrário, a ansiedade é justo a da busca pela singularidade e pelo que ela tem de desestabilizadora (ou disruptiva, a palavra da moda [por que será?]).

São justo os fingidores (atores e atrizes) quem melhor podem falar sobre a autenticidade. Em entrevista a Amy Cuddy, Julianne Moore faz uma longa consideração sobre como a presença influencia o trabalho dos atores e a relação com as pessoas em geral:

— Às vezes é como se você estivesse se arrastando pela lama, sem chegar a lugar algum. Outras vezes você simplesmente decola. E isso faz com que você se sinta muito viva. Por isso nós fazemos. Por isso todo ator faz. Para que esses momentos não sejam artificiais, mas pareçam transcendentes.
Ela continuou:
— A sensação de impotência e o desgaste tornam a pessoa tensa demais para estar presente. Caso haja uma proteção contra o dano emocional ou a humilhação, a pessoa também não consegue estar presente, porque existe um comportamento defensivo.
Após uma pausa, ela disse:
— É o poder. Trata-se sempre de poder, não é?
Será? Será que no final presença é apenas mais uma palavra para “poder”? Isso explicaria muita coisa.
— O que você faz quando está presente e pronta para se envolver, mas o outro ator na cena não está? — perguntei.
— Algumas pessoas já decidiram o que irão e o que não irão fazer com você, e vão lá e fazem. Mas aí você não consegue se conectar com elas através do olhar e não consegue se conectar fisicamente. E a coisa toda na atuação é parte de uma enorme troca, entende? O mais empolgante é quando duas pessoas presentes estão conectadas e, mesmo sem saber o que vai acontecer, trazem algo juntas… É aí que é transcendente.
Mas, se o outro ator não está envolvido, o poder da presença às vezes é capaz de superar até mesmo esse obstáculo, ressaltou Julianne.
— Quando você está presente e disponível, as pessoas têm um desejo de lhe oferecer seu eu autêntico. Você só precisa pedir. Elas podem resistir a se abrir de início, mas acabarão oferecendo toda sua história de vida — disse Julianne. — E isso se deve ao desejo que as pessoas têm de serem notadas.
Então eu falei:
— Parece que quando você se torna presente, permite que os outros estejam presentes. A presença não torna você dominante no sentido alfa. Na verdade, permite que você ouça as outras pessoas. E que elas se sintam ouvidas e se tornem presentes. Você pode ajudar as pessoas a se sentirem mais poderosas, ainda que não consiga lhes dar poder formal. Ela fez uma pausa e seu rosto se iluminou.
— Isso! E quando isso acontece, quando sua presença consegue evocar a presença delas, você eleva tudo – concluiu.

Amy Cuddy, presença

Como todos conhecemos dezenas de pessoas cuja desinibição faz emergir aspectos indesejáveis, parece temário permitir ou recomendar a autenticidade. É que uma coisa é a desinibição esporádica e pontualmente induzida dos que por longos anos aprenderam a mascarar suas sombras, outra coisa é o processo de aprender a estar-à-vontade consigo mesmo que exige a autenticidade. Estar à vontade consigo mesmo, estar à vontade no mundo (como Passarinho), é não apenas uma mudança subjetiva, mas intersubjetiva, que pouco a pouco contamina todas as dimensões da vida. Seu alcance abrange e transforma também as relações sociais e todo o nosso entorno.

Não há como seguir discutindo esse tema sem exemplos, sem referências a pessoas reais cuja autenticidade se articula perfeitamente aos seus papéis sociais (o que poderia parecer um paradoxo, mas não é!). É por isso que este post não é mais que um prelúdio à apresentação da presença na arte (especialmente na música). Quero fazer uma série de posts sobre figuras e personalidades artísticas cuja presença ilustra o que eu quis apresentar aqui com a ideia de autenticidade.


Fragmento de Vidro (2019), de M. Night Shyamalan.

Shyamalan é um diretor controverso e às vezes suas escolhas resvalam no clichê. Mas há verdades importantes mascaradas em clichês e platitudes. A metáfora do super-poder como algo que resistimos ferrenhamente em aceitar é poderosa porque não vem embalada numa perspectiva individualista (embora talvez não escape da armadilha do empoderamento identitário), mas num contexto em que aceitar os próprios dons estimula os outros a fazer o mesmo.


¹ Li Irmãos Karamazov nas traduções do francês que chegaram ao Brasil bem antes das novas e celebradas traduções direto do russo da Editora 34. Tenho os livros da 34, mas eu não os reli e deles lembro apenas de aspectos marcantes, como O grande inquisidor e outras passagens.

² A distinção kantiana conduz a um certo elogio do desinteresse, como se ele fosse marca de intenções verdadeiramente boas. Nietzsche troçava dessa perspectiva kantiana. Também não acho que seja o caso, embora a distinção me pareça indispensável. Autenticidade não é desinteresse, é um interesse naturalizado, transparente, que se deixa ver pelas outras pessoas e que pode ser articulado aos jogos sociais.

Nunca conheci homem pior do que eu mesmo

Há poucos escritores mais vitais e organicamente profundos que David Henry Thoreau. Seu texto é tão forte e natural quanto a respiração de um jovem gorila de costas prateadas. Sem falar na beleza. O que não significa que seja, por isso, acessível, embora límpido e cristalino como as águas do lago Walden. Não poucas vezes o fluxo do seu pensamento é torrencial e as ideias requerem atenção redobrada. Deixo aqui este fragmento ao qual me sinto inclinado a voltar por tantas vezes e por muitas razões. Ainda que o fragmento tenha muitos aspectos fascinantes, a confissão final talvez seja o que mais me atrai — pelo que ela tem de serena, apenas do seu teor.

Eu quero a flor e o fruto de um homem; que alguma fragrância flutue dele até mim, que alguma doçura dê sabor a nosso contato. A bondade dele não deve ser um ato parcial e transitório, mas um transbordamento constante, que não lhe custa nada e do qual ele não se apercebe. É uma caridade que encobre uma multidão de pecados. Demasiado amiúde o filantropo cerca a humanidade com uma atmosfera composta pela lembrança de suas próprias dores superadas, e ele dá a isso o nome de solidariedade. Devíamos compartilhar nossa coragem, não nosso desespero, nossa saúde e nosso bem-estar, não nosso mal-estar, e cuidar para que este não se espalhe por contágio. De que planícies do sul se elevam as vozes da lamentação? Em que latitudes residem os pagãos a quem enviaremos a luz? Quem é o bruto e intemperado que redimiremos? Se alguma indisposição ataca um homem e ele não faz suas necessidades, se sente dor nos intestinos – pois aí fica a sede da solidariedade –, imediatamente ele se põe a reformar – o mundo. Sendo um microcosmo, ele descobre – e é uma autêntica descoberta, e ele é o homem certo para fazê-la – que o mundo anda comendo maçãs verdes; a seus olhos, de fato, o próprio mundo é uma grande maçã verde, e há o perigo, medonho só de pensar, de que os filhos dos homens lhe deem uma mordida antes que esteja madura; e sua drástica filantropia se estende incontinenti aos esquimós e aos patagônios, e abraça as populosas aldeias indianas e chinesas; e assim, com alguns anos de atividade filantrópica, enquanto isso os poderes políticos certamente utilizando-o para seus próprios fins, ele sara de sua dispepsia, o globo adquire uma leve cor numa ou nas duas faces, como se estivesse começando a amadurecer, a vida perde seu travo e volta a ser doce e saudável viver. Nunca sonhei com nenhuma enormidade maior do que cometi. Nunca conheci, e nunca conhecerei, homem pior do que eu mesmo.

David Henry Thoreau, Walden, A vida nos bosques

PS. O texto me lembra as palavras de Werther sobre o mau humor.

A potência da amizade

Sinto falta de alguns bons amigos que tive, amigos dos quais me afastei por circunstâncias da vida. Talvez alguma dessas circunstâncias seja culpa minha, ou melhor, daquilo que há em mim de intratável, de excessivamente exigente, quase intolerante — mas isso não importa agora. A amizade tem um efeito incrível sobre mim (e suponho que sobre a maioria das pessoas), é como se perto das pessoas com que me sinto à vontade pudesse me sentir inteiro, como se pudesse sentir a liberdade de ser quem eu sou, sem máscaras. Precisamos usar tantas máscaras todos os dias, tolher parte do que somos para nos ajustar ao que os outros gostam, esperam e, sobretudo, ao que eles entendem e aceitam. E esse espaço é sempre tão estreito, quase asfixiante, de tal sorte que quando encontramos os amigos e podemos deitar as máscaras, é como se pudéssemos voltar a sentir o ar fresco após um longo tempo enclausurado respirando através de um escafandro. Essa potencialização que a amizade enseja — pra ser mais preciso, a verdadeira causa disso é a autenticidade com que se pode agir perto dos amigos — Goethe a apresentou como suele hacer, com maestria. Sempre volta à minha cabeça o fragmento de O sofrimento do jovem Werther em que o próprio Werther descreve como se sentia ao lado de uma amiga querida:

Poderia dizer a mim mesmo: “És um insensato em busca daquilo que não se encontra neste mundo”. Mas eu a encontrei, senti junto de mim um coração, uma alma eleita, junto da qual eu cria superar-me, tornando-me tudo aquilo que serei capaz de ser. Ó grande Deus, haverá, então, uma só das faculdades da minha alma que não possa ser aproveitada? Perante ela, não podia eu desdobrar inteiramente esta maravilhosa sensibilidade graças à qual meu coração envolve toda a natureza? Não ofereciam nossas conversações uma constante mistura dos mais delicados sentimentos e do mais agudo espírito, assinalando-se em todas as suas modalidades, e até na impertinência, pelo sinal do gênio? 

PS. Lamento, só tenho aqui a versão digital do livro, que (pelo pouco que lembro) não é a tradução da Martins Fontes.