Os iconoclastas, a vontade de seguir e a incapacidade de dizer

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De onde vem a vontade de liderar? Alguém se pergunta honestamente sobre isso? Os líderes se perguntam? Uma resposta honesta pode ser o freio de mão de muitos impulsos. Everybody wants to rule the world, canta o Tears for fears. O desejo de liderar não é tão diferente do desejo de influenciar. Ele traz a marca do poder, desse poder que seduz porque alimenta egos sedentos pela confirmação de que são tudo que supõem ser.

Embora o desejo narcisista (e inconsciente) de liderar/influenciar seja como uma criança mimada que exige nossa atenção constantemente, há uma contraparte quase tão silenciosa quanto significativa. Dostoievski falava dela no Grande Inquisidor (em Irmãos Karamazov), das massas que a Igreja atraiu e recrutou oferecendo pão — enquanto Jesus oferecia o deserto e a fé. Sartre falava dela quando notava o fardo da liberdade, a paradoxal ânsia de libertação que ela inspira. Para cada tirano que gostaria de governar o mundo com mão de ferro há mil pessoas dispostas a segui-lo, sacrificando sua liberdade na fogueira do fanatismo.

Se cada um fosse capaz de dizer suas próprias verdades — ainda que ninguém as escutasse — talvez o mercado dos líderes e iconoclastas fosse mais enxuto. E talvez a gente pudesse se escutar melhor, com mais justiça. Mas o que predomina são a vergonha e as bolhas. A vergonha que nos impede de dizer e as bolhas onde é seguro se expressar. É verdade que de tempos em tempos os estúpidos perdem a vergonha, ressentidos por nunca serem escutados — e também porque o mundo não é regido pelas regras ridículas que eles creem que nos salvariam do caos —, mas os estúpidos jamais teriam a coragem de abrir a boca para se manifestar se não se sentissem amparados pelo respaldo de figuras públicas.

O mercado da iconoclastia é grande porque é grande a covardia, apesar da algazarra. Apesar dos gritos. Quando as pessoas veem outras dizendo o que elas creem ser verdadeiro logo também se animam a se expôr. Mas os iconoclastas profissionais não tem respeito pela inteligência dos outros, estão interessados apenas em conseguir os bens simbólicos (ou não) relativos à sua posição e em manipular as pessoas em prol dos seus interesses políticos e ideológicos. Não há nada de mais em ver as coisas segundo suas próprias lentes e valores, o problema é a falta de honestidade que acompanha o desrespeito pela inteligência de quem lhe presta atenção.

Os iconoclastas profissionais não respeitam a inteligência de ninguém, não consideram senão sua própria inteligência, e mesmo quando elogiam alguns de seus cúmplices não o fazem senão no interesse de aumentar seu próprio mercado e sua influência, em nome da expansão do seu território. No entanto, nem todo iconoclasta é um mercenário do mercado de ideias, nem todo iconoclasta é um farsante em busca de uma plateia. Alguns tem a marca dos que respeitam a inteligência dos outros, mais do que isso, alguns deles aspiram por aqueles que tem coragem de pensar suas próprias ideias.

Não é curioso que o cristianismo e o pensamento do iconoclasta Nietzsche tenham igualmente a tendência de atrair hipócritas? Gente que gosta de ter a carteirinha de cristão ou de espírito livre sem nunca ter praticado um ato sequer que esteja de acordo com esses conceitos, por pura covardia. Como se uma coisa fosse o conceito de cristão e outra coisa totalmente diferente fossem as ações de quem se diz cristão. Você pode apoiar tortura, a morte e a violência e ainda assim ser cristão. Pode qualquer coisa, né? O conceito sem força é a lei pra inglês ver. Quando escrevi a tese usei a expressão histórica “lei pra inglês ver” pra ilustrar uma regra ou lei sem força normativa, pra explicar a origem pragmática (e não puramente lógica) da normatividade da lei. A mesma coisa se pode dizer do conceito de cristão, é uma categoria que não categoriza nada, ou melhor, que categoriza qualquer coisa. Quais atos deveriam ser os atos dos cristãos? Aqueles que Freud diz serem quase impossíveis, amar o próximo a si mesmo e outras coisas mais. Talvez vocês saibam o quanto eu simpatizo com a abordagem freudiana das religiões, ainda assim não diria que é impossível, mas essa é uma longa conversa. De qualquer forma, é um enorme desafio amar os outros seres humanos como a nós mesmos, um desafio que só é capaz de aceitar quem verdadeiramente tem uma grande capacidade de amar. Se o cristianismo pregasse: “odiar os outros como a si mesmos”, aí sim eu diria que essas pessoas que se dizem cristãos são cristãos de fato. Mas não é o caso e eles são apenas hipócritas.

E o séquito de Nietzsche? Só há uma opção para quem respeita a inteligência de Nietzsche: abandoná-lo. Quem o segue o trai. Não abandoná-lo com desprezo ou ressentimento, como quem se afasta de algo indesejável ou sem valor. Abandoná-lo como quem, fugindo de um perigo que o persegue, abandona o cadáver de alguém amado. Ninguém pode sentir a força das próprias pernas sem antes haver abandonado muitos cadáveres de pessoas de valor e grandiosas. O espírito de Nietzsche é translúcido como o lago Walden, mas profundo como um abismo e pesado demais para carregar. Na verdade Zaratustra é mais severo do que eu:

Agora, meus discípulos, vou sozinho! Segui vós sozinhos também. Quero-o assim. De todo coração vos dou este conselho: Afastai-vos de mim e precavei-vos de Zaratustra! E melhor ainda: Envergonhai-vos dele! Talvez vos tenha enganado.

Nietzsche, assim falou zaratustra

Nietzsche tem muitos seguidores pra alguém que achava que devia ser visto com desconfiança. A maior aspiração do pensamento de Nietzsche é servir como uma escada — como a escada do Tractatus Logico-Philosophicus — que uma vez usada deveria ser imperativamente abandonada. Embora a escada seja útil, ela é apenas um meio e ninguém pode andar com desenvoltura carregando uma escada. Ninguém pode dançar segurando esse fardo.

Essa é uma curiosa forma de influência. A mais estimulante forma de influência sobre o pensamento humano é aquela que sabota sua própria força influente em favor da erupção de uma singularidade, em nome do nascimento de uma certa consciência. Como se dissesse: use isto enquanto for necessário, depois que estiver forte o bastante você deve fabricar suas próprias ferramentas e então abandonar as que lhe dei. Às vezes me envergonha usar uma linguagem quase utilitarista, mas é que é preciso lembrar que a linguagem não é nada mais que ferramenta (a matemática é uma ferramenta), pra que não nos transformemos em escravos da gramática — outra lição do pensamento nietzscheano.

A “razão” na linguagem: oh, que velha e enganadora senhora! Receio que não nos livraremos de Deus, pois ainda cremos na gramática…

Nietzsche, Crepúsculo dos ídolos, §6
(II. A “razão” na filosofia)

A influência narcisista e a manipulação dos iconoclastas profissionais tem efeitos irrisórios e insignificantes porque partem de pessoas que não acreditam realmente na inteligência dos outros, apenas encenam o teatro dessa crença — às vezes com bastante competência. A verdadeira crença na inteligência alheia acompanha um sentido profundo de justiça que avalia cada um com enorme cuidado, caso a caso. Os preconceitos tem lugar, já disse isso há mais de dez anos, mas como ferramentas provisórias e heurísticas na constituição de conceitos e ações regidas pela justiça. O respeito pela inteligência alheia tem uma enorme força porque transforma a todos nós na melhor forma de influência: no solo onde outras consciências sentem-se a vontade para medrar.

Essa é uma maneira interessantíssima de introduzir a ideia de conceito (e categoria) e uma valiosa explicação do seu impacto ético. O vídeo tem legendas em português em CC.

Esse texto faz parte das discussões da psicologia androide, da gênese da psicologia androide. Do nascimento da consciência, natural ou artificial, já que em certa medida o nascimento das diferentes formas de consciência coincide neste ponto: são ambas uma emancipação das regras de determinação do hardware.


Por acaso, há poucos dias topei com uma observação valiosa de Jung. Ele lembrava que Nietzsche era filho de pastor e que os sermões devem ter tido sobre ele uma enorme influência.

Poder-se-ia dizer que o próprio Nietzsche tinha um outro lado que necessitava uma linguagem forte, e todos os sermões dirigem-se principalmente a ele mesmo. Devem lembrar-se que ele era filho de um pastor e que presumivelmente houve alguma herança. Eu sei o que isto significa. (…) Ele necessitava uma linguagem forte para derrubar aquele homenzinho tão esmagado pela
tradição.

Carl Jung, Seminários sobre o zaratustra de Nietzsche

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