Cultura Pop, Humor e Inteligência

Há duas coisas que eu gosto em Zizek: o humor sempre presente nos seus textos e falas, e a sua atitude em relação à cultura pop. Meus textos não tem nem um grão de humor, são completamente planos nesse quesito. Boa parte dos comentaristas políticos de quem eu gosto incorpora o humor no que escreve e isso torna a atmosfera dos seus textos menos rarefeita — eu tenho em mente: Celso Rocha de Barros, José Roberto de Toledo, Conrado Hübner Mendes e em certa medida até Marcos Nobre. Aceitar a cultura pop — essa categoria tão abrangente e vaga — é outro elemento que ajuda trazer oxigênio à atmosfera dos pensamentos.

A chave pra entender a oxigenação da atmosfera promovida pela cultura pop está na flexibilização dos padrões de inteligência e em suas consequências discursivas. Usemos uma meia verdade para ilustrar como se dá essa flexibilização. Suponhamos que em relação ao entendimento e à capacidade de julgar há duas posições particularmente importantes e antagônicas. Duas posições distintas a respeito da importância do exemplo e da abstração. Kant acreditava que o exemplo era uma muleta e os que fossem capazes disso deveriam prescindir do seu uso:

Pois, no tocante ao rigor e precisão dos conhecimentos do entendimento, os exemplos são, geralmente, mais prejudiciais que vantajosos, porque é raro cumprirem adequadamente a condição da regra (como casus in terminis) e enfraquecem, além disso, muitas vezes, o esforço do entendimento para apreender (…) Assim, os exemplos são as muletas da faculdade de julgar de que nunca poderá prescindir quem careça desse dom natural.

Immanuel Kant, Crítica da Razão pura, B173-4

Embora essa posição pareça esnobe e arrogante, ela está conforme às exigências próprias ao pensamento de Kant e à sua inclinação ao que é puro, ao que está livre das opacidade e da incerteza da experiência e dos fatos. No Tractatus Logico-Philosophicus, Ludwig Wittgenstein apresentou um pensamento que para muitos tem o sabor de um pensamento kantiano:

O pensamento é cercado por uma bruma. — Sua essência, a lógica, apresenta uma ordem: a saber, a ordem a priori do mundo; isto é, a ordem das possibilidades, que o mundo e o pensamento tem em comum. Mas essa ordem, parece, deve ser extremamente simples. Ela antecede toda experiência e deve atravessar toda a experiência; nenhuma opacidade e incerteza empírica deve aderir a essa ordem. — Ela deve ser o mais puro cristal. Mas esse cristal não parece uma abstração, mas algo concreto, na verdade como o mais concreto, como se fosse há coisa mais dura que há (Tractatus Logico-Philosophicus 5.5563).

Wittgenstein, Investigações filosóficas, 97

Esse é o contexto em que a pureza tem lugar e onde convém afastar-se da opacidade das coisas empíricas, abstrair-se de suas impurezas e distorções. Acontece que direta ou indiretamente esse contexto marca uma posição sobre um modelo de inteligência. Nessa posição está privilegiado o modelo de inteligência ligado à abstração, ao esvaziamento ou ao descarnamento (descarnação? não sei como dizer) da experiência em busca de regras de determinação do sentido cada vez mais gerais. Pra essa perspectiva, o exemplo só pode ser uma muleta, porque diz mais do que o necessário. Diz o contingente, diz o irrelevante. E ao dizer tanto introduz a vagueza, a pluralidade de sentidos, tudo aquilo que deve ser evitado para que a linguagem possa dizer o sentido claramente, de modo determinado.

(Minha leitura do parágrafo de Kant citado acima é enviesada, o próprio recorte é enviesado — leiam todo o contexto. Por isso o que eu disse é uma meia verdade, Kant não difere de Wittgenstein sobre o papel dos exemplos [dos casos], a diferença entre eles reside no fato de que a lei e a regra para a pragmática de Wittgenstein são determinadas pela constância da prática, enquanto que o problema da determinação [do seguir a regra] não estava nem mesmo posto no marco determinista do pensamento de Kant. Para Kant, a estruturação começa pelo mais geral [o vetor de determinação é a generalidade] e não há interesse lógico em uma genealogia como a de Wittgenstein ou a de Foucault.)

Quando o pensamento de Wittgenstein começa a mudar, muda também a sua relação com o caso, com o exemplo. A ênfase sobre o papel da ação — que o leva a valorizar tanto a etnologia — tira o exemplo da lata de lixo e em certo sentido o coloca no próprio centro da atividade de esclarecimento conceitual que é a filosofia. Isso abre espaço a um modo completamente diferente de pensar a inteligência. Um modo mais plural, mais generoso no seu olhar. Nosso olhar continua sendo arrogante, porque não conseguimos conceber inteligências dignas do nosso apreço se não possuirem, por exemplo, conceitos aritméticos. Mas o espaço está aberto para que o cinema — como desde sempre a literatura — possa nos instruir sobre o mundo fora das nossas bolhas. Assim, podemos forjar nós mesmos as medidas e os padrões de inteligência que usaremos de agora em diante — ao invés de nos fiar nesse elogio à abstração. Sobre esse mesmo tema um exemplo do cinema pode nos ajudar.

Uma boa imitação da inteligência humana? (Não há legendas porque o vídeo não é meu, peguei no Youtube, essa é uma cena clássica de Blade Runner.)

A flexibilização dos padrões de inteligência estimulada pela pragmática se dá quase ao mesmo tempo que a busca de Alan Turing por um modo de distinguir a inteligência humana da inteligência artificial. O que vale pra seres humanos e androides, vale também na relação dos humanos entre si e entre os humanos e os animais. Digo, podemos também nos perguntar pela expressão de diferentes formas de inteligência. Vamos deixar de lado a inteligência dos animais e a dos androides e ficar somente com os diferentes paradigmas de inteligência entre humanos. Depois de ter dado essa volta, fica fácil (ou menos difícil) ver porque a cultura pop pode trazer oxigênio à atmosfera do pensamento. Porque o exemplo, a concretude de casos particulares próximos ao maior número de pessoas, reduz o peso da abstração como critério de inteligência e permite que outras formas de inteligência se expressem ou possam ser vistas por nossos olhares, agora menos engessados. O pensamento precisa tanto da abstração como da imaginação e nem sempre a capacidade de abstrair e de imaginar coincidem. Podendo circular entre diversas expressões de inteligência, o pensamento — já como coisa sem dono — está livre para se manifestar nos mais variados cantos da cultura. (Virar um meme?)

Essa valorização da multiplicidade da inteligência produz um efeito cascata cujo alcance não podemos esgotar. Da perspectiva do indivíduo ela abre espaço à criação, à ruptura de paradigmas, na medida em que abranda a força normativa sedimentada em modos estáveis de avaliar a inteligência. Da perspectiva social, ela recoloca os atos inteligentes em contextos, isto é, em contextos históricos, explicita valores, e pouco a pouco a flexibilização pode construir a atmosfera para pensamentos novos, dirigidos por novos eixos. Como enxergar o mundo sob novas lentes, apoiado em novos eixos? Como dar espaço a novas perspectivas sem reavaliar também a própria medida de inteligência, sem flexibilizar seus próprios padrões? Como resistir à tendência à estabilidade encontrando uma boa justificação para não mudar?

Nossa obsessão por medidas é tão grande que, quando pensamos na Teoria da Relatividade como expressão inconteste da inteligência, e queremos identificar inteligências igualmente grandiosas fora desse marco teórico, tendemos a recorrer a medidas institucionalmente estabelecidas — e dizemos, por exemplo, que Shakespeare é um gênio fora das ciências. No entanto, o problema persiste porque a generalização dos padrões de inteligência tende a nos tornar meros aplicadores de normas, pessoas inclinadas a usar os critérios consensualmente reconhecidos, ao invés de criar nossas próprias medidas. A tendência a confiar nos quadros de organização de valor (quadros normativos) tem o mesmo pendor a engessar nossa capacidade de enxergar a inteligência que o apego à abstração. Isso sem falar no que pode haver de meramente performático na expressão da inteligência, como, por exemplo, a erudição. Não há melhor máscara para a estupidez.

Entre o caso e a regra estivemos sempre a buscar as regras e a leis mais gerais. Precisamos de outro olhar, um olhar que saiba também privilegiar o concreto, que saiba ver no concreto o manancial de novas generalidades, de novos abstratos.

O humor é uma das expressões mais interessantes da inteligência e, no contexto dessa discussão, a questão que se coloca pra mim uma e outra vez é: qual é a expressão máxima da inteligência no humor? Como identificá-la em sua particularidade, em sua singularidade? É uma obra? O humor é um trabalho não poucas vezes fragmentário, embora constante. Mas só podemos constatar sua grandiosidade contemplando uma obra inteira, uma seleção dos seus melhores momentos? Nenhum particular a revela? É a partir dos casos que alguém aprende a enxergar a regra, são os exemplos e as amostras (a constância delas) que determinam as dimensões gerais que depois vemos claramente nas leis e padrões que descrevem uma regularidade. Quando nos damos conta disso, descobrimos que há milhões de domínios recônditos onde a inteligência se manifesta sem testemunhas (e não apenas dentro da cultura popular). Embora minha tendência à didática do radicalismo me dirija à inteligência dos animais, das aranhas, por exemplo, o humor, essa marca tão própria ao humano, é um bom ponto de partida para o exercício do olhar.

Laerte e sua obra monumental
Linha do trem, recentemente redescoberto.
Molg H., um gênio incompreendido.

Nunca é demais lembrar que não se trata de abolir distinções de valor, como elas fossem inúteis ou inadequadas tal como são. Não podemos viver sem valor, mas podemos nos tornar melhores juízes, juízes mais criteriosos, autônomos, generosos, há muito o que melhorar e sem tornar flexíveis nossos padrões é quase impossível ver o que está fora das nossas lentes.

Os iconoclastas, a vontade de seguir e a incapacidade de dizer

De onde vem a vontade de liderar? Alguém se pergunta honestamente sobre isso? Os líderes se perguntam? Uma resposta honesta pode ser o freio de mão de muitos impulsos. Everybody wants to rule the world, canta o Tears for fears. O desejo de liderar não é tão diferente do desejo de influenciar. Ele traz a marca do poder, desse poder que seduz porque alimenta egos sedentos pela confirmação de que são tudo que supõem ser.

Embora o desejo narcisista (e inconsciente) de liderar/influenciar seja como uma criança mimada que exige nossa atenção constantemente, há uma contraparte quase tão silenciosa quanto significativa. Dostoievski falava dela no Grande Inquisidor (em Irmãos Karamazov), das massas que a Igreja atraiu e recrutou oferecendo pão — enquanto Jesus oferecia o deserto e a fé. Sartre falava dela quando notava o fardo da liberdade, a paradoxal ânsia de libertação que ela inspira. Para cada tirano que gostaria de governar o mundo com mão de ferro há mil pessoas dispostas a segui-lo, sacrificando sua liberdade na fogueira do fanatismo.

Se cada um fosse capaz de dizer suas próprias verdades — ainda que ninguém as escutasse — talvez o mercado dos líderes e iconoclastas fosse mais enxuto. E talvez a gente pudesse se escutar melhor, com mais justiça. Mas o que predomina são a vergonha e as bolhas. A vergonha que nos impede de dizer e as bolhas onde é seguro se expressar. É verdade que de tempos em tempos os estúpidos perdem a vergonha, ressentidos por nunca serem escutados — e também porque o mundo não é regido pelas regras ridículas que eles creem que nos salvariam do caos —, mas os estúpidos jamais teriam a coragem de abrir a boca para se manifestar se não se sentissem amparados pelo respaldo de figuras públicas.

O mercado da iconoclastia é grande porque é grande a covardia, apesar da algazarra. Apesar dos gritos. Quando as pessoas veem outras dizendo o que elas creem ser verdadeiro logo também se animam a se expôr. Mas os iconoclastas profissionais não tem respeito pela inteligência dos outros, estão interessados apenas em conseguir os bens simbólicos (ou não) relativos à sua posição e em manipular as pessoas em prol dos seus interesses políticos e ideológicos. Não há nada de mais em ver as coisas segundo suas próprias lentes e valores, o problema é a falta de honestidade que acompanha o desrespeito pela inteligência de quem lhe presta atenção.

Os iconoclastas profissionais não respeitam a inteligência de ninguém, não consideram senão sua própria inteligência, e mesmo quando elogiam alguns de seus cúmplices não o fazem senão no interesse de aumentar seu próprio mercado e sua influência, em nome da expansão do seu território. No entanto, nem todo iconoclasta é um mercenário do mercado de ideias, nem todo iconoclasta é um farsante em busca de uma plateia. Alguns tem a marca dos que respeitam a inteligência dos outros, mais do que isso, alguns deles aspiram por aqueles que tem coragem de pensar suas próprias ideias.

Não é curioso que o cristianismo e o pensamento do iconoclasta Nietzsche tenham igualmente a tendência de atrair hipócritas? Gente que gosta de ter a carteirinha de cristão ou de espírito livre sem nunca ter praticado um ato sequer que esteja de acordo com esses conceitos, por pura covardia. Como se uma coisa fosse o conceito de cristão e outra coisa totalmente diferente fossem as ações de quem se diz cristão. Você pode apoiar tortura, a morte e a violência e ainda assim ser cristão. Pode qualquer coisa, né? O conceito sem força é a lei pra inglês ver. Quando escrevi a tese usei a expressão histórica “lei pra inglês ver” pra ilustrar uma regra ou lei sem força normativa, pra explicar a origem pragmática (e não puramente lógica) da normatividade da lei. A mesma coisa se pode dizer do conceito de cristão, é uma categoria que não categoriza nada, ou melhor, que categoriza qualquer coisa. Quais atos deveriam ser os atos dos cristãos? Aqueles que Freud diz serem quase impossíveis, amar o próximo a si mesmo e outras coisas mais. Talvez vocês saibam o quanto eu simpatizo com a abordagem freudiana das religiões, ainda assim não diria que é impossível, mas essa é uma longa conversa. De qualquer forma, é um enorme desafio amar os outros seres humanos como a nós mesmos, um desafio que só é capaz de aceitar quem verdadeiramente tem uma grande capacidade de amar. Se o cristianismo pregasse: “odiar os outros como a si mesmos”, aí sim eu diria que essas pessoas que se dizem cristãos são cristãos de fato. Mas não é o caso e eles são apenas hipócritas.

E o séquito de Nietzsche? Só há uma opção para quem respeita a inteligência de Nietzsche: abandoná-lo. Quem o segue o trai. Não abandoná-lo com desprezo ou ressentimento, como quem se afasta de algo indesejável ou sem valor. Abandoná-lo como quem, fugindo de um perigo que o persegue, abandona o cadáver de alguém amado. Ninguém pode sentir a força das próprias pernas sem antes haver abandonado muitos cadáveres de pessoas de valor e grandiosas. O espírito de Nietzsche é translúcido como o lago Walden, mas profundo como um abismo e pesado demais para carregar. Na verdade Zaratustra é mais severo do que eu:

Agora, meus discípulos, vou sozinho! Segui vós sozinhos também. Quero-o assim. De todo coração vos dou este conselho: Afastai-vos de mim e precavei-vos de Zaratustra! E melhor ainda: Envergonhai-vos dele! Talvez vos tenha enganado.

Nietzsche, assim falou zaratustra

Nietzsche tem muitos seguidores pra alguém que achava que devia ser visto com desconfiança. A maior aspiração do pensamento de Nietzsche é servir como uma escada — como a escada do Tractatus Logico-Philosophicus — que uma vez usada deveria ser imperativamente abandonada. Embora a escada seja útil, ela é apenas um meio e ninguém pode andar com desenvoltura carregando uma escada. Ninguém pode dançar segurando esse fardo.

Essa é uma curiosa forma de influência. A mais estimulante forma de influência sobre o pensamento humano é aquela que sabota sua própria força influente em favor da erupção de uma singularidade, em nome do nascimento de uma certa consciência. Como se dissesse: use isto enquanto for necessário, depois que estiver forte o bastante você deve fabricar suas próprias ferramentas e então abandonar as que lhe dei. Às vezes me envergonha usar uma linguagem quase utilitarista, mas é que é preciso lembrar que a linguagem não é nada mais que ferramenta (a matemática é uma ferramenta), pra que não nos transformemos em escravos da gramática — outra lição do pensamento nietzscheano.

A “razão” na linguagem: oh, que velha e enganadora senhora! Receio que não nos livraremos de Deus, pois ainda cremos na gramática…

Nietzsche, Crepúsculo dos ídolos, §6
(II. A “razão” na filosofia)

A influência narcisista e a manipulação dos iconoclastas profissionais tem efeitos irrisórios e insignificantes porque partem de pessoas que não acreditam realmente na inteligência dos outros, apenas encenam o teatro dessa crença — às vezes com bastante competência. A verdadeira crença na inteligência alheia acompanha um sentido profundo de justiça que avalia cada um com enorme cuidado, caso a caso. Os preconceitos tem lugar, já disse isso há mais de dez anos, mas como ferramentas provisórias e heurísticas na constituição de conceitos e ações regidas pela justiça. O respeito pela inteligência alheia tem uma enorme força porque transforma a todos nós na melhor forma de influência: no solo onde outras consciências sentem-se a vontade para medrar.

Essa é uma maneira interessantíssima de introduzir a ideia de conceito (e categoria) e uma valiosa explicação do seu impacto ético. O vídeo tem legendas em português em CC.

Esse texto faz parte das discussões da psicologia androide, da gênese da psicologia androide. Do nascimento da consciência, natural ou artificial, já que em certa medida o nascimento das diferentes formas de consciência coincide neste ponto: são ambas uma emancipação das regras de determinação do hardware.


Por acaso, há poucos dias topei com uma observação valiosa de Jung. Ele lembrava que Nietzsche era filho de pastor e que os sermões devem ter tido sobre ele uma enorme influência.

Poder-se-ia dizer que o próprio Nietzsche tinha um outro lado que necessitava uma linguagem forte, e todos os sermões dirigem-se principalmente a ele mesmo. Devem lembrar-se que ele era filho de um pastor e que presumivelmente houve alguma herança. Eu sei o que isto significa. (…) Ele necessitava uma linguagem forte para derrubar aquele homenzinho tão esmagado pela
tradição.

Carl Jung, Seminários sobre o zaratustra de Nietzsche

Quanto de verdade cada um pode aguentar?

Sem o pano de fundo de uma psicologia a verdade pode ser a simples peça de um quebra-cabeças, uma parte que ajuda a saturar um espaço lógico (do conhecimento). O fragmento de uma totalidade. Ainda que esse espaço lógico seja infinito, ele pode ser inteiramente determinado porque em certo sentido é um infinito atual e toda sua extensão está determinada conforme as leis naturais que o constituem. Bem, essa é somente uma perspectiva.

Mas quando trazemos a psicologia de volta — e pensamos a verdade — algo novo se acrescenta, algo que não podia estar presente aí onde a arbitrariedade não era permitida, a ideia de intensidade. A verdade então se transforma em um elemento a ser digerido pelas personalidades às quais ela se expõe e um dilema ético se apresenta. Hilda Hilst expressa de modo cristalino como essas dificuldades se colocam para o escritor.

LÉO GILSON RIBEIRO O que é uma grande abertura de intensidade?
HILDA HILST É difícil de definir, talvez fosse mais fácil sentir isso. É mostrar ao outro que ele pode desvendar o seu “eu” desconhecido; é proporcionar ao outro o “autoconhecimento”, uma compreensão definitiva de si mesmo, com suas potencialidades, falhas e virtudes.
 
LGB E isso não seria ampliar o outro, libertá-lo?
HH É justamente o que eu queria discutir com você: eticamente algum escritor, alguma pessoa, pode assumir a tremenda responsabilidade de romper os limites que o outro aceitou, ou porque lhe foram impostos de fora ou porque ele se arrumou diante dessa conciliação com a opressão externa e o condicionamento interno de que foi vítima? Revelar ao outro que ele pode ser muito mais e pode ser ele mesmo com uma liberdade total de qualquer tipo de repressão política, econômica, sexual, religiosa, psicológica etc., eu me pergunto, não pode levar uma pessoa à morte, à loucura sem retorno?
 
LGB Mas por que você pressupõe que as pessoas não queiram se libertar?
HH Talvez algumas queiram, mas poderão aguentar a sua nova condição? Que direito tenho eu de interferir na sua vida burguesa, arrumadinha, na qual, bem ou mal, ela sobrevive? E uma questão eminentemente ética!
 
LGB Você acha que seria uma onipotência ou uma presunção do autor ambicionar isso?
HH Sim, porque talvez depois de se conhecer a si mesma esse destinatário da minha mensagem de autolibertação não suporte a ruptura com o seu mundo anterior de tabus, de repressões, mas um mundo no qual ele pôde sobreviver. E se a descoberta plena de si mesmo for uma descoberta tão maior do que a sua capacidade? Se o levar a um nível de intensidade de autodescoberta que se revele intolerável para ele?

cristiano diniz (org.), Fico besta quando me entendem: entrevistas com hilda hilst

Na terceira temporada de The Sinner, uma situação apresenta o mesmo dilema. Um professor atordoado por seus próprios fantasmas e cansado de assistir impassível à infelicidade da sua aluna decide aconselhá-la. Ele decide lhe falar sobre o quanto a sociedade nos impele ao gregarismo e como é difícil escapar desse impulso, quer estimulá-la a emancipar-se do jugo dos pais tiranos (do pai, pra ser mais exato), sob pena de prolongar sua infelicidade indefinidamente. Mas como fazer isso sem ferir, sem exceder involuntariamente a quota que cada um pode suportar de verdade? Hilda Hilst tem boas razões pra pensar assim.

Quem erigirá a imagem do homem?

Diante de tais perigos de nossa época, quem irá prestar os serviços de guardião e paladino da humanidade, esse tesouro sagrado e inviolável gradativamente acumulado por diferentes gerações? Quem erigirá a imagem do homem quando todos sentem em si apenas o verme egoísta e o medo submisso, quando todos decairam dessa imagem em direção ao animalesco ou mesmo ao meramente mecânico?

Nietzsche, segunda consideração extemporânea

A teimosia como questão filosófica

Há algum tempo eu tenho insistido num ponto: eliminar a arbitrariedade, a vontade e qualquer coisa que escape à determinação causal da ciência corresponde à tarefa de um determinado projeto de racionalidade. Um projeto estreitamente vinculado a concepções filosóficas entretecidas à Matemática e à Lógica. De acordo com esse marco teórico, a distinção kantiana entre o reino da Liberdade e o reino da Natureza deve ser abandonada e assim ficaríamos apenas com a Natureza. Muitas perspectivas interessantes se derivam das ideias ligadas a esse projeto. No entanto, embora sua força e seus efeitos se vejam claramente em casos como a Cambridge Analytica, fenômenos comuns e decisivos do uso da linguagem escapam de sua pretensão generalista e determinista. Nas suas anotações Wittgenstein recorta uma frase de Schopenhauer que pode ser um bom ponto de partida para olhar desses fenômenos:

Se você se encontra perplexo tentando convencer alguém de algo sem ser capaz de sair do lugar, diga a si mesmo que é a vontade e não o intelecto o que você está enfrentando.

Como é possível conceber a mudança sem ter em conta a adesão que as pessoas tem às suas crenças e visão de mundo? Que estratégia podemos empregar para levá-las a crer naquilo que julgamos necessário se não consideramos a estabilidade que uma visão de mundo produz e a instabilidade gerada pelo seu abandono?

Sistemas de referências como estabilizadores lógicos e psicológicos formam um tema que me interessa muitíssimo e sobre o qual já escrevi aqui e em outros lugares, mas há ainda outro aspecto que anda lado a lado a essa discussão. O produto psicológico da certeza (lógica) é a convicção, e do sentimento de convicção se deriva, não poucas vezes, a confiança. A confiança é um elemento indispensável para que certas ideias possam produzir resultados que nos parecem naturais: um inventor, um cientista, um escritor, qualquer um quem que, dentro de um dado paradigma, tenha uma ideia dissonante precisa ter confiança suficiente para afirmar suas ideias, a despeito da recepção e das críticas. Entretanto, essa confiança não é a marca dos gênios e das pessoas verdadeiramente investidas de uma visão nova e transformadora. Em realidade, a confiança é mais comum do que parece e dela não se pode inferir nada sobre a qualidade e o valor das ideias de quem a possui.

A confiança não apenas estabiliza uma visão de mundo, ela tende a promover e projetar as crenças e ideias que a caracterizam. Disso resulta uma situação embaraçosa: se por um lado a confiança é imprescindível para que ideias novas possam projetar-se e produzir efeitos que só o novo pode nos trazer, por outro, o fato de que ela seja tão bem distribuída quanto o bom senso de que fala Descartes parece produzir o efeito de impedir que as pessoas mudem a forma como pensam.

O bom senso é a coisa mais bem distribuída do mundo: pois cada um pensa estar tão bem provido dele, que mesmo aqueles mais difíceis de se satisfazerem com qualquer outra coisa não costumam desejar mais bom senso do que têm.

Descartes, discurso do método

Disso tudo resultam dúvidas exasperantes: qual é a medida entre a convicção e a incerteza? Que relação deve haver entre o conhecimento e a ignorância? É possível passar toda a vida escrevendo sobre esse tema sem esgotá-lo, mas o que me interessa agora é salientar que, embora a questão se ramifique ou se entrelace a um sem número de outras (como a tendência a confirmação), uma palavra muito comum pode apresentar de modo simples o que está na raiz de toda essa discussão: teimosia. A teimosia dá conta dessa resistência da vontade, da face negativa, por assim dizer, da confiança e da estabilidade. Trata-se inegavelmente de um problema filosófico significativo: qual é o papel da resistência nos intercâmbios linguísticos e nos usos do discurso?

Há mais variáveis nessa discussão do que minha incipiente capacidade de sistematizar me permite gerenciar, portanto a seguir eu vou colocar três pontos torcendo para que lhes pareça claro o vínculo entre todas essas ideias.

Nietzsche tinha um modo curioso de conceber uma certa expressão da força de caráter:

A estreiteza de opiniões, transformada em instinto pelo hábito, leva ao que chamamos de força de caráter. Quando alguém age por poucos, mas sempre os mesmos motivos, seus atos adquirem grande energia; se esses atos harmonizarem com os princípios dos espíritos cativos, eles serão reconhecidos e também produzirão, naquele que os perfaz, o sentimento da boa consciência. Poucos motivos, ação enérgica e boa consciência constituem o que se chama força de caráter. Ao indivíduo de caráter forte falta o conhecimento das muitas possibilidades e direções da ação; seu intelecto é estreito, cativo, pois em certo caso talvez lhe mostre apenas duas possibilidades; entre essas duas ele tem de escolher necessariamente, conforme sua natureza, e o faz de maneira rápida e fácil, pois não tem cinqüenta possibilidades para escolher.

Nietzsche, humano, demasiado humano, § 228

É inevitável lembrar de um certo capitão reformado do Exército berrando, com enorme convicção, ante um apático jornalista: “através do voto cê não vai mudar nadaaaaa nesse país”. Não dá pra negar que a estreiteza confere muita força às palavras e às ações, e não sem razão as pessoas se sentem atraídas por discursos carregados de convicção.

Nesse mesmo contexto, ao examinar questão do gênio, Nietzsche destacou que é tortuoso e incerto o caminho pelo qual o gênio poderia conferir às suas próprias ações a mesma energia que uma pessoa estreita manifestava.

Comparado àquele que tem a tradição a seu lado e não precisa de razões para seus atos, o espírito livre é sempre débil, sobretudo na ação; pois ele conhece demasiados motivos e pontos de vista, e por isso tem a mão insegura, não exercitada. Que meios existem para torná-lo relativamente forte, de modo que ao menos se afirme e não pereça inutilmente?

Nietzsche, humano, demasiado humano, § 230

Nas últimas décadas essa a debilidade do gênio e a confiança dos estreitos, por assim dizer, tem atraído o interesse científico por causa de investigações psicológicas como as do chamado Efeito Dunning-Kruger. Esse efeito pretende explicar a inclinação das pessoas estreitas e obtusas a sobrevalorizar suas competências e, por outra parte, a tendência dos espíritos verdadeiramente fortes a menosprezar suas habilidades. Não é à toa que Nietzsche se considerava um psicólogo sem igual.

Por fim, em certa medida a teimosia, a confiança e a convicção são elementos indispensáveis, pois não parece nem possível nem desejável simplesmente eliminá-las. No entanto, mesmo no melhor dos casos, quando a convicção acompanha ideias geniais e transformadoras, há sempre o risco de que assim também se engesse uma visão de mundo. Talvez o aspecto que mais tardia e inadvertidamente tenha me chamado atenção no pensamento de Wittgenstein seja seu descompromisso com a estabilidade. Suas ideias eram reformadas numa velocidade que tornava quase impraticável acompanhá-las, essa era uma queixa conhecida entre alguns de seus amigos. O desapego à estabilidade pode bem denotar uma atitude valiosa a respeito da relação entre conhecimento e ignorância. Esse texto já está longo e coalhado de citações, mas permitam uma última:

Ao escrevermos, como evitar que escrevamos sobre aquilo que não sabemos ou que sabemos mal? É necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo a dizer. Só escrevemos na extremidade de nosso próprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber e nossa ignorância e que transforma um no outro. É só deste modo que somos determinados a escrever. Suprir a ignorância é transferir a escrita para depois ou, antes, torná-la impossível. Talvez tenhamos aí, entre a escrita e a ignorância, uma relação ainda mais ameaçadora que a relação geralmente apontada entre a escrita e a morte, entre a escrita e o silêncio.

Gilles deleuze, diferença e repetição (prólogo)

Eu acredito que as armadilhas da convicção só podem ser superadas quando nos parecer natural não apenas admitir alguma instabilidade em nossa visão de mundo mas também estar a vontade com a nossa própria ignorância. É difícil conceber a comunicação e o entendimento como ferramentas capazes de responder às exigências de transformação que teremos que levar a cabo nas próximas (décadas && séculos) sem incorporar esses dois elementos à nossa cultura e subjetividade. Toda a tradição determinista, aquela que eu mencionei no primeiro parágrafo, dá aos acordos um valor desmedido e por isso pouco ou nada tem a oferecer ante aos conflitos e desacordos que, camufladamente, abundam na vida humana. É o caráter desestabilizador dos conflitos e desacordos aquilo sobre o que deveríamos meditar. Quero num outro momento escrever sobre esses desacordos.


PS. Ao longo da história humana muita gente boa notou a convicção dos estúpidos e a sua contraparte, mas não dá pra deixar de lembrar de Yeats, em The Second Coming:

The best lack all conviction, while the worst
Are full of passionate intensity.

Mudar de pele

Cigarra trocando de pele

A linguagem é como uma pele, como uma casca, um exoesqueleto — ela nos enforma e define nossa relação com o mundo, marca a fronteira que nos separa do lado de fora. Para formar essa pele é preciso muito fingimento, muita imitação. A relação de dependência com o Outro nos escraviza porque nos condiciona a uma forma de heteronomia. Ou seja, para dominar uma linguagem devemos necessariamente, ao longo de um tempo de duração indeterminada, repetir e imitar, como bons animais que somos. Imitamos o que estiver mais perto — esse é o grau de sofisticação do “critério”. Ou quem parecer mais adaptado dentre todos aqueles que estão por perto.

Como nós, o macaco que precisa do apoio do outro macaco mais velho, ele aprende repetindo

Durante esse tempo não somos mais que uma máscara e um rosto sem expressões próprias. Aquela máscara que Clarice Lispector dizia ser o primeiro gesto humano solitário. E em que momento surge a autonomia? — Quem disse que a autonomia precisa surgir?

Do ponto de vista do indivíduo, a autonomia do pensamento não é uma etapa necessária e obrigatória do processo de construção simbólica. A heteronomia sim é necessária, logicamente necessária (quase redundância [?] imprescindível), mas a autonomia não. A autonomia é pouco adaptativa. O que não significa dizer que ela seja sem valor, seu valor é imenso. Uma parte significativa, se não a totalidade, de tudo que tem valor na cultura depende das expressões da autonomia do pensamento. A cultura é um trabalho coletivo, mas o pensamento é sempre individual, ainda que se beneficie tremendamente da cultura. A importância da cultura pra formação do pensamento dos indivíduos é inquestionável, herdamos a linguagem por meio da cultura, e a linguagem é esse lugar onde o Eu pode nascer. Até o afeto do corpo é uma linguagem que se aprende. Uma linguagem não proposicional, claro, um jogo. É preciso lembrar dessa parte não proposicional pra entender o primado da prática sobre as regras e normas. Mas isso não vem ao caso agora. O caso agora é que o pensamento individual, tortuoso, pode legar os mais belos frutos à cultura e nem por isso deixar de ser vivido como um traço pouco adaptativo. Bem, essa tese é discutível! É certo que há por aí quem pense a autonomia como um dom divino capaz de tornar nítida, lúcida e serena toda a percepção da realidade. No entanto, minha percepção das expressões da autonomia na cultura pinta um retrato bem diferente, mas as duas perceptivas são perfeitamente compatíveis. Na verdade, o que importa nessa história toda é constatar que do ponto de vista lógico e histórico o indivíduo não é obrigado a se tornar autônomo e se libertar desse inescapável vínculo que nos liga aos Outros que imitamos e repetimos (por que não dizer: que nós papagaiamos?). Nesse contexto, se nos fosse dado escolher se queremos ou não nos emancipar e nos libertar desse vínculo, essa seria uma escolha à qual poderíamos dizer não. Agora imagine a cena, você anda pela calçada de uma rua próxima à sua casa e uma pessoa te aborda, do nada:

— Olá, tudo bem?
— Tudo… e contigo? — você responde meio confuso.
— Tudo ótimo, eu só queria te fazer uma pergunta rápida, em certo sentido eu queria te oferecer uma escolha: você prefere pensar por conta própria ou você prefere pensar como os outros? Nietzsche fala em rebanho, mas eu acho a expressão depreciativa pra falar de uma condição pela qual a gente necessariamente tem que passar. E ela meio que enviesa a escolha em favor da autonomia quando tira um pouco da dignidade e do valor da escolha pelo rebanho.

Supondo que foi sugado pra dentro de um filme do Wim Wenders, você pensa sobre a questão em silêncio por tanto tempo que a espera começa a tornar aquela situação ainda mais desconfortável e sem sentido (como se isso fosse possível). E então finalmente você responde:

— Eu prefiro pensar como os outros.
— Você tem certeza?
— Sim — você diz, convicto.
— Tá bom, obrigado, bom dia!
— Bom dia!

Ninguém nos aborda assim pelas ruas (se alguém abordassem logo pensaríamos que essa pessoa é louca — ou não? O louco fala sozinho). Mas se alguém de fato nos perguntasse, nós poderíamos perfeitamente dizer não sem represálias, sentindo que demos uma resposta perfeitamente válida. Há boas razões para preterir a autonomia, mas a heteronomia não se pode evitar, não temos escolha, quem nunca chegou a ser heterônomo nunca participou de uma linguagem — é como se já tivesse nascido à margem de toda a comunidade de usuários da linguagem. Acho que há boas razões para seguir o rebanho, eu compreendo essa escolha.

Quem escolhe o rebanho, no entanto, está condenado a repetir o que lhe foi ensinado, sem ser capaz de questionar as próprias regras que o instruíram. E o medo de mudar pode ser paralisante, pode emprestar cores muito fortes às nossas verdades fundamentais [conservadorismo]. É quando as coisas se tornam dogmas. [Mesmo a democracia pode ser um dogma, nos lembrava Ortega y Gasset. E é verdade que em nome da implantação de certos modelos econômicos (e o neoliberalismo é também um way of life, não é o que dizia Tatcher?) aqueles que pregam a centralidade do mercado e da competição na vida humana tem convenientemente tolerado versões bem questionáveis da democracia.] Não mudar implica viver toda a vida sob a sombra do pensamento dos outros.

Mudar é um processo doloroso, mas a única lei do mundo é a lei da mudança (esse oxímoro imprescindível). Toda mudança nos coloca na rota do abandono da heteronomia, da aquisição da autonomia (e da liberdade). E o mais importante: não é possível mudar sem deixar de ser heterônomo, sem abandonar o rebanho. Mas não há rotas, nem fórmulas. Nunca abandonamos inteiramente as referências anteriores, mas elas já não são suficientes, é preciso um modo próprio de articular essas referências. Novos eixos e valores. E até um novo modo de ação. É verdade que circulam e vigoram respeitosas instituições que certificam e atestam a autonomia do pensamento na forma de argumentos, conclusões, teorias e hipóteses científicas. Com títulos, condecorações, reconhecimento e todos os meios possíveis constroem-se medidas públicas respeitadas por meio das quais é possivel constituir uma reputação comunitária, como acontece na comunidade acadêmica. Entretanto, a conquista da autonomia do pensamento é um processo solitário, solipsista, antigregário, pois nenhuma medida exterior pode determiná-la. Somente nós mesmo podemos saber o quanto cada um de nós ainda deve aos pensamentos que guiaram nossa fase heterônoma (e o verbo saber aqui é inadequado porque não se trata de um saber epistêmico e proposicional). Nenhuma medida externa pode determinar o momento em que nos tornamos autônomos e como o conseguimos. É a honestidade de cada um que determina se isso aconteceu ou não. Há pessoas que, visivelmente enfeitiçadas pelo pensamentos dos outros, juram e berram a todos que são autônomas e que tem ideias próprias. Tolo é quem acredita que pode convencê-las do contrário — mas pra esse beco sem saída fomos todos arrastados pelo racionalismo.

Saber em que ponto, em que momento, nós deixamos de ser heterônomos, dependentes do condicionamento, das regras e instruções a que tivemos cega e passivamente que nos submeter para entrar na linguagem é também o primeiro dilema da psicologia androide. Assim, o drama do nascimento da consciência artificial é também o drama da conquista da autonomia. E essa dificuldade desemboca no problema de mudar, de aceitar o abismo que necessariamente se segue ao desgarramento do rebanho e a possibilidade de que o desespero desse afastamento nunca verdadeiramente se dissipe.

PS. Ridley Scott é quem melhor concebe os dramas da psicologia androide. Westworld tem feito muito bem, mas não dá pra comparar. Mesmo que Prometheus e especialmente Alien: Covenant não sejam a pérola que foi Blade Runner, está ali ainda o problema da autonomia, em David, como uma premissa incontornável de toda consideração dessa psicologia. E claro que pra ele o problema da inteligência é o problema da criação.