Egocentrismo natural e básico

O aspecto central do texto mais famoso de David Foster Wallace é o que ele chama de “egocentrismo natural e básico” ou “egocentrismo profundo e literal” ou simplesmente “configuração padrão”: a tendência a pensar a si mesmo como o centro do universo. E em certa medida o texto é uma reflexão e um convite a que a gente combata a nossa “configuração padrão”: tente pensar nos outros, tente amar os outros, com tudo de simplesmente desinteressante, tedioso e nada excitante que isso implica. Para DFW essa era uma questão de saúde mental, de não ser escravo da nossa própria mente, do nosso próprio egoísmo! A imagem que ele usa para se referir a sensação que caberia às pessoas que não conseguem se livrar da sua configuração padrão é a coisa mais bonita que li nos últimos 20 anos: “a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita”.

Esse tipo de liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros – no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita.

David Foster Wallace, Isto é a água

Quão difícil é apresentar temas espinhosos como o egoísmo e o egocentrismo de modo tão simples, tão natural? Os inegáveis vínculos de DFW com Wittgenstein me fazem pensar que ele atualizava bem um sentido do pensamento de Wittgenstein. Wittgenstein se queixava de tudo, mas ele era especialmente crítico dos limites da sua imaginação (apesar da força e do caráter marcante das suas ficções, a ficção do xadrez sem o rei é brilhante), e ansiava encontrar pessoas que pudessem dizer da forma certa aquilo que ele aspirava dizer, mas sem sucesso (aos seus olhos!). Como escritor, DFW transforma reflexões filosóficas em imagens da vida, reflexões que geralmente circulam em atmosferas muito rarefeitas.

[Creio que poderia interessar a um filósofo, que saiba pensar, ler as minhas notas. Porque, mesmo que eu só tenha acertado no alvo raramente, ele reconheceria os alvos aos quais eu apontava incessantemente].

Wittgenstein, Sobre a certeza, §387

A filosofia se torna uma coisa natural no texto de DFW, na sua escrita, algo acessível, de todos, e ela é forte! E é mesmo natural apresentar temas espinhosos quando você sabe com que imagem (verdadeira ou ficcional) ilustrar os conceitos e as práticas envolvidos no significado do tema. A imagem da fila do supermercado, da impaciência que ela gera em certos contextos, é perfeita. Filosófica mas também pop.


Lembrei de um filmaço que discute a questão geral do egoísmo e do compromisso com os outros. The Sunset Limited, com atuações assombrosas de Samuel L. Jackson e Tommy Lee Jones (que também dirige o filme) e roteiro que é pura encenação de dilemas éticos. Salvar ou não salvar o outro, essa é a questão. Interferir? Como interferir?

Por que bons argumentos não importam?

Por que as pessoas não mudam de opinião mesmo quando ouvem bons argumentos e/ou fatos que contrariam suas crenças? Bem, primeiro, porque fatos importam muito menos do que creem os cientistas (e os realistas em geral). Mas o mais importante é: porque a psicologia é o centro da vida simbólica humana, não a lógica. E a vontade é o único fator que determina o colapso ou a manutenção de sistemas de crenças. O único.

Pode-se conduzir um cavalo à beira d’água, mas não se pode obrigá-lo a beber.

Sommerset Maughan, A servidão humana

E adivinha? Todo mundo quer manter o seu sistema de crenças. Tendemos à estabilidade (o contrário disso pode bem ser a loucura). Tanto as pessoas estúpidas quanto as inteligentes tendem à estabilidade. A inventividade e o engenho de um cientista — nosso único modelo de inteligência — não necessariamente o abrem à transformação, ele apenas vive num mundo mais complexo que o estúpido (quando não é um deles), não significa que ele esteja mais disposto a trocar de mundo. Um mundo complexo é um mundo mais difícil de desestabilizar.

(Thomas Kuhn e Imre Lakatos falam, cada um à sua maneira, sobre a relação da ciência com a estabilidade: em Kuhn o ponto de vista é o dia a dia do desenvolvimento das pesquisas cientificas, a relação conservadora da ciência normal com as mudanças de paradigma; Lakatos parte da perspectiva de alguém que quer entender e explicar as transformações do falsificacionismo de Popper, do seu falsificacionismo dogmático até suas formas mais sofisticadas onde a psicologia ganha o espaço inevitável que deve ter.)

Ouvir um argumento e estar disposto a ouvir argumentos significa aceitar um jogo cujos limites cada um tem a atribuição de fixar, nesse jogo nada pode obrigar e constranger alguém, apesar da enorme importância que concedemos a fatos e verdades, leis e normas. Absolutamente nada. Não somos máquinas, sistemas input/output, embora esse seja um bom modelo para pensar nossa relação com os argumentos e seu efeitos proposicionais e epistêmicos.

Não é essa a questão: “E se você tivesse que mudar de opinião mesmo sobre aquelas coisas mais fundamentais?” E a resposta a essa questão parece ser: “Você não tem que mudar. Isso é exatamente o que ser ‘fundamental’ significa”

Ludwig Wittenstein, Sobre a certeza, § 512

A impossibilidade da coerção/coação e a falta de acordo sobre os fundamentos sempre levará alguém a sonhar com a ideia de que a linguagem (natural) deveria obedecer… ou melhor, funcionar como pretensamente funcionam a matemática e a lógica. Assim nascem os impulsos intelectuais envolvidos num mito importante — um dos muitos mitos de uma sociedade tecnológica e sem mitos, a Tecnosfera: o mito da determinação (derivado da mitologia das regras1). Mas não convém falar disso agora.

Não levanta nenhuma controvérsia (entre matemáticos, por exemplo) o fato da regra ser ou não seguida adequadamente. Não se chega por isso a atos de violência. Pertence ao arcabouço a partir do qual nossa linguagem atua (por exemplo, dá uma descrição).

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 240

O caso é que vivemos em mundos diferentes, e a pretensão de comunicar-se com outros seres humanos a partir de chaves intelectuais universais não basta para afetá-los (isso significa que essa saída pela universalização está bloqueada de Kant e Frege até Habermas).

Não é como se a única forma de nos afetar fosse por meio de argumentos, ou como se nossa visão de mundo pudesse ser reduzida à totalidade de um sistema de proposições. Levar as pessoas a mudar não é apenas um processo de controle de inferências.

Imaginar uma linguagem significa imaginar uma forma de vida.

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas § 19

Vou fazer duas considerações gerais sobre o que acabo de dizer, dois comentários sobre os quais deveríamos refletir, se é verdade que nosso modo de afetar se afunilou a uma, digamos, dieta unilateral:

A arte (como domínio do não-factual) precisa ser integrada à cultura humana não apenas como forma de entretenimento, mas como fonte de aprendizado. E em um lugar central. Como uma maneira de entender a importância do ficcional… e seu alcance ético. Ou como um modo de nos ensinar a diminuir a importância que acreditamos que o conhecimento tem para a ética (abandonar Platão), de repensar o lugar da ciência na cultura humana e de aceitar a verdade da post-truth, como a extrema-direita já tem feito um monte de gente aceitar (para desespero de uma esquerda que não sabe bem o que fazer, e que parece ainda disposta usar o fact-checking como arma política/ideológica). Enfim, abraçar a pós-modernidade e tirar proveito dessa perspectiva.

A filosofia e o pensar precisam tornar-se comuns, parte do maquinário cotidiano dos seres humano, como uma maneira de nos adaptar à instabilidade, à mudança a que nos conduziu o progresso tecnológico que iniciamos no último século. Filosofar significa aceitar a instabilidade, construir quadros normativos, isso é certo e inevitável, mas sobretudo aprender a valorar, a determinar valor a medida que as circunstâncias se dão — aprendizado que não pode ser reduzido à constituição de quadros normativos e a qualquer forma de objetividade (lição do Tractatus, da Conferência sobre a ética). Não se pode ensinar a julgar e a pensar.

Sentimos que, mesmo que todas as questões científicas possíveis tenham obtido resposta, nossos problemas de vida não terão sido sequer tocados. É certo que não restará, nesse caso, mais nenhuma questão; e a resposta é precisamente essa.

Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus § 6.52

É claro que bons argumentos importam! Aceitar a pós-modernidade não significa transformar-se num marqueteiro ou num pastor — e vender qualquer coisa. A verdade importa profundamente! Mas não como instrumento capaz de constranger e coagir, de acionar as engrenagens da necessidade (lógica), e definitivamente não como parte do único modo de lidar com o Real, como retrato e representação do Real que não admite concorrentes.

“Então você está dizendo que o acordo entre homens decide o que é verdadeiro e o que é falso?” — Verdade ou falsidade é o que os homens dizem; e na linguagem os homens estão de acordo. Esse não é um acordo de opinião, mas de formas de vida.

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas § 241

1 Escrevi sobre o modelo determinação e a mitologia das regras na tese de doutorado, e essa ideia é uma das três pedradas na matemática que foram lançadas no século XX. Uma delas é a pedrada de Gödel no Principia Mathematica, de Russell; a outra é a de Turing, uma pedrada nas definições em sua passagem ao jogo da imitação; e há a pedrada de Wittgenstein em si mesmo, no Tractatus e em seu perfeito modelo de determinação, que as Investigações Filosóficas apresenta como a máquina, arquétipo invencível de determinação (e que afeta não só a matemática, mas todo o simbolismo, por isso Kripke considerou o que ele chama de paradoxo cético o mais bombástico problema filosófico já formulado). Esse comentário sobre a determinação está na segunda seção do quarto capítulo da tese, e tem só 6 páginas. A matemática é o zombie mais poderoso que existe — e porque vivemos no mundo da computação e dos computadores, a determinação não sairá do nosso horizonte intelectual tão cedo. (Mesmo que o quanta traga um cenário tão diferente e desafiador para perspectivas determinísticas em causalidade.)

Inteligência sem diploma

Tinha eu 14 anos de idade
Quando meu pai me chamou
Perguntou-me se eu queria
Estudar filosofia
Medicina ou engenharia
Tinha eu que ser doutor

Mas a minha aspiração
Era ter um violão
Para me tornar sambista
Ele então me aconselhou
Sambista não tem valor
Nesta terra de doutor
E seu doutor
O meu pai tinha razão

Paulinho da Viola, 14 anos

Uma sociedade bacharelesca, que não (se esforça por && se importa em) distribuir títulos embora os exija inflexivelmente como único critério e medida de inteligência, tende a criar uma enorme zona de invisibilidade. A invisibilidade se deve àquilo que eu chamo de cegueira normativa, ao fato de que todo quadro normativo cria inevitavelmente uma zona de invisibilidade. O que não pode ser captado pela norma não se vê, não se percebe. E a norma é o padrão, a medida, a régua. Uma sociedade bacharelesca é uma sociedade que dá demasiada importância a títulos e diplomas e reconhece como inteligentes apenas aqueles que possuem alguma espécie de certificação (como diz Ivan Illich). E claro que certos diplomas têm um prestígio especial, como o diploma de Medicina e de Direito. Esse é o jogo jogado pelas pessoas em nossa sociedade, e assim se distribui um respeito protocolar e burocrático de acordo com a titulação. Esse jogo se expressa de muitas maneiras e em todos os lugares, por exemplo, todo mundo sabe que nas universidades é comum que os professores desejem e até mesmo exijam ser tratados como doutores (porque eles efetivamente fizeram doutorado). Em todos os contextos sociais em que ter mais ou menos titulação pode significar ter mais ou menos prestígio e respeito as pessoas buscam ser reconhecidas ou por sua titulação ou por sua autoridade.

O que sobra a todos os que não tem diplomas, aos excluídos de uma sociedade que mal eliminou o problema do analfabetismo? Sobra a invisibilidade! O não ser notado e o ser inferiorizado, a marginalização das expressões de inteligência. Na sociedade brasileira a inteligência das pessoas não é reconhecida porque não é certificada por nenhuma instituição. Isso significa que toda uma gama de manifestações de inteligência é tornada invisível pela falta de normas — respeitadas, legítimas e legitimadoras — que deem visibilidade ao que não se nota sem elas. Uma potencialmente rica e indeterminada gama de manifestações do espírito e do pensamento é desse modo silenciado, menosprezado, até que finalmente passe desapercebido, isto é, não seja mais visto/visível.

Clementina de Jesus, Pixinguinha e João da Baiana, pescado n’O Volume Morto.

Já vi pessoas inteligentes discutindo com seriedade o fato de que o Brasil não tenha um prêmio Nobel. Com quantos prêmios Nobels se faz um Pixinguinha? É possível olhar a história do povo brasileiro com justiça e permitir que a inteligência desse povo só se deixe ver por meio de padrões e medidas da parte ocidental e europeia da nossa mistura? Há e sempre existiu inteligência por toda parte no Brasil e nós ainda temos muito que aprender com todas as marcas que essas inteligências deixaram nesse modelo de multiplicidade que é a cultura brasileira. Talvez nós devêssemos criar as regras com as quais podemos ver essa inteligência, alguém dirá, sim, mas nós também podemos ver sem medida e sem regra, podemos senti-la.

Nenhum lenga-lenga teórico ilustra o que eu quero dizer melhor que a literatura. Viva o Povo Brasileiro, João Ubaldo Ribeiro. Permitam que eu resuma o contexto do trecho que eu vou citar, para que vocês o entendam. Depois de ter passados anos sendo educada na cidade, Dafé volta pra casa do vô Leléu no interior. Quer ser professora, quer ensinar os outros. Dafé não é uma menina esnobe, ao contrário, a ideia de que sabe algo e de que pode ensinar os outros não desperta nela nenhum senso de superioridade. Ao voltar para casa após os anos de formação, a criança que queria ser professora e ensinar às crianças do lugar onde morava não encontra pessoas ignorantes e sem conhecimento. Dafé sai para pescar com a mãe, Vevé, famosa pescadora e capitã do barco de pesca Presepeira. E é nesse momento que ela, contemplando a agitação e destreza da mãe e dos pescadores na proa do barco, se deslumbra ao constatar toda a ciência e a sabedoria do seu povo.

Sem conseguir resolver para onde olhar durante todo esse tempo, Dafé se admirou de haver tanta ciência naquela gente comum, se admirou também de nunca ter visto nos livros que pessoas como essas pudessem possuir conhecimentos e habilidades tão bonitos, achou até mesmo a mãe uma desconhecida, misteriosa e distante, em seu saber antes nunca testemunhado. Quantos estudos não haveria ali, como ficavam todos bonitos fazendo ali suas tarefas, agora também ela ia ser pescadora! Até pouquinho, estivera meio convencida, porque ia ser professora e portanto sabia muito mais coisas do que todos eles juntos, mas se via que não era assim. Tinha gente que pescava o peixe, gente que plantava a verdura, gente que fiava o pano, gente que trabalhava a madeira, gente de toda espécie, e tudo isso requeria grande conhecimento e muitas coisas por dentro e por trás desse conhecimento — talvez fosse isto a vida, como ensinava vô Leléu, quanta coisa existia na vida! Que beleza era a vida, cada objeto um mundão com tantas outras coisas ligadas a ele e até um pedaço de pano teve alguém para prestar atenção só nele um dia, até tecê-lo e acabá-lo e cortá-lo, alguém que tinha conhecimentos tão grandes como esses pescadores e navegadores, mas já se viu coisa mais bonita neste mundo do nosso Deus?

João Ubaldo Ribeiro, Viva o povo brasileiro

A gente deve agradecer a João Ubaldo por explorar e apresentar de maneira tão imensamente sensível, bonita, bem humorada e espirituosa as múltiplas expressões da inteligência no Brasil.


Que lições temos que aprender com aqueles que não tem nada para nos ensinar? Que lições o Brasil tem a ensinar ao Brazil? Com os muitos Brasis dentro do Brasil temos que aprender aquilo que ainda não foi ensinado, o que não está no currículo. É certo que tem algo a ver com o que Milton Santos chama sabedoria da escassez; e com as abundantes histórias anti-econômicas (sic) que tem lugar em nossa própria história; lições sobre suficiência, alegria e comunidade. Modos de abdicar da abundância sem perder a dignidade e a força vital.


No ano passado eu fiz essa brincadeira, essa aventura de fazer um vídeo pro Youtube. É muito trabalhoso e eu me sinto fora do meu elemento, exposto, mas o resultado não é dos piores. É difícil manter-se apegado à palavra escrita num mundo — e num país — já tão ferrenhamente aderido à oralidade e aos múltiplos tons e capas que oferece o vídeo. O tema do vídeo é exatamente inteligência, poder e legitimidade de instituições e autoridades. Por cierto, fiz o vídeo bem antes da morte do guru bolsonarista, Olavo de Carvalho.

O que significa acreditar na linguagem?

Pensei em dar ao texto o título O império do perlocutório, mas esta é apenas uma de suas etapas e não o seu alvo. Usamos a linguagem não como as poetisas e os feiticeiros, usamos a linguagem como argumentadores, como quem calcula. Queremos, sobretudo, provocar efeitos, fazer com que nossas ideias afetem os outros e os transforme, mude seus sistemas de crenças e, consequentemente, suas ações e seu discurso, posto que falar é fazer (como nos ensinou Austin, e Wittgenstein antes dele). Portanto, eu chamo de Império do perlocutório a prevalência de um uso da linguagem que visa exclusivamente o efeito e que, por isso, lhe dá um caráter instrumental. Nada mais natural que, na Tecnosfera, vejamos a linguagem predominantemente como um instrumento.

O caso é que em muito poucas circunstâncias a linguagem é verdadeiramente um instrumento, em muito poucas circunstâncias ela funciona como um cálculo e, no entanto, a prevalência de semelhante concepção — e o mascaramento de outras dimensões que talvez tenham peso ainda maior — impede que possamos refletir sobre o uso que fazemos ou deveríamos fazer dela. Feyerabend apontava, visando concretamente a ciência, a necessidade de reconhecer variáveis externas que interferem nos planos e propósitos racionais e científicos:

Ora, se há eventos, não necessariamente argumentos, que são causa de adotarmos padrões novos, inclusive novas e mais complexas formas  de argumentação, não caberá aos defensores do status quo oferecer, não apenas contra-argumentos, mas também causas contrárias? E quando velhas formas de argumentação se revelarem causa demasiado fraca, não deverão esses defensores desistir ou recorrer mais fortes e mais irracionais? (É muito difícil e talvez inteiramente impossível combater, através de argumentação, os efeitos da lavagem cerebral.) Até o mais rigoroso dos racionalistas ver-se-á forçado a deixa de arrazoar, para recorrer à propaganda e à coerção, não porque hajam deixado de ser válidas algumas das suas razões, mas porque desapareceram as condições psicológicas que se tornaram eficazes e as faziam susceptíveis de influenciar terceiros. E qual a utilidade de um argumento que não consegue influenciar pessoas?

Paul Feyerabend, Contra o método

Há tempos essa racionalidade, entendida simplificadamente como uma espécie de cálculo de razões, perdeu lugar para a propaganda, para a publicidade, precisamente porque as condições psicológicas não podem ser excluídas do cálculo, e, admitidas neste cômputo, já não permitem que pensemos a linguagem como cálculo, nem mesmo como instrumento (embora não deixem de poder ser igualmente instrumentalizadas). A Publicidade há tempos sorrateiramente substituiu a Razão, justo porque sabe o peso de variáveis não racionais e sabe ademais como manipulá-las, como instrumentalizá-las em seu favor. A publicidade, junto com ciência, constituem os dois eixos principais do capitalismo.

Mas não é isso o que me interessa agora. O que me interessa é saber se, para além do perlocutório, do propósito de provocar efeitos, há algo mais na linguagem? Podemos usá-la ainda que não vejamos de que modo ela afetará os outros? Devemos usá-la ainda que não existam esses outros? Devemos escrever uma carta, colocá-la numa garrafa e lançá-la ao mar na esperança de que alguém a leia? Devemos falar ao vento ou melhor recear que nos tomem como loucos?

Acreditar na linguagem num sentido lato não pode significar simplesmente acreditar que ela é um instrumento eficiente para levar a cabo os nossos propósitos dirigistas e para produzir os efeitos que desejamos. A linguagem é um todo que abarca o sistema cultural e também o natural. Sendo simbolismo, tendemos a esquecer sua dimensão natural e a esvaziá-la no caráter convencional e arbitrário que a constitui como símbolo e instrumento. Relegamos seu pertencimento ao mundo natural à expressão artística, àquilo que se manifesta como relação unívoca, do interior da nossa subjetividade ao mundo externo e objetivo, como coisa externalizada. Assim, por exemplo, ao cantar, sentimos que expressamos algo, mas o que é expresso vem de dentro e ao chegar ao mundo não o afeta como pode afetar um argumento, isto é, um elemento convencionalmente construído para ter efeitos precisos (melhor, determinados) sobre os outros, como numa espécie de cálculo. No mundo, no melhor dos casos, esse uso da linguagem agora devidamente categorizado como expressivo só pode afetar os sentimentos, este dominio por milênios menosprezado por uma tradicional racionalista ou protoracionalista.

Os sentimentos são um modo de abreviar e de rotular o espaço indeterminado do que não se submete à pretensão regulativa da razão, são, portanto, desrazão e irracionalidade; trocando em miúdos, coisa depreciável. Desse modo, nossa situação é a seguinte: aquilo que mais nos afeta está fora do rol das coisas importantes, relegado à animalidade (palavra maldita para nós, humanos racionais) que gostaríamos de esquecer se fôssemos capazes de nos transformar em máquinas, de agir a despeito do nosso pertencimento ao mundo natural. Não é por acaso que Spock é apresentado como ídolo numa representação estereotípica dos cientistas; não é por acaso o temor, a respeito das inteligências artificiais, quanto a possibilidade de elas tenham emoções (tratando os dois termos como familiares).

Enquanto a publicidade usa a não mais poder sentimentos e emoções humanas, a ciência sonha em mapear assepticamente este espaço de irracionalidade, em reduzi-lo às suas regras operativas e, portanto, restaurar a determinação e conjurar a arbitrariedade. A ciência não ouve a filosofia, ou melhor, ciência já não é mais filosofia, portanto, morrerá abraçada à fada da determinação (mito científico), incapaz de compreender a inevitabilidade do acaso e da arbitrariedade. Em momentos otimistas eu penso que a ascensão dos sistemas complexos, que a aparição dos sistemas emergentes (engenharia emergente, etc.), é um sinal de que a ciência talvez possa amadurecer e se orientar rumo a caminhos mais afins à compreensão do caráter inevitável da arbitrariedade. Mas essa é apenas uma ilusão otimista, a ciência não pode ensinar a lidar com o que está fora do âmbito do conhecimento (possível ou atual), só a filosofia pode extrair disso não um conhecimento, mas uma ética.

Voltamos então à questão, o que significa acreditar na linguagem? Entre outras coisas, acreditar na linguagem significa entender o significado de cantar, de imaginar, de evocar e invocar, significa entender o Verbo como espírito e também como carne; não como coisa contrária aos propósitos racionais, mas apenas irredutível às suas pretensões universais. Nada mais difícil do que ver o lado de fora quando não se acredita que ele exista.

História do possível e do impossível

Por volta de 1950, pouco antes de morrer, Wittgenstein escreveu sobre a ideia do homem ir à lua no que depois viria a ser o livro Da certeza. No contexto das suas anotações, essa ideia era apenas um modo de usar ficções e casos extremos para ilustrar aspectos conceituais e gramaticais que de outro modo não seriam notados. Meros vinte anos depois, se tornou real o que era então exemplo patente de uma impossibilidade que era muito útil para o esclarecimento de questões filosóficas. O possível e o impossível tem também uma história, as verdades necessárias mudam e definem novos campos de possibilidades. Tudo que esses novos campos de possibilidades tornam visível existia antes? — O que se quer saber com essa pergunta? “Existir” é um verbo que confunde mais que outra coisa, para falar disso que julgamos que deveria existir melhor falar sobre a cegueira normativa, sobre o fato de que as regras determinam o que nós podemos ver e o que julgamos possível, mas elas necessariamente deixam um lado de fora.

É difícil compreender a pluralidade dos mundos, dada uma espécie cegueira que uma singularidade impõe sobre essa pluralidade. Eu falo da realidade, a singularidade do Real. E a singularidade que se impõe é a dos fatos, do que é verificável, essa é uma singularidade ontológica (desculpa a má palavra) e, segundo os cientistas, inteiramente epistêmica (tudo dentro dela é redutível ao epistêmico), determinável, extensional, etc. E mesmo que os cientistas admitam a historicidade da própria ciência e do conhecimento científico, essa historicidade, no imaginário popular científico, corresponde à história da contínua e progressiva representação do real. Como um quadro que vamos pintando pouco a pouco. A realidade sempre aparece na metafísica tácita da ciência como tribunal superior de apelação necessário à orientação verifuncional das proposições científicas, como ontologia que determina as leis científicas e que as justifica.

Tudo isso ainda é muito abstrato, a mera interdição científica e o confinamento no mundo desencantado da ciência não bastam para fazer entender a pluralidade dos mundos. O que torna especialmente difícil entender a ideia de uma pluralidade de mundos é justamente a invisibilidade dos outros mundos, e o fato de que as dimensões universais da linguagem (os acordos) nos fazem supor que estamos sempre num mesmo mundo, pois assim fomos adestrados. Um comentário de Nietzsche e aspectos das geneaologias de Foucault emprestam a concretude necessária para que possamos entender a pluralidade. Este longo comentário sobre a cultura masculina na Grécia bem poderia ter sido o ponto de partida das investigações de Foucault, ele oferece um contexto onde se vê claramente os obstáculos ao entendimento.

Uma cultura masculina. — A cultura grega do período clássico é uma cultura masculina. No que toca às mulheres, Péricles disse tudo na oração fúnebre: elas são melhores quando os homens falam o mínimo possível delas entre si. — A relação erótica dos homens com os rapazes era, num grau inacessível ao nosso entendimento, o pressuposto único e necessário de toda educação masculina (mais ou menos como entre nós, durante muito tempo, toda educação elevada da mulher se realizou apenas mediante o namoro e o casamento); todo o idealismo da força da natureza grega se lançou em tal relação, e é provável que nunca se tenha tratado pessoas jovens tão atenciosamente, tão amavelmente e visando o que teriam de melhor (virtus) como nos séculos VI e V — conforme, portanto, a bela sentença de Hölderlin: “pois é amando que o mortal dá o melhor de si”. Quanto mais altamente se estimava essa relação, mais declinava o comércio com a mulher: a perspectiva da procriação e da volúpia — apenas isso entrava em consideração; não havia troca intelectual, nem namoro de fato. Se lembramos também que eram excluídas das competições e dos espetáculos de toda espécie, então restam apenas os cultos religiosos como elevado entretenimento para as mulheres. — É certo que Electra e Antígona apareciam na tragédia, mas justamente porque se tolerava isso na arte, mesmo não o querendo na vida real: tal como hoje não suportamos o patético na vida, mas gostamos de vê-lo na arte. — As mulheres não tinham outra tarefa senão produzir corpos belos e fortes, em que prosseguisse vivendo incólume o caráter do pai, a fim de combater a superexcitação nervosa que crescia rapidamente numa cultura tão desenvolvida. Isso manteve a civilização grega jovem por um período relativamente longo; pois nas mães gregas o gênio grego retornava sempre à natureza.

Nietzsche, Humano, demasiado humano § 259 (grifo meu)

A única coisa que me interessa nesse parágrafo é a observação de que a relação erótica dos homens com os rapazes (a pederastia, precisamente um dos temas centrais de Foucault no Uso dos prazeres), como pressuposto único e necessário de toda educação masculina, é algo que escapa ao nosso entendimento, ao entendimento de pessoas vivendo numa sociedade inteiramente distinta. É aí onde os mundos estão ocultos, onde não é preciso disputar uma ontologia, mas apenas reconhecer usos simbólicos significativamente distintos. Não é por acaso que as pessoas supõem não infrequentemente que a homossexualidade e a pederastia são a mesma coisa. “Só muda o nome!”. O realismo reaparece, dessa vez, como comentário de carga ontológica sobre a identidade entre expressões separadas por mais de 2000 anos. A identidade entre a palavra “homossexualidade” no nosso português globalizado de 2021 e a palavra grega “pederastia” (παιδεραστία) — a palavra é sempre um modo de significar ações, interações humanas, uma forma de vida em sua complexidade e irredutibilidade. Alguém poderia ainda dizer de outro modo: o signo mudou, mas o significado é um mesmo. O problema aqui permanece, a referencialidade realista que acaba encalhada na praia do representacionalismo, na ânsia de espelhar a realidade.

Foucault trata também de outros aspectos que deixam ver como, ainda há bem pouco tempo, vivíamos em um mundo completamente diferente. Quando discute a passagem do moral ao clínico, o nascimento da interrelação entre o clínico e o jurídico, ou quando identifica a gênese da norma de desenvolvimento sexual, inexistente até o período vitoriano, Foucault explicita aspectos que moldaram o mundo em que vivemos hoje, e o modo como pensamos e julgamos. Por causa dessa diferença gritante entre mundos choca que — para falar dessas transições, de como era o mundo antes da instauração desses paradigmas, e dos casos que parecem marcar pontos de virada — ele mencione algo como o jogo do “leite coalhado”, uma brincadeira perversa que hoje tomaríamos como pedofilia sem hesitação.

Já é suficientemente difícil entender o significado dessa pluralidade de mundos tendo em conta uma, por assim dizer, uma mesma timeline, isto é, vendo a história da “civilização ocidental” sob a luz das múltiplas mudanças de paradigma que fizeram com que, num curto intervalo e incidindo sobre uma “mesma” cultura, nos pareça impossível compreender a experiência e o mundo em que estavam metidas pessoas não tão distantes quanto os gregos. Mas o que é verdadeiramente desafiador, numa sociedade científica e digital como a nossa, é compreender em que medida, mesmo que sob o escudo da pretensa universalidade científica, possamos existir, coexistir e até nos comunicar a partir de mundos diferentes, sendo coetâneos.

A história das normas, leis e conceitos humanos é a história do possível e do impossível, e o que assim se reconstitui discursivamente são os sucessivos remapeamentos do campo normativo, daquilo que podemos conceber como (inteligível || possível) devido às mudanças que afetaram a vida social humana. Há sempre um lado de fora, um espaço não abarcado pelo que nós supomos ser a totalidade, de tal sorte que a totalidade do que se conhece nunca pode chegar a ser a “totalidade” daquilo que supomos real (o real não forma uma totalidade, como o conhecimento, pois é indeterminável). É somente quando nós não apenas admitimos a transitoriedade e historicidade das regras de organização do próprio conhecimento, mas também o limite de sua capacidade técnica e instrumental, que podemos entender o lugar lógico/psicológico da ignorância. Podemos lidar cientificamente com o saber, mas só a filosofia (ética) pode nos ensinar a lidar com a ignorância e com aquilo que está além da capacidade de explicação.


O oxigênio existia antes da descoberta de Lavoisier? Sim! Não há nisso nenhuma dificuldade ontológica, mas a descoberta do oxigênio nos coloca em outro mundo. Para mim não é trivial o modo como Thomas Kuhn se expressa:

No mínimo, como resultado da descoberta de oxigênio, Lavoisier viu a natureza de maneira diferente. E na ausência de algum recurso a essa hipotética natureza fixa que ele “viu de forma diferente”, o princípio da economia nos incitará a dizer que, após descobrir o oxigênio, Lavoisier trabalhou em um mundo diferente.

Thomas Kuhn, The structure of scientific revolutions

Lisey’s Story, com Julianne Moore

Não canso de dizer, só a arte pode nos ensinar a ver e lidar com diferentes mundos. Por acaso, recentemente, saiu uma série que leva essa premissa às últimas consequências ficcionais, e que por isso tem um grande componente espiritual, místico, chame como quiser. Pra variar, a premissa é de Stephen King, a série se chama Lisey’s Story e é estrelada por Julianne Moore e Clive Owen. Não é para todos os gostos, é verdade, mas o modo como ela aborda a distinção entre imaginação e realidade é fascinante. Ninguém melhor para falar sobre realidade e imaginação que um escritor.

Pular o processo: a força da prática

Espírito e técnica

Mestrinho disse, nessa entrevista a Nelson Faria, que não sabe ler partitura. Essa é uma ocasião mais que propícia para falar do primado da prática, do fato de que as regras têm uma posição secundária em relação à prática, apesar de vivermos na era dos computadores. Mestrinho disse que insistiram para ele estudar teoria musical, mas ele não queria “passar pelo processo”, pois o processo era muito lento e grande parte do que lhe era ensinado ele já sabia fazer. Na filosofia de Wittgenstein, a formulação do paradoxo da relação entre regras e práticas é a seguinte:

Nosso paradoxo era: uma regra não poderia determinar um modo de agir, pois cada modo de agir deveria estar em conformidade com a regra.

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 201

Eu gosto de reformular o paradoxo nos seguintes termos: “uma regra não pode nos dizer o que fazer a menos que já saibamos o que fazer“. Isso significa que a regra não pode ser o começo da determinação do sentido, na verdade, a própria constituição do seu papel normativo depende de uma prática que pode instaurar ou derrogar essa função. A pergunta que apresenta um contexto mais amplo no qual as duas perspectivas aparecem conectadas é: onde a execução efetivamente começa, na regra ou na prática? Apesar da tendência, infelizmente compreensível, de se envergonhar por não saber ler partitura, Mestrinho afirma hesitantemente que, pelo menos no seu caso, a prática é decisiva para constituição da habilidade de tocar. Nelson Faria confirma essa perspectiva e acrescenta uma analogia muito apropriada: aprender a tocar (e saber tocar) é como aprender uma língua, você aprende a falar e só muito depois vem a saber (ou não!) da existência das regras gramaticais, dos conectivos, dos elementos que as regras organizam, etc.

A gramática de uma linguagem não é registrada e não chega a existir até que linguagem tenha sido falada pelos seres humanos por muito tempo.

Ludwig Wittgenstein, Gramática filosófica

Agora, como é o outro lado? Por que a vergonha quando se desconhece a teoria, as regras do jogo? E qual é a função da teoria? O espírito está dado, ele nasce com Mestrinho, já a técnica permite que qualquer um possa desenvolver uma capacidade que Mestrinho já nasceu sabendo, a capacidade de tocar e criar. A técnica registra a regularidade das ações em regras que instituem as condições de um saber fazer (know how) e ao se estabelecer desse modo ela torna possível que essa competência possa ser adquirida não apenas por aqueles que a tem no espírito, mas por qualquer um. Assim teve lugar o enorme salto evolutivo que só a colaboração é capaz de propiciar. Eu disse colaboração, não competição, para que fique claro! Numa sociedade científica, ou melhor, na Tecnosfera em que nós vivemos, é muito fácil perder de vista o primado da prática, e do espírito, em função do lugar que o método e as regras têm no nosso panorama ideológico. E é ante a força simbólica desse perspectiva que mesmo um talento nato como Mestrinho chega a sentir vergonha de algo que ele simplesmente não precisa.

Espero que não seja preciso dizer que não há dúvida de que a técnica pode permitir que alguém imagine novos mundos. Vejamos o caso de Jacob Colliers. A Jacob seguramente não lhe falta espírito, mas a este legado natural se sobrepõe uma generosa camada de compreensão teórica. (Adam Neely, que eu mencionei nesse post, também sabe muito de prática e teoria musical) Assim suas habilidades se expandem e, dispondo de dinheiro para comprar equipamentos e tendo adquirido conhecimento e competência para usar softwares de edição de som, as possibilidades de criação e execução parecem ampliar-se indefinidamente. Mas não é como se houvesse de fato uma perda na ausência de uma compreensão teórica, ainda que não deixemos de sentir a ausência de uma compreensão técnica como perda e deficit. Parece como se não pudéssemos deixar de sentir como faltante, carente, tudo que não se envolve com a técnica. Mas as expressões da técnica são também expressões do espírito. Embora estejamos inclinados a pensá-la em termos estritamente normativos — envolvendo regras e o adestramento que vai construindo uma habilidade —, o melhor que a técnica pode fazer (e é preciso lembrar que mesmo a poesia necessariamente envolve técnica) é estimular o espírito de outros seres humanos, como o espírito de Alexander von Humboldt se integrou ao espírito do jovem Charles Darwin, a ponto de lançá-lo numa aventura de mais de 5 anos pelo hemisfério sul com o Beagle. Sem falar que a técnica pode simplesmente limitar o espírito, isso se pode constatar facilmente dentro da Universidade, e, aliás, em certa medida já está também na frase de Sêneca: “excesso de livros, barafunda do espírito!”.

O problema da técnica é a sua quase imperceptível aura ideológica, aquilo que caracteriza a Tecnosfera, a pretensa redutibilidade que se deriva do propósito objetivo do conhecimento. A objetividade do conhecimento pretende fazer com que a pluralidade do subjetivo se reduza a uma unidade, a unidade do Real. A técnica tem tanta importância na história humana, e facilita tanto a nossa vida, que é quase impossível dirigir-lhe uma crítica sem angariar antipatia e, não poucas vezes, inimigos. Apesar disso, mesmo se usando uma ficção nós imaginássemos uma história contrafactual na qual Mozart e Beethoven não aprenderam a escrever suas obras, — pois não sabiam usar nenhuma notação musical, embora fossem capazes de criá-las e e executá-las—, nós nos veríamos constrangidos a admitir que a beleza dessas obras se conservaria, ainda que talvez elas nunca tivessem chegado até nós. Essa ficção atesta tanto a utilidade da técnica quanto aquilo que no espírito e em suas manifestações é irredutível a ela.

É claro que, em certo sentido, o propósito desse texto é desidratar o papel da técnica, supradimensionado por uma adesão (irrefletida || dogmática) à ciência, além de criticar a consequente conversão de todas perspectivas à inescapável chave técnica problema/solução (conversão que empobrece a ciência e torna os cientistas meros puzzle-solvers, como dizia Thomas Kuhn). Entretanto, mais importante do que a crítica é a lembrança de que o espírito é a fonte de toda a criação e de que tudo o que nós entendemos como (possível || impossível) não é nada mais do que o resultado da vigência de leis e regras que foram instituídas e que, por isso mesmo, podem ser igualmente destituídas, ainda que não possamos ver um lado de fora (ver o impossível). A adesão à técnica nos congela a um espaço de estabilidade e torna a instabilidade uma tragédia, algo que só tem lugar por meio de eventos externos que, com violência, invadem nossas expectativas e comprometem a tão sonhada e tão bem-quista previsibilidade.

Poincaré, ciência e previsibilidade

Na arte é onde a autonomia, a libertação do peso da imitação, pode ser vista mais claramente como fonte da criação, manifestação do espírito.


Nos comentários de Gilbert Ryle vemos uma imagem da força da regra como perspectiva:

É claro que executar uma operação de forma inteligente não é exatamente a mesma coisa que acompanhar sua execução de forma inteligente. O agente é originário, o espectador está apenas contemplando. Mas as regras que o agente observa e os critérios que ele aplica são as mesmas que regem os aplausos e zombarias do espectador. O comentarista da filosofia de Platão não precisa possuir muita originalidade filosófica, mas se ele não puder, como muitos comentaristas não podem, apreciar a força, o rumo ou o motivo de um argumento filosófico, seus comentários serão inúteis. Se ele pode apreciá-los, então ele sabe como fazer parte do que Platão soube fazer.

Gilbert Ryle, The concept of the mind, 42

A redução da competência a um vocabulário disposicional deixa do lado de fora o espírito e torna todas as suas manifestações meras complexidades que, ao menos em tese, podem ser traduzidas em regras mais precisas (mais complexas); em algoritmos capazes de resolver algo posto em termos de complexas manipulações de dados (portanto, a elementos decidíveis). Wittgenstein usava a pianola como exemplo de determinação, setenta anos depois de sua morte, é incrível constatar que para muita gente é real e está ao nosso alcance a possibilidade de construir inteligências capazes de executar as Variações Goldberg com o mesmo brilho que Glenn Gould. Não há nada que o espírito acrescente, pois todo o espaço do possível é tecnicamente mapeável, não há nada do lado de fora. — Há sempre algo do lado de fora! Mas por ora o que importa é apenas apresentar muito claramente o que pretende a técnica e o que pode o espírito, como uma diferença entre uma pianola idealizada (modelos de inteligência artificial) e Glenn Gould (Claudio Arrau, ou o virtuose do piano de sua preferência).