Inteligência sem diploma

I

Tinha eu 14 anos de idade
Quando meu pai me chamou
Perguntou-me se eu queria
Estudar filosofia
Medicina ou engenharia
Tinha eu que ser doutor

Mas a minha aspiração
Era ter um violão
Para me tornar sambista
Ele então me aconselhou
Sambista não tem valor
Nesta terra de doutor
E seu doutor
O meu pai tinha razão

Paulinho da Viola, 14 anos

Uma sociedade bacharelesca, que não (se esforça por && se importa em) distribuir títulos embora os exija inflexivelmente como único critério e medida de inteligência, tende a criar uma enorme zona de invisibilidade. A invisibilidade se deve àquilo que eu chamo de cegueira normativa, ao fato de que todo quadro normativo cria inevitavelmente uma zona de invisibilidade. O que não pode ser captado pela norma não se vê, não se percebe. E a norma é o padrão, a medida, a régua. Uma sociedade bacharelesca é uma sociedade que dá demasiada importância a títulos e diplomas e reconhece como inteligentes apenas aqueles que possuem alguma espécie de certificação (como diz Ivan Illich). E claro que certos diplomas têm um prestígio especial, como o diploma de Medicina e de Direito. Esse é o jogo jogado pelas pessoas em nossa sociedade, e assim se distribui um respeito protocolar e burocrático de acordo com a titulação. Esse jogo se expressa de muitas maneiras e em todos os lugares, por exemplo, todo mundo sabe que nas universidades é comum que os professores desejem e até mesmo exijam ser tratados como doutores (porque eles efetivamente fizeram doutorado). Em todos os contextos sociais em que ter mais ou menos titulação pode significar ter mais ou menos prestígio e respeito as pessoas buscam ser reconhecidas ou por sua titulação ou por sua autoridade.

O que sobra a todos os que não tem diplomas, aos excluídos de uma sociedade que mal eliminou o problema do analfabetismo? Sobra a invisibilidade! O não ser notado e o ser inferiorizado, a marginalização das expressões de inteligência. Na sociedade brasileira a inteligência das pessoas não é reconhecida porque não é certificada por nenhuma instituição. Isso significa que toda uma gama de manifestações de inteligência é tornada invisível pela falta de normas — respeitadas, legítimas e legitimadoras — que deem visibilidade ao que não se nota sem elas. Uma potencialmente rica e indeterminada gama de manifestações do espírito e do pensamento é desse modo silenciado, menosprezado, até que finalmente passe desapercebido, isto é, não seja mais visto/visível.

Clementina de Jesus, Pixinguinha e João da Baiana, pescado n’O Volume Morto.

Já vi pessoas inteligentes discutindo com seriedade o fato de que o Brasil não tenha um prêmio Nobel. Com quantos prêmios Nobels se faz um Pixinguinha? É possível olhar a história do povo brasileiro com justiça e permitir que a inteligência desse povo só se deixe ver por meio de padrões e medidas da parte ocidental e europeia da nossa mistura? Há e sempre existiu inteligência por toda parte no Brasil e nós ainda temos muito que aprender com todas as marcas que essas inteligências deixaram nesse modelo de multiplicidade que é a cultura brasileira. Talvez nós devêssemos criar as regras com as quais podemos ver essa inteligência, alguém dirá, sim, mas nós também podemos ver sem medida e sem regra, podemos senti-la.

Nenhum lenga-lenga teórico ilustra o que eu quero dizer melhor que a literatura. Viva o Povo Brasileiro, João Ubaldo Ribeiro. Permitam que eu resuma o contexto do trecho que eu vou citar, para que vocês o entendam. Depois de ter passados anos sendo educada na cidade, Dafé volta pra casa do vô Leléu no interior. Quer ser professora, quer ensinar os outros. Dafé não é uma menina esnobe, ao contrário, a ideia de que sabe algo e de que pode ensinar os outros não desperta nela nenhum senso de superioridade. Ao voltar para casa após os anos de formação, a criança que queria ser professora e ensinar às crianças do lugar onde morava não encontra pessoas ignorantes e sem conhecimento. Dafé sai para pescar com a mãe, Vevé, famosa pescadora e capitã do barco de pesca Presepeira. E é nesse momento que ela, contemplando a agitação e destreza da mãe e dos pescadores na proa do barco, se deslumbra ao constatar toda a ciência e a sabedoria do seu povo.

Sem conseguir resolver para onde olhar durante todo esse tempo, Dafé se admirou de haver tanta ciência naquela gente comum, se admirou também de nunca ter visto nos livros que pessoas como essas pudessem possuir conhecimentos e habilidades tão bonitos, achou até mesmo a mãe uma desconhecida, misteriosa e distante, em seu saber antes nunca testemunhado. Quantos estudos não haveria ali, como ficavam todos bonitos fazendo ali suas tarefas, agora também ela ia ser pescadora! Até pouquinho, estivera meio convencida, porque ia ser professora e portanto sabia muito mais coisas do que todos eles juntos, mas se via que não era assim. Tinha gente que pescava o peixe, gente que plantava a verdura, gente que fiava o pano, gente que trabalhava a madeira, gente de toda espécie, e tudo isso requeria grande conhecimento e muitas coisas por dentro e por trás desse conhecimento — talvez fosse isto a vida, como ensinava vô Leléu, quanta coisa existia na vida! Que beleza era a vida, cada objeto um mundão com tantas outras coisas ligadas a ele e até um pedaço de pano teve alguém para prestar atenção só nele um dia, até tecê-lo e acabá-lo e cortá-lo, alguém que tinha conhecimentos tão grandes como esses pescadores e navegadores, mas já se viu coisa mais bonita neste mundo do nosso Deus?

João Ubaldo Ribeiro, Viva o povo brasileiro

A gente deve agradecer a João Ubaldo por explorar e apresentar de maneira tão imensamente sensível, bonita, bem humorada e espirituosa as múltiplas expressões da inteligência no Brasil.


Que lições temos que aprender com aqueles que não tem nada para nos ensinar? Que lições o Brasil tem a ensinar ao Brazil? Com os muitos Brasis dentro do Brasil temos que aprender aquilo que ainda não foi ensinado, o que não está no currículo. É certo que tem algo a ver com o que Milton Santos chama sabedoria da escassez; e com as abundantes histórias anti-econômicas (sic) que tem lugar em nossa própria história; lições sobre suficiência, alegria e comunidade. Modos de abdicar da abundância sem perder a dignidade e a força vital.


No ano passado eu fiz essa brincadeira, essa aventura de fazer um vídeo pro Youtube. É muito trabalhoso e eu me sinto fora do meu elemento, exposto, mas o resultado não é dos piores. É difícil manter-se apegado à palavra escrita num mundo — e num país — já tão ferrenhamente aderido à oralidade e aos múltiplos tons e capas que oferece o vídeo. O tema do vídeo é exatamente inteligência, poder e legitimidade de instituições e autoridades. Por cierto, fiz o vídeo bem antes da morte do guru bolsonarista, Olavo de Carvalho.

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