Helly na “Break Room”, série: Severance (Apple TV)
Há textos que mudam a vida da gente, ninguém é o mesmo depois de ter lido Dostoiévski, por exemplo. Dostoiévski apresenta situações que ou 1) você não conhece, às vezes nem sequer imagina, e aquilo te choca, ou 2) você as conhece e aquilo te redime. E eu gostaria de forçar as pessoas a lerem certos textos. Especialmente ensaios e aforismos.
Forçar literalmente, como no “Break room” de Severance (Apple TV), ou na famosa cena de Laranja Mecânica, obrigar (a ver && a ler), fazer ler compulsoriamente até que, quase que por osmose, o que estivesse dito ali pudesse ser entendido, sentido, integrado, imaginado. Um dos textos que eu obrigaria os outros a ler seria “Isto é água” (em PDF no Google Drive, pra quem quiser voluntariamente ler), de David Foster Wallace — até os átomos deste teclado sabem disso. Outro texto seria o de um amigo dele, Jonathan Franzen, “A dor não nos matará” (aqui também, em PDF no Google Drive). Um texto do livro Como ficar sozinho.
É um texto belíssimo, cheio de uma capacidade de ver as articulações entre o mundo eletrônico e nossa vida cotidiana, uma capacidade que todo mundo finge que tem — como fingiam aqueles que diziam ver a roupa nova do rei — mas que muito pouca gente tem de fato. O texto de Franzen trata de uma maneira bastante pessoal sobre o amor, suas dores e delícias, num mundo digital e globalizado, no qual parecemos estar conectados aos outros, mas cuja virtualização das conexões humanas mal disfarça a solidão e o distanciamento que correm por baixo da fachada simbólica da conectividade.
Quando ficamos trancados em nossos quartos, bufando, caçoando ou nos sentindo indiferentes, como fiz durante tantos anos, o mundo e seus problemas parecem desafios impossíveis. Mas quando saímos às ruas e temos relacionamentos reais com seres reais, ou mesmo animais reais, há o perigo bastante real de amarmos alguns deles. E então quem saberá dizer que rumo a vida tomará?
Jonathan Franzen, “A dor não nos matará”, Como ficar sozinho
Tinha eu 14 anos de idade Quando meu pai me chamou Perguntou-me se eu queria Estudar filosofia Medicina ou engenharia Tinha eu que ser doutor
Mas a minha aspiração Era ter um violão Para me tornar sambista Ele então me aconselhou Sambista não tem valor Nesta terra de doutor E seu doutor O meu pai tinha razão
Uma sociedade bacharelesca, que não (se esforça por && se importa em) distribuir títulos embora os exija inflexivelmente como único critério e medida de inteligência, tende a criar uma enorme zona de invisibilidade. A invisibilidade se deve àquilo que eu chamo de cegueira normativa, ao fato de que todo quadro normativo cria inevitavelmente uma zona de invisibilidade. O que não pode ser captado pela norma não se vê, não se percebe. E a norma é o padrão, a medida, a régua. Uma sociedade bacharelesca é uma sociedade que dá demasiada importância a títulos e diplomas e reconhece como inteligentes apenas aqueles que possuem alguma espécie de certificação (como diz Ivan Illich). E claro que certos diplomas têm um prestígio especial, como o diploma de Medicina e de Direito. Esse é o jogo jogado pelas pessoas em nossa sociedade, e assim se distribui um respeito protocolar e burocrático de acordo com a titulação. Esse jogo se expressa de muitas maneiras e em todos os lugares, por exemplo, todo mundo sabe que nas universidades é comum que os professores desejem e até mesmo exijam ser tratados como doutores (porque eles efetivamente fizeram doutorado). Em todos os contextos sociais em que ter mais ou menos titulação pode significar ter mais ou menos prestígio e respeito as pessoas buscam ser reconhecidas ou por sua titulação ou por sua autoridade.
O que sobra a todos os que não tem diplomas, aos excluídos de uma sociedade que mal eliminou o problema do analfabetismo? Sobra a invisibilidade! O não ser notado e o ser inferiorizado, a marginalização das expressões de inteligência. Na sociedade brasileira a inteligência das pessoas não é reconhecida porque não é certificada por nenhuma instituição. Isso significa que toda uma gama de manifestações de inteligência é tornada invisível pela falta de normas — respeitadas, legítimas e legitimadoras — que deem visibilidade ao que não se nota sem elas. Uma potencialmente rica e indeterminada gama de manifestações do espírito e do pensamento é desse modo silenciado, menosprezado, até que finalmente passe desapercebido, isto é, não seja mais visto/visível.
Já vi pessoas inteligentes discutindo com seriedade o fato de que o Brasil não tenha um prêmio Nobel. Com quantos prêmios Nobels se faz um Pixinguinha? É possível olhar a história do povo brasileiro com justiça e permitir que a inteligência desse povo só se deixe ver por meio de padrões e medidas da parte ocidental e europeia da nossa mistura? Há e sempre existiu inteligência por toda parte no Brasil e nós ainda temos muito que aprender com todas as marcas que essas inteligências deixaram nesse modelo de multiplicidade que é a cultura brasileira. Talvez nós devêssemos criar as regras com as quais podemos ver essa inteligência, alguém dirá, sim, mas nós também podemos ver sem medida e sem regra, podemos senti-la.
Nenhum lenga-lenga teórico ilustra o que eu quero dizer melhor que a literatura. Viva o Povo Brasileiro, João Ubaldo Ribeiro. Permitam que eu resuma o contexto do trecho que eu vou citar, para que vocês o entendam. Depois de ter passados anos sendo educada na cidade, Dafé volta pra casa do vô Leléu no interior. Quer ser professora, quer ensinar os outros. Dafé não é uma menina esnobe, ao contrário, a ideia de que sabe algo e de que pode ensinar os outros não desperta nela nenhum senso de superioridade. Ao voltar para casa após os anos de formação, a criança que queria ser professora e ensinar às crianças do lugar onde morava não encontra pessoas ignorantes e sem conhecimento. Dafé sai para pescar com a mãe, Vevé, famosa pescadora e capitã do barco de pesca Presepeira. E é nesse momento que ela, contemplando a agitação e destreza da mãe e dos pescadores na proa do barco, se deslumbra ao constatar toda a ciência e a sabedoria do seu povo.
Sem conseguir resolver para onde olhar durante todo esse tempo, Dafé se admirou de haver tanta ciência naquela gente comum, se admirou também de nunca ter visto nos livros que pessoas como essas pudessem possuir conhecimentos e habilidades tão bonitos, achou até mesmo a mãe uma desconhecida, misteriosa e distante, em seu saber antes nunca testemunhado. Quantos estudos não haveria ali, como ficavam todos bonitos fazendo ali suas tarefas, agora também ela ia ser pescadora! Até pouquinho, estivera meio convencida, porque ia ser professora e portanto sabia muito mais coisas do que todos eles juntos, mas se via que não era assim. Tinha gente que pescava o peixe, gente que plantava a verdura, gente que fiava o pano, gente que trabalhava a madeira, gente de toda espécie, e tudo isso requeria grande conhecimento e muitas coisas por dentro e por trás desse conhecimento — talvez fosse isto a vida, como ensinava vô Leléu, quanta coisa existia na vida! Que beleza era a vida, cada objeto um mundão com tantas outras coisas ligadas a ele e até um pedaço de pano teve alguém para prestar atenção só nele um dia, até tecê-lo e acabá-lo e cortá-lo, alguém que tinha conhecimentos tão grandes como esses pescadores e navegadores, mas já se viu coisa mais bonita neste mundo do nosso Deus?
João Ubaldo Ribeiro, Viva o povo brasileiro
A gente deve agradecer a João Ubaldo por explorar e apresentar de maneira tão imensamente sensível, bonita, bem humorada e espirituosa as múltiplas expressões da inteligência no Brasil.
Que lições temos que aprender com aqueles que não tem nada para nos ensinar? Que lições o Brasil tem a ensinar ao Brazil? Com os muitos Brasis dentro do Brasil temos que aprender aquilo que ainda não foi ensinado, o que não está no currículo. É certo que tem algo a ver com o que Milton Santos chama sabedoria da escassez; e com as abundantes histórias anti-econômicas (sic) que tem lugar em nossa própria história; lições sobre suficiência, alegria e comunidade. Modos de abdicar da abundância sem perder a dignidade e a força vital.
No ano passado eu fiz essa brincadeira, essa aventura de fazer um vídeo pro Youtube. É muito trabalhoso e eu me sinto fora do meu elemento, exposto, mas o resultado não é dos piores. É difícil manter-se apegado à palavra escrita num mundo — e num país — já tão ferrenhamente aderido à oralidade e aos múltiplos tons e capas que oferece o vídeo. O tema do vídeo é exatamente inteligência, poder e legitimidade de instituições e autoridades. Por cierto, fiz o vídeo bem antes da morte do guru bolsonarista, Olavo de Carvalho.
O amor é coisa do corpo, lição da filosofia de Carlos Drummond de Andrade. Ou de Manuel Bandeira? Aqueles que se importam com a posse e com a autoria que decidam quem é o autor da lição. Eu prefiro suspender o juízo e apreciá-la como algo de todos; aprendizado oriundo dessa comunidade — manifesta frequentemente em poetas e loucos (morbus sacer) — que é subterrânea e inconscientemente nossa, do conjunto de seres simbólicos (os polvos simbolizam?)
Amor é cheiro, é toque, é voz e pele; amor é cheiro, definitivamente! É lembrança sim — é memória e eudaimonia —, mas no corpo se vive, pois o corpo é a morada do espírito (da memória), de sorte que não há dicotomia. Amor é coisa de pele, e sobre a extensão da pele, essa fronteira entre mim e o mundo, os melhores e mais desejados estímulos bombardeiam freneticamente nosso sentir, o cheiro, o tato, o sabor, a visão.. sem esquecer a audição. Enquanto dura o infinito do gozo o amor é puro corpo, é encontro de corpos.
E mesmo nas relações onde o corpo não é tão central quanto na relação sexual, ainda assim o corpo é importantíssimo e talvez devesse ser resgatado. O carinho não é uma das grandes lições da música de Dominguinhos? O carinho se estende ao amor e à amizade. Há corpo também na amizade, há palavras e símbolos, mas há também afeto que nós animais, nós macacos, sempre comunicamos mais diretamente pelo corpo. O amor não é uma linguagem, não pode ser usado instrumentalmente, para propósitos (fins), é ligação direta — conexão. O que fazemos com isso que, não podendo ser instrumento, ainda assim é imensamente poderoso?
O dualismo de Bandeira e Drummond não é tão surpreendente quanto essa filiação ao corpóreo, pois é como se esperássemos desses senhores respeitosos e ilustres uma inclinação ao espírito (res cogitans), coisa não sujeita à corrupção, que não apodrece, mas é imortal e una. E como se da mortalidade do corpo só pudessem advir coisas inferiores, condenáveis e indesejáveis, não compatíveis com o sublime da poesia e do poético. No entanto, sabiamente eles não apenas preferem o corpo, como também nos ensinam, em seus pensamentos, a ver o que nele há de singular, além das oportunidades que oferece aos espíritos.
E a (desespiritualização && corporificação) do amor lança luz sobre outros fenômenos, por exemplo, sobre o que há de cinzento e irreparavelmente impreciso na distinção (útil) entre amor e sexo. Amor é também mucosa, saliva e suor, e como pode que não haja também amor numa vontade sincera de fazer gozar? Amor é comunicação sem linguagem, conexão fundamental sobre a qual todo o propósito radical de uso da linguagem deveria assentar (o propósito que pretende sugerir novos fundamentos e eixos), sob pena de, de outro modo, encontrar barreiras incontornáveis. Outra lição dessa prolífica escola de pensamento.
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma. A alma é que estraga o amor. Só em Deus ela pode encontrar satisfação. Não noutra alma. Só em Deus – ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo. Porque os corpos se entendem, mas as almas não
Curiosamente, estou lendo um livro, que me foi sugerido por um amigo, que trata justamente do modo como o corpo serve não de instrumento de comunicação, mas como meio de algo mais, de uma conexão que transcende o simbólico. O livro se chama El sabor de un hombre, da escritora croata Slavenka Drakulić. É fascinante!
Naqueles que o detém, o poder provoca quase inevitavelmente uma espécie de degeneração, algo que se pode chamar de corrupção pelo poder. A expressão me parece auto-explicativa, mas ainda assim admite, como qualquer expressão da linguagem, um novo modo de ser ilustrada, uma nova apresentação. A variedade de expressões de um conceito muito geral, como é o caso no conceito de poder, às vezes dificulta seu entendimento. Para ilustrar a generalidade de uma ideia usando símbolos — o fato de que ela parece mover-se entre coisas tão heterogêneas quanto os itens da enciclopédia chinesa — é invariavelmente melhor usar a literatura. E que melhor imagem do poder e do seu ônus que a história da corrupção de Sméagol?
Uma compilação que ilustra a transformação de Sméagol em Gollum no cinema.
O que é o poder? Em Senhor dos anéis, o símbolo do poder é o anel feito por Sauron para controlar os outros anéis do poder. O um anel é tão poderoso que em certa medida abriga a própria alma de Sauron e é como se contivesse sua presença. Como resultado, seus portadores sentem o peso de seu poder e pouco a pouco tem lugar uma transformação em suas personalidades, como se estivessem submetidos a outra vontade que não a do seu próprio ego. Tudo começou com Isildur, depois de ter conseguido arrancar o anel da mão de Sauron, ele hesita em lançá-lo no fogo de Mordor, decide tornar-se seu portador e convertê-lo em seu instrumento. Em pouco tempo Isildur está perdido e assim começa a história de dois dos seus mais importantes portadores, Gollum e Frodo Bolseiro.
A história dos portadores do anel é a história de sua contínua consumição pela presença maligna de Sauron, é como se o desejo do poder do anel gradativamente os convertesse em outros, submetendo sua vontade à vontade de Sauron. Mas só em Sméagol esse outro se materializa, por assim dizer, nele o outro torna-se Gollum. Sméagol era de uma raça que lembrava um hobbit, talvez fosse, diz o próprio Tolkien. Uma criatura pequena, ágil, mas que em nada se assemelha à detestável imagem de Gollum. O primeiro indicativo de sua corrupção é o assassinato de seu amigo Déagol, motivado pela disputa do anel. Daí em diante o anel se assenhora de Sméagol até torná-lo Gollum e, surpreendentemente, é Gollum quem se vangloria de possuir o anel. Sua psicologia se afunila a ponto de importar-se somente com o que concerne ao poder e o medo de perder seu precioso anel instala em sua cabeça a paranoia incompatível com laços de amizade e confiança.
É iluminador juntar a clara apresentação do poder em Tolkien às considerações de Étienne de la Boétie sobre o tirano e a tirania. Se uma persona aparentemente inofensiva como Sméagol pode transformar-se, pela influência corruptora do poder, na figura aviltante de Gollum, imagine então o que se pode dar no caso do sempre infame e pequeno Jair Bolsonaro. Bem, infelizmente já sabemos no que isso pode dar. As observações de La Boétie continuam precisas mesmo quase 500 anos depois de terem sido escritas:
Quando um rei se declara tirano, tudo quanto é mau, a escória do reino (não me refiro aos larápios e outros desorelhados que no conjunto da república não fazem bem ou mal algum), os que são ambiciosos e avarentos, todos se juntam à volta dele para apoiarem-no, para participarem do saque e serem outros tantos tiranetes logo abaixo do tirano.
Étienne de la boétie, discurso sobre a servidão voluntária
Difícil encontrar uma descrição mais apropriada de tudo que orbita ao redor de Bolsonaro. Assim também se representa a sedução do poder, sua capacidade atrativa, a atmosfera que se instaura em seu entorno e a constelação de interessados/interesseiros que mobiliza, todos eles figuras patéticas e já previamente corrompidos pelas promessas do poder.
Os que giram em volta do tirano e mendigam seus favores, não se poderão limitar a fazer o que ele diz, têm de pensar o que ele deseja e, muitas vezes, para ele se dar por satisfeito, têm de lhe adivinhar os pensamentos. Não basta que lhe obedeçam, têm de lhe fazer todas as vontades, têm de se matar de trabalhar nos negócios dele, de ter os gostos que ele tem, de renunciar à sua própria pessoa e de se despojar do que a natureza lhes deu.
Étienne de la boétie, discurso sobre a servidão voluntária
Isso não traduz muito bem tudo em seu governo, especialmente a atitude em relação ao Ministro da Saúde? Aliás, o Porta dos fundos fez um vídeo em que tudo isso se representa de maneira cômica. A exigência de uma obediência incondicional, a anulação da mais mínima pluralidade em nome de uma adesão cega a ideias notoriamente estúpidas, está tudo aí. Depois de um tempo, mesmo os estúpidos são capazes de enxergar a estupidez, e se não se afastam do governo (como é o caso dos militares) é porque lhes fascina o poder, porque são criaturas vis cujas almas degeneraram-se complemente até torná-los presenças tão ignóbeis quanto a do próprio Gollum.
Sobre os tiranos convém registrar uma última observação de La Boétie:
A verdade é que o tirano nunca é amado nem ama. A amizade é uma palavra sagrada, é uma coisa santa e só pode existir entre pessoas de bem, só se mantém quando há estima mútua; conserva-se não tanto pelos benefícios quanto por uma vida de bondade. O que dá ao amigo a certeza de contar com o amigo é o conhecimento que tem da sua integridade, a forma como corresponde à sua amizade, o seu bom feitio, a fé e a constância. Não cabe amizade onde há crueldade, onde há deslealdade, onde há injustiça. Quando os maus se reúnem, fazem-no para conspirar, não para travarem amizade. Apóiam-se uns aos outros, mas temem-se reciprocamente. Não são amigos, são cúmplices.
Étienne de la boétie, discurso sobre a servidão voluntária
O poderoso se encanta com o próprio poder e logo já não sabe medir o mundo senão com sua própria medida, por isso o poder e a tirania andam juntos. É fácil (auto) investir-se de legitimidade quando se crê patologicamente em seu próprio poder.
A corrupção pelo poder não é nada mais que a distorção de uma auto-imagem. Distorção não parece a palavra mais adequada, porque ela nos faz pensar que há um objeto real, verdadeiro, não ilusório, em relação a qual podemos determinar objetivamente o que é uma distorção. Não há nada disso! Distorção é apenas uma expressão usada pra fazer entender o sentido de uma ideia. Falando em termos genéricos, a distorção é a alteração da percepção de algo ou alguma coisa pela presença de outra coisa. Não é preciso ter um parâmetro original para determinar o que é verdadeiro e o que é falso, basta pensar a distorção como uma relação, como elo que envolve duas coisas (não importa determinar o que elas sejam para entender a ideia). Uma relação entre algo e outra coisa que o distorce. Você não precisa ter um exemplo, sei lá, da relação entre os gases e nossas percepções visuais, ou sonoras, para entender a relação funcional entre uma coisa e outra coisa que altera o modo como essa primeira é percebida. A distorção envolve sempre uma percepção. No caso do poder, a percepção de si mesmo. O poder distorce a imagem que cada um faz de si mesmo, corrompe essa imagem. Não há tendência mais comum, numa sociedade orientada ao indivíduo, do que as distorções da auto-imagem.
A participação no poder é um elemento indispensável na criação, na emancipação, no florescimento de todo o ser humano, como bem sabem todos aqueles que lutam por partilhar o poder, por fazer sentir que também participam do poder mesmo os mais vulneráveis e sujeitos à arbitrariedade. Aretha Franklin e Nina Simone não cansam de lembrar, de gritar com firmeza para que os jovens negros não se esqueçam que são young, gifted and black. All power to all the people, como enfatiza Spike Lee em BlacKkKlansman. O poder não é um demônio a ser evitado, ele atravessa também tudo que é bom e belo. Mas o ensimesmamento, o encerrar-se em si mesmo do poderoso torna-o insensível aos outros e a tudo que não seja espelho.
Xerxes é um bom exemplo de um certo modo de lidar com o poder. Um conquistador do mundo, se encontrasse um homem agourento, poderia matar a ele e ao seu filho — é o que conta Nietzsche. Matava pessoas como quem mata moscas, porque era muito importante pra ser preocupar com o destino de um sujeito qualquer. Como todo homem poderoso Xerxes acreditava que era o próprio poder, pensava a si mesmo como o portador do poder, ou melhor dizendo, agia como se fosse. Os jogos nos quais um poder simbólico se constitui são imensamente importantes, mas os poderes (simbólicos ou não) não se constituem nesses jogos. A fonte do poder não está no tempo, ou melhor, não está na cadeia causal (logo temporal), embora suas manifestações se expressem temporalmente (logo causalmente). Todo portador do poder, ganancioso, insatisfeito com seus limites, alterará a si mesmo de modo a conseguir conter o máximo possível de poder. Seu ideal, sua meta, era ter para si a totalidade do poder. Na falta dessa opção, lhe satisfaz o máximo de poder possível.
Não passa pela cabeça dos que anseiam todo o poder do mundo a possibilidade de uma relação diferente com o poder que não seja a de portador, possuidor, dono, senhor, mestre, etc. Cada portador tem um limite que o impede de experimentar todo o poder e que condiciona sua força. A totalidade do poder, no entanto, está integralmente disponível para quem não está interessado em portá-lo como um dono, para quem está livre da tentação da tirania e para os tem uma relação saudável com a arbitrariedade. Isso significa participar do poder e não meramente instrumentalizá-lo, canalizá-lo em favor de seus propósitos. Assim se manifesta nos encantamentos, na magia, na psicologia das massas e numa infinidade de outras ocasiões uma força amorfa e de magnitude incomensurável. O poder tem uma dimensão holística incompatível com as pretensões egocêntricas e com anseios de instrumentalização dos ambiciosos e enquanto estes insistirem em tentar abarcá-lo como um todo seguirão corrompendo-se como se estivessem possuídos por um demônio e já pudessem mais distingui-lo de si mesmos.
A ficção e a fantasia podem ensinar mais sobre o (dito) mundo real do que muitos propósitos analíticos e suas pretensões abstratas e universais.
Há poucos escritores mais vitais e organicamente profundos que David Henry Thoreau. Seu texto é tão forte e natural quanto a respiração de um jovem gorila de costas prateadas. Sem falar na beleza. O que não significa que seja, por isso, acessível, embora límpido e cristalino como as águas do lago Walden. Não poucas vezes o fluxo do seu pensamento é torrencial e as ideias requerem atenção redobrada. Deixo aqui este fragmento ao qual me sinto inclinado a voltar por tantas vezes e por muitas razões. Ainda que o fragmento tenha muitos aspectos fascinantes, a confissão final talvez seja o que mais me atrai — pelo que ela tem de serena, apenas do seu teor.
Eu quero a flor e o fruto de um homem; que alguma fragrância flutue dele até mim, que alguma doçura dê sabor a nosso contato. A bondade dele não deve ser um ato parcial e transitório, mas um transbordamento constante, que não lhe custa nada e do qual ele não se apercebe. É uma caridade que encobre uma multidão de pecados. Demasiado amiúde o filantropo cerca a humanidade com uma atmosfera composta pela lembrança de suas próprias dores superadas, e ele dá a isso o nome de solidariedade. Devíamos compartilhar nossa coragem, não nosso desespero, nossa saúde e nosso bem-estar, não nosso mal-estar, e cuidar para que este não se espalhe por contágio. De que planícies do sul se elevam as vozes da lamentação? Em que latitudes residem os pagãos a quem enviaremos a luz? Quem é o bruto e intemperado que redimiremos? Se alguma indisposição ataca um homem e ele não faz suas necessidades, se sente dor nos intestinos – pois aí fica a sede da solidariedade –, imediatamente ele se põe a reformar – o mundo. Sendo um microcosmo, ele descobre – e é uma autêntica descoberta, e ele é o homem certo para fazê-la – que o mundo anda comendo maçãs verdes; a seus olhos, de fato, o próprio mundo é uma grande maçã verde, e há o perigo, medonho só de pensar, de que os filhos dos homens lhe deem uma mordida antes que esteja madura; e sua drástica filantropia se estende incontinenti aos esquimós e aos patagônios, e abraça as populosas aldeias indianas e chinesas; e assim, com alguns anos de atividade filantrópica, enquanto isso os poderes políticos certamente utilizando-o para seus próprios fins, ele sara de sua dispepsia, o globo adquire uma leve cor numa ou nas duas faces, como se estivesse começando a amadurecer, a vida perde seu travo e volta a ser doce e saudável viver. Nunca sonhei com nenhuma enormidade maior do que cometi. Nunca conheci, e nunca conhecerei, homem pior do que eu mesmo.
Há aspectos que unem misteriosamente pessoas bem diferentes. Ainda que elas não tenham nenhuma proximidade ou influência umas sobre as outras. A ideia do “contemporâneo” em literatura tem me fascinado, mas os contemporâneos são tremendamente diferentes uns dos outros. O que nos permite colocá-los num mesmo grupo é uma semelhança de família, não o pertencimento a uma classe que possui atributos comuns. É preciso um outro modo de entender conceitos para compreender o modo com esses autores são reunidos, um modo wittgensteiniano.
David Foster Wallace é um desses contemporâneos. Numa entrevista publicada no Youtube ele faz algo curioso, ele expõem suas ideias e depois pergunta à entrevistadora: “isso faz sentido pra você?” Embora fosse um sujeito articulado e cuidadoso na escolha das palavras, Wallace repete a pergunta uma ou duas vezes ao longo desse curto vídeo. Parece insegurança de quem não sabe como dizer, mas não é. Há muitos modos de dizer e o mais importante numa comunicação é saber se o que foi dito tem sentido, se logramos dar sentido às palavras de tal modo que o outro possa entendê-las. Concordar ou saber se o que se diz é verdadeiro ou falso é completamente secundário.
Para nós que vivemos numa sociedade científica, isso é especialmente difícil de compreender. Entender que a determinação do verdadeiro e do falso depende de que antes se entenda o sentido do que se diz. Estamos tão costumeiramente apressados refutando consequências que não nos agrada que esquecemos de nos certificar que verdadeiramente entendemos o que é dito. Em realidade, não poucas vezes a refutação categórica é apenas um modo de mascarar a falta de entendimento, uma estranha forma de disfarce, como a roupa do rei. Rechaçamos para não confessar que não entendemos, para esconder nossa “falha”. É como se todas as pessoas tivessem que entender tudo, o tempo todo, pois de outro modo serão vistas como burras ou incompetentes. Assim, dizer que não entendeu vira um tabu, e alguém pode se surpreender ao constatar que a astúcia de esconder a falta de entendimento predomina mesmo em ambientes acadêmicos, onde supostamente deveria prevalecer a honestidade. Dizer algo com sentido é um compromisso de comunicação que David Foster Wallace demonstra; exige esforço, sensibilidade e ajustes constantes do que se diz. A dinâmica de uma conversa tende a não favorecer quem escuta, porque sobre essas pessoas pesa o ônus de entender — ou de confessar não ter entendido, esse tabu. É fácil e conveniente esconder o que se diz (ou se quer dizer) na neblina de frases com o sentido vago e/ou obscuro, todos sabemos disso.
No entanto, o primado do sentido coloca outra dificuldade, outro desafio para nós que suspeitamos da neblina dos discursos que não entendemos: certas coisas precisam ser ditas de um modo não convencional, de tal sorte que o entendimento se vê dificultado pela novidade do dizer. Nesses casos, é difícil distinguir aqueles que dizem o novo por necessidade daqueles que meramente obscurecem a linguagem para enganar. E aqui mais uma vez nossos hábitos científicos atrapalham, a crença na universalidade do método e instrumentos científicos fazem supor que “tudo o que pode ser dito pode ser dito claramente” (como está escrito no Tractatus Logico-Philosophicus). Como se a linguagem não fizesse mais do que representar fatos. É difícil compreender as necessidades do dizer quando se crê que tudo que se pode dizer é representação verdadeira ou falsa. E por isso também a literatura (como expressão da arte) tem tanto a nos ensinar, quem dera fossemos pessoas dispostas a aprender essas lições.
Falando em máscaras e atitudes inconscientes, lembrei desse comentário de Nietzsche:
Motivo do ataque — Não se ataca apenas para fazer mal a alguém, para derrotá-lo, mas talvez simplesmente para tomar consciência da própria força.