Aforismos sobre amizade e máscaras

Podia ter escolhida uma máscara melhor, não? É que as máscaras tem muitos propósitos, como encenar ferocidade e instilar medo. (Uma máscara Oni?)

Escolher a própria máscara é o primeiro gesto voluntário humano. E solitário.

Clarice Lispector, “Persona” em A descoberta do mundo

A amizade é (o ambiente && a atmosfera) em que nos sentimos à vontade para ser quem somos: agimos espontaneamente, abandonamos armas e máscaras, e tentamos descobrir quem nós realmente somos… Estar à vontade perto de seres humanos é difícil, somos perigosos! Somos os animais mais perigosos que existem, de longeeee! Podemos chamar de “encontro” quando nos sentimos bem perto de outros seres humanos a ponto de baixar a guarda e tentar descobrir quem somos — encontros são bonitos e raros, são formadores! São as pessoas perto de quem nos sentimos à vontade para estar sem máscaras que nos ensinam quem nós somos! Até lá, somos apenas a máscara.


Amizade como extensão de nós mesmos — A amizade nos ensina sobre a nossa identidade, sobre quem nós somos por trás das máscaras, mas ensina também a nos tornar outros, absorver coisas dos outros, quase por osmose. Mudamos sob a influência dessas pessoas com quem nos conectamos: lemos outras coisas, escutamos outras coisas, prestamos atenção num mundo ligeiramente diferente, ou totalmente diferente. Amigos e amigas são postos avançados de nós mesmos, estamos assim em muitos lugares, temos muitos olhos e espíritos.

Tempo de correção

Um escritor medíocre deve tomar cuidado para não substituir rapidamente uma expressão grosseira e incorreta por uma correta. Ao fazer isso ele mata a ideia original, que ainda era pelo menos uma muda viva. E agora está murcha e não vale mais nada. Ele agora pode muito bem jogá-la no lixo. Enquanto que a lamentável muda ainda tinha uma certa utilidade.

Wittgenstein MS 138 (eu sou o culpado pela tradução)

É curioso pensar que há um tempo para corrigir, um tempo de correção, que a correção nem sempre deve ser imediata, e que essa pode ser a diferença entre um escritor medíocre e um bom escritor de acordo com Wittgenstein: um bom escritor sabe dar bom uso às más expressões, sabe cultivá-las no tempo apropriado. É como se ele dissesse: cada caminho entre o incorreto e o correto tem seu tempo, e esse percurso deve ser percorrido no tempo certo, nem um segundo a mais ou a menos. São incontáveis as maneiras de mostrar como no pensamento de Wittgenstein o tempo vai se tornando elemento fundamental da lógica da linguagem — até o ponto de já não podermos mais separar lógica e psicologia [o começo da psicologia androide]. E é interessante constatar que a complexificação originada pelo tempo, pelo acontecer, é como uma espécie de nascedouro do psicológico, daquilo que não pode ser reduzido às normas e quadros normativos (lógica).

Egocentrismo natural e básico

O aspecto central do texto mais famoso de David Foster Wallace é o que ele chama de “egocentrismo natural e básico” ou “egocentrismo profundo e literal” ou simplesmente “configuração padrão”: a tendência a pensar a si mesmo como o centro do universo. E em certa medida o texto é uma reflexão e um convite a que a gente combata a nossa “configuração padrão”: tente pensar nos outros, tente amar os outros, com tudo de simplesmente desinteressante, tedioso e nada excitante que isso implica. Para DFW essa era uma questão de saúde mental, de não ser escravo da nossa própria mente, do nosso próprio egoísmo! A imagem que ele usa para se referir a sensação que caberia às pessoas que não conseguem se livrar da sua configuração padrão é a coisa mais bonita que li nos últimos 20 anos: “a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita”.

Esse tipo de liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros – no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita.

David Foster Wallace, Isto é a água

Quão difícil é apresentar temas espinhosos como o egoísmo e o egocentrismo de modo tão simples, tão natural? Os inegáveis vínculos de DFW com Wittgenstein me fazem pensar que ele atualizava bem um sentido do pensamento de Wittgenstein. Wittgenstein se queixava de tudo, mas ele era especialmente crítico dos limites da sua imaginação (apesar da força e do caráter marcante das suas ficções, a ficção do xadrez sem o rei é brilhante), e ansiava encontrar pessoas que pudessem dizer da forma certa aquilo que ele aspirava dizer, mas sem sucesso (aos seus olhos!). Como escritor, DFW transforma reflexões filosóficas em imagens da vida, reflexões que geralmente circulam em atmosferas muito rarefeitas.

[Creio que poderia interessar a um filósofo, que saiba pensar, ler as minhas notas. Porque, mesmo que eu só tenha acertado no alvo raramente, ele reconheceria os alvos aos quais eu apontava incessantemente].

Wittgenstein, Sobre a certeza, §387

A filosofia se torna uma coisa natural no texto de DFW, na sua escrita, algo acessível, de todos, e ela é forte! E é mesmo natural apresentar temas espinhosos quando você sabe com que imagem (verdadeira ou ficcional) ilustrar os conceitos e as práticas envolvidos no significado do tema. A imagem da fila do supermercado, da impaciência que ela gera em certos contextos, é perfeita. Filosófica mas também pop.


Lembrei de um filmaço que discute a questão geral do egoísmo e do compromisso com os outros. The Sunset Limited, com atuações assombrosas de Samuel L. Jackson e Tommy Lee Jones (que também dirige o filme) e roteiro que é pura encenação de dilemas éticos. Salvar ou não salvar o outro, essa é a questão. Interferir? Como interferir?

Um conceito positivo de post-truth

É inacreditável a quantidade de assuntos complexos que um meme pode apresentar com simplicidade e humor

É possível usar o conceito de post-truth de modo não descritivo, usar o conceito para apresentar uma perspectiva, ao invés de descrever — como quem convenciona um padrão de medida. Nesse contexto, a post-truth significaria reconhecer que o real, o conjunto indeterminado do que existe (e também o que não existe, pois o real inclui também o símbolo, e não apenas o ôntico e ontológico), contém mais do que elementos descritíveis; significa também reconhecer que a verdade — por mais importante que seja — tem um papel secundário, ou deveria, já que qualquer hipotética totalidade do conhecimento nunca coincidiria com os limites do real, pois o Real, ao contrário do conhecimento, não tem limites. O conhecimento precisa de limites, precisa pensar totalidades, precisa de regularidades, enquanto que o Real — o sentido entendido como coisa mais além do fato, da verdade, do objetivo, do não ficcional, do verídico, do verificável — esse não é regular nem forma totalidades, ele é o caos (indeterminação) a partir do qual toda regularidade se cria por intervenção de uma inteligência. Essa linguagem que tenta agarrar o real é muito mais do que o instrumental científico em toda a sua glória e esplendor.

É claro que o real é também indescritível e não apenas o conjunto dos fatos conhecidos (e possíveis), mas muita gente acha que o indescritível “não existe”, que o indescritível é tão somente aquilo que ainda não foi descrito, o ainda desconhecido. Essas pessoas acham que o indescritível do qual fala o místico, por exemplo, é apenas uma grande sombra projetada pelo fogo de um conhecimento ainda incipiente, e quando o lume desse conhecimento estiver por toda parte as superstições desaparecerão, não haverá mais o místico e tudo aquilo que é relegado à condição de lenga-lenga por não ser objetivo como o trabalho científico.

A hipertrofia do conhecimento e da verdade tende a tornar a ciência uma espécie de buraco negro que a tudo engole. Tudo se transforma numa hipótese a ser refutada ou confirmada. O real, nesse contexto, é um mapa em construção, algo que a ciência tenta espelhar por meio de suas teorias e instrumentos (o representacionalismo ainda é a metafísica da ciência). Assim, todas as perspectivas sobre o real são teorias sobre o real, variações da hipótese de Sapir-Whorf. A linguagem cria sim a realidade, mas essa não é uma hipótese a ser provada, mas o sentido de uma perspectiva e de uma atitude frente ao real.

A pretensão descritiva da ciência tem uma centena de efeitos fascinantes e desejáveis, mas seu efeito colateral consiste em nos enclausurar num mundo onde tudo é um problema técnico passível de ser contornado por futuras descobertas; onde o político é um artefato obsoleto destinado a ser suplantado por tecnologias vindouras. Nesse sentido, a lembrança evocada pelo meme acima de que algo (ou melhor, quase tudo) escapa ao propósito ordenador da linguagem é muito interessante. Somente quando escapamos à armadilha de pensar que o mundo se reduz aos nossos constructos simbólicos podemos criar um modo de agir menos marcado pela nossa húbris tecnológica, mais ajustado ao planeta e ao nosso necessário pertencimento a ele.

Suficiência e sobriedade

Eu escrevo na condição de uma pessoa completamente vendida ao capitalismo, como alguém doentiamente vaidoso, que aprecia sem reservas todas as experiências e serviços, os sabores e gostos, as texturas, os mimos, todas as delícias e os confortos do capitalismo: isso aqui é um insustentável!

Não importa como nós vamos resolver o “problema” de entregar às futuras gerações um mundo melhor, qualquer que seja a “solução” que proponhamos, ela passará inevitavelmente pela nossa capacidade de imaginar uma forma de vida orientada à suficiência e à sobriedade — e não à opulência, à abundância e à ostentação. A forma de vida capitalista é francamente incompatível com a nossa existência no planeta.

Precisamos mais do que nunca colocar a arte e o jogo (ludos) no centro da sociedade humana. Agora, precisamos mais da imaginação que do conhecimento.

Um pensamento me acordou!

Um pensamento me acordou. Literalmente, eu juro! Ele veio e eu fiquei com medo de perdê-lo, e despertei. Não importa se o pensamento tem valor ou não, o que importa é que algo tão etéreo quanto um pensamento foi capaz de despertar meu corpo, minha consciência, acender toda a máquina, apertar o botão ON. Isso diz algo sobre o meu sono, meu ritmo. Sobre o meu não conseguir estar inteiramente desconectado do mundo. E por acaso o pensamento que me veio tem a ver com esse estar-sujeito-a-ser-despertado por um pensamento. (— Por acaso?! Cada um acredita no que quiser!). Aquilo que me despertou foi um parágrafo de Nietzsche, lembrei que o que era dito ali guardava relação com a ideia de ritmo. Ele falava particularmente de excitação nervosa. O parágrafo bem poderia ser o estímulo que levou Foucault o escrever a volume da História da Sexualidade chamado O uso dos prazeres. E mais particularmente sobre a pederastia. É um belo comentário. Nietzsche diz ali que na sociedade grega o que cabia às mulheres era cuidar dos seus corpos, ser o receptáculo do gênio grego, onde ele poderia se desenvolver umbilicalmente ligado à natureza, a “ilógica relação fundamental com todas as coisas“.

As mulheres não tinham outra tarefa senão produzir corpos belos e fortes, em que prosseguisse vivendo incólume o caráter do pai, a fim de combater a superexcitação nervosa que crescia rapidamente numa cultura tão desenvolvida. Isso manteve a civilização grega jovem por um período relativamente longo; pois nas mães gregas o gênio grego retornava sempre à natureza.

Nietzsche, Humano, demasiado humano § 259 (grifo meu)

O comentário de Nietzsche é fabuloso, antecipa e deixa ver brevemente o que Foucault expõe cuidadosa e detalhadamente em O uso dos prazeres, mas o que me interessa e o que me despertou é a ideia de uma superexcitação nervosa. A ideia de que à medida que uma cultura cresce e se complexifica, ela gera uma excitação nervosa que na sociedade grega encontrava o contrapeso de uma feminilidade compulsoriamente ligada à natureza. O que nós temos hoje? O que nos conecta de novo a um ritmo natural e nos sereniza?

Eu comecei a acessar internet em 1998, já faz 25 anos. Pouquíssimo tempo, em termos naturais! E desde lá, nesse curto intervalo de tempo, parece que tudo mudou. Simplesmente isso: tudo mudou! É muito pouco tempo para que as coisas mudem tão radicalmente, mas é como se não houvesse alternativa, como se esse fosse o único ritmo possível. Esse é o ritmo da economia dos nossos estados nacionais, eles precisam produzir para que tenhamos empregos, e se esse ritmo estoura os nossos miolos, para isso estão os psicólogos, os psiquiatras e suas drogas (como bem conta Christhian Dunker em Depressão solidária, sobre o neoliberalismo como padrão social). Aliás, psicologia é não poucas vezes normalização social, mesmo o amado Freud não deixou de receber críticas pelo seu perfil “normatizador”, Marcuse e Foucault o acusaram, sempre com o carinho que ele merece, claro.

Eu lembro de novo da Tradeoff Hypothesis, do que essa hipótese tem de ilustrativa e heurística. A aceleração da nossa vida nos últimos séculos, milênios, afetou nossa memória, o modo como nosso cérebro funciona. Mas isso aconteceu ao longo de séculos. Nas últimas décadas, especialmente a partir da sociedade digital, os estímulos tem crescido exponencialmente, e é como se comprimíssemos mudanças que aconteciam ao longo de séculos, num intervalo de décadas. E isso afeta nosso cérebro também. Em que momento estamos num ritmo mais sereno? A serenidade está organizada socialmente como férias, para os privilegiados que podem fazer com que esse intervalo de tempo produza neles de fato alguma serenidade efêmera. (Por isso mesmo, eu acho que Triangle of Sadness deveria levar o Oscar esse ano, e com méritos!)

Eu tenho essa impressão constante de que não consigo me desconectar, que meu sono nunca é pleno, que meu cérebro não para de funcionar totalmente, ou pelo menos que não descansa como deveria. Essa profusão de estímulos certamente dificulta não apenas a concentração, o que já é bem sabido, mas qualquer estado semelhante ao de serenidade. É bem verdade que eu tenho algo de louco, mas no final, suponho que não seja o único que briga e se revolta contra a sua própria tendência a vender tão barato a sua atenção, num mercado tão valioso quanto o mercado da atenção.


No belíssimo filme “Three Thousand Years of Longing” (Era uma vez um gênio), o ritmo e os estímulos do nosso tempo são tematizados pelas constantes interferências sentidas pelo djinn interpretado por Idris Elba, quando ele se muda para a cidade.