Coisa de meter e de esfregar

O pau é uma coisa de meter e de esfregar, essa é sua função como instrumento. O caso é que, por melhor que seja o instrumento, as suas potencialidades estão condicionadas à habilidade do seu dono ao usá-lo. E acontece que muitos homens não gostam de mulheres, e isso influencia significativamente o modo como usam o pau. Há muitos homens que acham que as mulheres não são mais que um buraco onde meter o pau. Nesse caso, o instrumento pode servir para dar prazer ao seu dono, mas sua capacidade de proporcionar prazer é assim drasticamente limitada.

Há uma diferença fundamental entre homens e mulheres: os homens são quase todos estritamente genitais, mas não as mulheres (bem, essa é uma generalização). As mulheres também são genitais, mas são mais do que isso. Elas são o corpo inteiro, são espirituais, simbólicas e tudo isso também interfere no modo como elas experimentam o sexo. Os homens podem e costumam ser absolutamente autocentrados e egocêntricos em questões de sexo, vide o absurdo número de violência sexual no Brasil! Os homens não egocêntricos — aqueles que sabem que sexo é um trabalho colaborativo e envolve algo parecido a uma fusão de dois em um — precisam descobrir o corpo de cada mulher com quem transam, isto é, precisam construir um mapa, um roteiro ou uma tabela das regiões do seu corpo sensíveis a que ações executadas por eles. Que ações se podem executar com as diferentes partes do corpo de uma mulher? Beijar, lamber, morder, acariciar, pressionar, apertar, roçar… eu já disse lamber? São tipos de ações que podemos executar e essa variedade certamente forma uma espécie de enciclopédia chinesa.

Adesivos numa pizzaria de Chueca
Adesivos numa pizzaria em Malasaña, Madrid

É preciso aprender o que fazer com o corpo de uma mulher, saber o que fazer (know how), de outro modo o pau se torna apenas o instrumento de um prazer egoísta. E o que é preciso fazer com o corpo de uma mulher, como tocá-lo, não se aprende por acidente, é preciso atenção apaixonada! É claro que há pessoas que sabem naturalmente o que fazer (em certa medida todos nós sabemos), é claro também que há partes do corpo de uma mulher que são quase universalmente admitidas como sensíveis, por exemplo, o pescoço ou o ponto G. Ainda assim, é preciso atenção porque há uma variedade de combinações possíveis de gosto, de intensidade em cada parte e para cada ação executada, e cada mulher tem o seu próprio padrão de gosto. Saber o que fazer com uma mulher é entrar na sua cabeça, e o sexo é bom quando cada um age como se seguissem instruções ditadas detalhadamente pela outra pessoa com quem estamos, ou quando com outra pessoa descobrimos coisas que nós mesmos não sabíamos sobre o nosso desejo.

O sexo tem um impacto tremendo no nosso corpo e na nossa alma, entrar na cabeça de alguém por meio do sexo (ou até pelo simples desejo de sexo) é uma maneira incrivelmente forte de ser lembrado, de ser desejado. É como se adquiríssemos uma espécie de poder sobre outra pessoa.

Tengo la fiebre, ¿no sentís vos este calor?
Es suficiente, quiero tu mente, nene, oh
Búscame al fondo, estoy detrás de este vapor
Te tengo en frente, queda pendiente mi amor

Nathy Peluso, Hot Butter

Lembro de pelo menos dois filmes sobre entrar na cabeça do outro: Quero ser John Malkovich, Do que as mulheres gostam (What women want), com Mel Gibson e Helen Hunt, que é um filme bastante apropriado ao tema. Numa das cenas de sexo, Mel Gibson literalmente segue as indicações da mulher, porque sabe se ela estava gostando ou não de cada ação sua (no filme ele ganha o super-poder de escutar o que elas pensam). Nós também podemos saber o que elas pensam, isso se consegue juntando sensibilidade e atenção. Mas esse combo de sensibilidade e atenção só aparece em quem verdadeiramente gosta das mulheres, em quem desfruta do seu corpo, de cada parte dele, mas também da sua presença, do modo como body and soul se enlaçam nas mulheres. E para quem é apaixonado pelas mulheres e se deixa levar pelo prazer de descobrir seus corpos tudo serve como instrumento: dedos, mãos, línguas, joelho, barriga, peito, ombro e até mesmo uma esponja de pratos pode ser usada para dar prazer às mulheres — embora o pau ainda seja um excelente instrumento, quando bem utilizado.

Beijos roubados

Uma cultura de respeito à mulher não implica que cada beijo tenha que vir antes precedido pela pergunta: “Posso te beijar? Por favor, manifeste o seu consentimento verbalmente” — isso é ridículo. Em certo sentido, grande parte dos beijos são beijos roubados, pois supõem uma aposta (e um risco) sobre o desejo do outro, aposta que, naturalmente, não está imune ao erro. Não se trata de transformar todo homem num robô obrigado a seguir a regra: “não se deve fazer nada com as mulheres sem o seu expresso consentimento”, se trata de construir nos homens uma sensibilidade com respeito às mulheres de tal modo que eles saibam quando ou se roubar um beijo.

Quando se acredita tão cegamente na intimidação e na punição como instrumentos de transformação social fica difícil fazer entender certas zonas de sombra, zonas especialmente ligadas ao sexo (desejo), como o lugar do poder e do que poderíamos chamar de invasividade. Mas quem pode negar o papel desses elementos?

Não existe falsa sabedoria

Richard Rorty escreve o seguinte no começo desse artigo que eu não canso de mencionar:

Todo mundo sabe que a diferença entre crenças verdadeiras e falsas é tão importante quanto aquela entre comidas nutritivas e venenosas.

Richard Rorty, The decline of redemptive truth and the rise of a literary culture

Talvez não exista analogia mais apropriada, porque assim podemos ver que a verdade tem um impacto significativo na nossa vida, já que a própria distinção entre uma comida venenosa e uma comida nutritiva depende de uma verdade (conhecimento) que coloca cada alimento na sua categoria apropriada e nos permite agir (comer) de modo a preservar a nossa vida. A força da verdade está na sua utilidade, que às vezes, como nesse caso, pode ser uma questão de vida ou morte. A utilidade da verdade faz dela a mais poderosa ferramenta de intervenção (redundância) de que nós dispomos, daí a importância da ciência. Podemos intervir e modificar o mundo porque conhecemos muitas das suas leis, porque temos muito conhecimento (verdade).

E é por isso que diante da sabedoria do fascismo nós tendemos a dizer: “é uma falsa sabedoria!” — Só que não existem falsas sabedorias. A cegueira do conhecimento nos leva a querer operar com o epistêmico em todos os domínios simbólicos, mesmo no domínio da ética. A tudo pensamos poder aplicar a distinção entre o verdadeiro e o falso, e especialmente quando nos convém, como nesse caso. Mais uma dura lição da pós-modernidade: os terraplanistas têm razão sobre a post-truth! Resta saber quando nós também admitiremos isso! Aposto que levaremos muito tempo, para não dar o braço a torcer à “descoberta” dos terraplanistas e conspiradores.


A multiplicidade de sabedorias é como a pluralidade dos mundos, uma prova ontológica relativista. O que só pode ser entendido metaforicamente, já que a pretensão de provar nos levaria de novo a um campo epistêmico do qual eu insisto em sair para poder falar do sentido. Para esclarecer essa quase inaceitável pluralidade, talvez convenha aproximá-la a um comentário de Wittgenstein:

O que as pessoas aceitam como justificação mostra como elas pensam e vivem.

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas §325

Poderíamos dizer igualmente: “O que as pessoas aceitam como sabedoria mostra como elas pensam e vivem”. E acrescentar outro comentário:

“Então você está dizendo que o acordo entre homens decide o que é verdadeiro e o que é falso?” — Verdade ou falsidade é o que os homens dizem; e na linguagem os homens estão de acordo. Esse não é um acordo de opinião, mas de formas de vida.

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas §241

Estamos sempre em busca de um espaço, de uma oportunidade para usar as nossas ferramentas científicas, mas certos acordos não podem ser reduzidos a verdades, certos acordos apenas nos mostram que com frequência precisamos aprender a cruzar as fronteiras de outros mundos para poder afetar outras pessoas.

O conceito de puta

Há poucas coisas mais bonitas do que a disposição a servir que não é serviçal, que não perde a dignidade, porque desse modo essa disposição é dádiva. E há alguma coisa de simplesmente divino nela. Que sorte é já ter encontrado na vida pessoas assim. Em bom baianês — orgulhosamente vulgar e debochado —, eu diria que essa disposição é (a vontade de && a abertura para) ser puta dos outros. Ou putinha! Eu mesmo sou putinha de muita gente. Uma das maiores contribuições de Salvador* para a história universal é esse bonito gesto em favor de que se remova o estigma do conceito de puta. Como se pode tirar o estigma de um conceito? Dando a ele outro uso! É o uso (Praxis) que define o valor da norma, da regra, do conceito (da parte normativa) da linguagem.

PS. Meu professor Milton Moura me ensinou que há significativas diferenças identitárias entre as pessoas de Salvador e do recôncavo baiano, assim, em nome da precisão e do rigor, eu devo marcar a diferença entre o baiano (categoria geral) e o soteropolitano (subclasse do baiano), e dizer que isso é provavelmente coisa da galera de Salvador. É coisa nossa!

Estar à vontade

Semana passada eu saí com o pessoal do meu novo trabalho, a empresa montou o que se conhece como um Team building. Na atividade espontânea do final de um dos dias, tomamos muitas cervejas num bar e fomos até um karaokê continuar enchendo a cara. Depois de muitas doses de licor, gin tonic e toda a sorte de bebida o ambiente e as pessoas eram outras. É uma platitude surpreendente constatar o quanto de inibição nos reprime, o quanto ela afeta nossas relações. (Isn’t it a pity?)

Isso me lembrou o maravilhoso Mais uma rodada, filme que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2021. A premissa do filme é a ideia do psiquiatra norueguês Finn Skårderud que alega que nós temos um pequeno deficit de álcool no sangue (0,05%), de tal maneira que, uma vez compensando esse desequilíbrio, nós nos sentiríamos mais à vontade e mais relaxados. O filme é a deliciosa exploração dos efeitos do experimento de tentar corrigir esse deficit, um elogio ao álcool — a droga socialmente mais aceita na Europa — e à sua orgânica ligação com a cultura dos países escandinavos.

Nos meus utópicos delirantes sonhos cosmopolitas não há nada tão importante quanto cultivar (cultura) um ambiente onde os outros possam se sentir a vontade para serem quem são, para descobrir quem são — esse é o espaço da amizade. (Ser o solo onde o outro pode medrar.) Enquanto esse lugar (topos) não chega, acho que vale a ajuda do álcool ou de qualquer outra substância.

Dados, dados, dados: Era Digital

Se estima que a quantidade de dados produzida entre o início da Era Digital, em 2002, e hoje, 2023, é maior do que a humanidade produziu nos 250 mil anos anteriores. Muito maior! Na verdade, tudo que se produziu antes disso HOJE só corresponde a 6% de tudo que nós temos em dados registrados (mais uma vez, estimativas).

Loucura ter mudado de registro, né? Ter saído do texto ao hipertexto (HTML5 e o streaming de vídeo em HTTP). O império do vídeo trazido pelo hipertexto tem como consequência o aumento exponencial do volume de dados produzidos e trafegados nas redes. E a necessidade de tecnologias de diminuição de latência nas redes, como a 5G. A necessidade de tecnologias que permitem diminuição do tamanho das unidades de armazenamento, como a do Solid State Drive. Você pode gravar Shakespeare num arquivo plain-text, num Markdown de 50Kb, mas você pode armazenar 13Gb ou 30 Gb numa peça de teatro gravada, num mp4 ou mkv, ou um filme que encena alguma de suas peças. Em termos de infraestrutura parece como se fosse o mesmo — como se um disco de armazenamento de 1Tb SSD fosse uma tecnologia tão comum e acessível quanto um pedaço de papel. A sociedade digital é um castelo de cartas! Você tem feito seu backup?


Eu leio David Foster Wallace falando sobre o impacto da Televisão na cultura dos EUA e penso: “Caralho, a gente mal processou isso e o paradigma já mudou”. É como se a gente estivesse cego pro presente, pro hoje! O digital é muito novo, ainda brilha com a luz de uma estrela luminosa demais para ser olhada a olho nu.

Esse texto foi publicado em “A Supposedly Fun Thing I’ll Never Do Again“, que eu não sei se foi editado no Brasil.