História do possível e do impossível

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Por volta de 1950, pouco antes de morrer, Wittgenstein escreveu sobre a ideia do homem ir à lua no que depois viria a ser o livro Da certeza. No contexto das suas anotações, essa ideia era apenas um modo de usar ficções e casos extremos para ilustrar aspectos conceituais e gramaticais que de outro modo não seriam notados. Meros vinte anos depois, se tornou real o que era então exemplo patente de uma impossibilidade que era muito útil para o esclarecimento de questões filosóficas. O possível e o impossível tem também uma história, as verdades necessárias mudam e definem novos campos de possibilidades. Tudo que esses novos campos de possibilidades tornam visível existia antes? — O que se quer saber com essa pergunta? “Existir” é um verbo que confunde mais que outra coisa, para falar disso que julgamos que deveria existir melhor falar sobre a cegueira normativa, sobre o fato de que as regras determinam o que nós podemos ver e o que julgamos possível, mas elas necessariamente deixam um lado de fora.

É difícil compreender a pluralidade dos mundos, dada uma espécie cegueira que uma singularidade impõe sobre essa pluralidade. Eu falo da realidade, a singularidade do Real. E a singularidade que se impõe é a dos fatos, do que é verificável, essa é uma singularidade ontológica (desculpa a má palavra) e, segundo os cientistas, inteiramente epistêmica (tudo dentro dela é redutível ao epistêmico), determinável, extensional, etc. E mesmo que os cientistas admitam a historicidade da própria ciência e do conhecimento científico, essa historicidade, no imaginário popular científico, corresponde à história da contínua e progressiva representação do real. Como um quadro que vamos pintando pouco a pouco. A realidade sempre aparece na metafísica tácita da ciência como tribunal superior de apelação necessário à orientação verifuncional das proposições científicas, como ontologia que determina as leis científicas e que as justifica.

Tudo isso ainda é muito abstrato, a mera interdição científica e o confinamento no mundo desencantado da ciência não bastam para fazer entender a pluralidade dos mundos. O que torna especialmente difícil entender a ideia de uma pluralidade de mundos é justamente a invisibilidade dos outros mundos, e o fato de que as dimensões universais da linguagem (os acordos) nos fazem supor que estamos sempre num mesmo mundo, pois assim fomos adestrados. Um comentário de Nietzsche e aspectos das geneaologias de Foucault emprestam a concretude necessária para que possamos entender a pluralidade. Este longo comentário sobre a cultura masculina na Grécia bem poderia ter sido o ponto de partida das investigações de Foucault, ele oferece um contexto onde se vê claramente os obstáculos ao entendimento.

Uma cultura masculina. — A cultura grega do período clássico é uma cultura masculina. No que toca às mulheres, Péricles disse tudo na oração fúnebre: elas são melhores quando os homens falam o mínimo possível delas entre si. — A relação erótica dos homens com os rapazes era, num grau inacessível ao nosso entendimento, o pressuposto único e necessário de toda educação masculina (mais ou menos como entre nós, durante muito tempo, toda educação elevada da mulher se realizou apenas mediante o namoro e o casamento); todo o idealismo da força da natureza grega se lançou em tal relação, e é provável que nunca se tenha tratado pessoas jovens tão atenciosamente, tão amavelmente e visando o que teriam de melhor (virtus) como nos séculos VI e V — conforme, portanto, a bela sentença de Hölderlin: “pois é amando que o mortal dá o melhor de si”. Quanto mais altamente se estimava essa relação, mais declinava o comércio com a mulher: a perspectiva da procriação e da volúpia — apenas isso entrava em consideração; não havia troca intelectual, nem namoro de fato. Se lembramos também que eram excluídas das competições e dos espetáculos de toda espécie, então restam apenas os cultos religiosos como elevado entretenimento para as mulheres. — É certo que Electra e Antígona apareciam na tragédia, mas justamente porque se tolerava isso na arte, mesmo não o querendo na vida real: tal como hoje não suportamos o patético na vida, mas gostamos de vê-lo na arte. — As mulheres não tinham outra tarefa senão produzir corpos belos e fortes, em que prosseguisse vivendo incólume o caráter do pai, a fim de combater a superexcitação nervosa que crescia rapidamente numa cultura tão desenvolvida. Isso manteve a civilização grega jovem por um período relativamente longo; pois nas mães gregas o gênio grego retornava sempre à natureza.

Nietzsche, Humano, demasiado humano § 259 (grifo meu)

A única coisa que me interessa nesse parágrafo é a observação de que a relação erótica dos homens com os rapazes (a pederastia, precisamente um dos temas centrais de Foucault no Uso dos prazeres), como pressuposto único e necessário de toda educação masculina, é algo que escapa ao nosso entendimento, ao entendimento de pessoas vivendo numa sociedade inteiramente distinta. É aí onde os mundos estão ocultos, onde não é preciso disputar uma ontologia, mas apenas reconhecer usos simbólicos significativamente distintos. Não é por acaso que as pessoas supõem não infrequentemente que a homossexualidade e a pederastia são a mesma coisa. “Só muda o nome!”. O realismo reaparece, dessa vez, como comentário de carga ontológica sobre a identidade entre expressões separadas por mais de 2000 anos. A identidade entre a palavra “homossexualidade” no nosso português globalizado de 2021 e a palavra grega “pederastia” (παιδεραστία) — a palavra é sempre um modo de significar ações, interações humanas, uma forma de vida em sua complexidade e irredutibilidade. Alguém poderia ainda dizer de outro modo: o signo mudou, mas o significado é um mesmo. O problema aqui permanece, a referencialidade realista que acaba encalhada na praia do representacionalismo, na ânsia de espelhar a realidade.

Foucault trata também de outros aspectos que deixam ver como, ainda há bem pouco tempo, vivíamos em um mundo completamente diferente. Quando discute a passagem do moral ao clínico, o nascimento da interrelação entre o clínico e o jurídico, ou quando identifica a gênese da norma de desenvolvimento sexual, inexistente até o período vitoriano, Foucault explicita aspectos que moldaram o mundo em que vivemos hoje, e o modo como pensamos e julgamos. Por causa dessa diferença gritante entre mundos choca que — para falar dessas transições, de como era o mundo antes da instauração desses paradigmas, e dos casos que parecem marcar pontos de virada — ele mencione algo como o jogo do “leite coalhado”, uma brincadeira perversa que hoje tomaríamos como pedofilia sem hesitação.

Já é suficientemente difícil entender o significado dessa pluralidade de mundos tendo em conta uma, por assim dizer, uma mesma timeline, isto é, vendo a história da “civilização ocidental” sob a luz das múltiplas mudanças de paradigma que fizeram com que, num curto intervalo e incidindo sobre uma “mesma” cultura, nos pareça impossível compreender a experiência e o mundo em que estavam metidas pessoas não tão distantes quanto os gregos. Mas o que é verdadeiramente desafiador, numa sociedade científica e digital como a nossa, é compreender em que medida, mesmo que sob o escudo da pretensa universalidade científica, possamos existir, coexistir e até nos comunicar a partir de mundos diferentes, sendo coetâneos.

A história das normas, leis e conceitos humanos é a história do possível e do impossível, e o que assim se reconstitui discursivamente são os sucessivos remapeamentos do campo normativo, daquilo que podemos conceber como (inteligível || possível) devido às mudanças que afetaram a vida social humana. Há sempre um lado de fora, um espaço não abarcado pelo que nós supomos ser a totalidade, de tal sorte que a totalidade do que se conhece nunca pode chegar a ser a “totalidade” daquilo que supomos real (o real não forma uma totalidade, como o conhecimento, pois é indeterminável). É somente quando nós não apenas admitimos a transitoriedade e historicidade das regras de organização do próprio conhecimento, mas também o limite de sua capacidade técnica e instrumental, que podemos entender o lugar lógico/psicológico da ignorância. Podemos lidar cientificamente com o saber, mas só a filosofia (ética) pode nos ensinar a lidar com a ignorância e com aquilo que está além da capacidade de explicação.


O oxigênio existia antes da descoberta de Lavoisier? Sim! Não há nisso nenhuma dificuldade ontológica, mas a descoberta do oxigênio nos coloca em outro mundo. Para mim não é trivial o modo como Thomas Kuhn se expressa:

No mínimo, como resultado da descoberta de oxigênio, Lavoisier viu a natureza de maneira diferente. E na ausência de algum recurso a essa hipotética natureza fixa que ele “viu de forma diferente”, o princípio da economia nos incitará a dizer que, após descobrir o oxigênio, Lavoisier trabalhou em um mundo diferente.

Thomas Kuhn, The structure of scientific revolutions

Lisey’s Story, com Julianne Moore

Não canso de dizer, só a arte pode nos ensinar a ver e lidar com diferentes mundos. Por acaso, recentemente, saiu uma série que leva essa premissa às últimas consequências ficcionais, e que por isso tem um grande componente espiritual, místico, chame como quiser. Pra variar, a premissa é de Stephen King, a série se chama Lisey’s Story e é estrelada por Julianne Moore e Clive Owen. Não é para todos os gostos, é verdade, mas o modo como ela aborda a distinção entre imaginação e realidade é fascinante. Ninguém melhor para falar sobre realidade e imaginação que um escritor.

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