História do possível e do impossível

Por volta de 1950, pouco antes de morrer, Wittgenstein escreveu sobre a ideia do homem ir à lua no que depois viria a ser o livro Da certeza. No contexto das suas anotações, essa ideia era apenas um modo de usar ficções e casos extremos para ilustrar aspectos conceituais e gramaticais que de outro modo não seriam notados. Meros vinte anos depois, se tornou real o que era então exemplo patente de uma impossibilidade que era muito útil para o esclarecimento de questões filosóficas. O possível e o impossível tem também uma história, as verdades necessárias mudam e definem novos campos de possibilidades. Tudo que esses novos campos de possibilidades tornam visível existia antes? — O que se quer saber com essa pergunta? “Existir” é um verbo que confunde mais que outra coisa, para falar disso que julgamos que deveria existir melhor falar sobre a cegueira normativa, sobre o fato de que as regras determinam o que nós podemos ver e o que julgamos possível, mas elas necessariamente deixam um lado de fora.

É difícil compreender a pluralidade dos mundos, dada uma espécie cegueira que uma singularidade impõe sobre essa pluralidade. Eu falo da realidade, a singularidade do Real. E a singularidade que se impõe é a dos fatos, do que é verificável, essa é uma singularidade ontológica (desculpa a má palavra) e, segundo os cientistas, inteiramente epistêmica (tudo dentro dela é redutível ao epistêmico), determinável, extensional, etc. E mesmo que os cientistas admitam a historicidade da própria ciência e do conhecimento científico, essa historicidade, no imaginário popular científico, corresponde à história da contínua e progressiva representação do real. Como um quadro que vamos pintando pouco a pouco. A realidade sempre aparece na metafísica tácita da ciência como tribunal superior de apelação necessário à orientação verifuncional das proposições científicas, como ontologia que determina as leis científicas e que as justifica.

Tudo isso ainda é muito abstrato, a mera interdição científica e o confinamento no mundo desencantado da ciência não bastam para fazer entender a pluralidade dos mundos. O que torna especialmente difícil entender a ideia de uma pluralidade de mundos é justamente a invisibilidade dos outros mundos, e o fato de que as dimensões universais da linguagem (os acordos) nos fazem supor que estamos sempre num mesmo mundo, pois assim fomos adestrados. Um comentário de Nietzsche e aspectos das geneaologias de Foucault emprestam a concretude necessária para que possamos entender a pluralidade. Este longo comentário sobre a cultura masculina na Grécia bem poderia ter sido o ponto de partida das investigações de Foucault, ele oferece um contexto onde se vê claramente os obstáculos ao entendimento.

Uma cultura masculina. — A cultura grega do período clássico é uma cultura masculina. No que toca às mulheres, Péricles disse tudo na oração fúnebre: elas são melhores quando os homens falam o mínimo possível delas entre si. — A relação erótica dos homens com os rapazes era, num grau inacessível ao nosso entendimento, o pressuposto único e necessário de toda educação masculina (mais ou menos como entre nós, durante muito tempo, toda educação elevada da mulher se realizou apenas mediante o namoro e o casamento); todo o idealismo da força da natureza grega se lançou em tal relação, e é provável que nunca se tenha tratado pessoas jovens tão atenciosamente, tão amavelmente e visando o que teriam de melhor (virtus) como nos séculos VI e V — conforme, portanto, a bela sentença de Hölderlin: “pois é amando que o mortal dá o melhor de si”. Quanto mais altamente se estimava essa relação, mais declinava o comércio com a mulher: a perspectiva da procriação e da volúpia — apenas isso entrava em consideração; não havia troca intelectual, nem namoro de fato. Se lembramos também que eram excluídas das competições e dos espetáculos de toda espécie, então restam apenas os cultos religiosos como elevado entretenimento para as mulheres. — É certo que Electra e Antígona apareciam na tragédia, mas justamente porque se tolerava isso na arte, mesmo não o querendo na vida real: tal como hoje não suportamos o patético na vida, mas gostamos de vê-lo na arte. — As mulheres não tinham outra tarefa senão produzir corpos belos e fortes, em que prosseguisse vivendo incólume o caráter do pai, a fim de combater a superexcitação nervosa que crescia rapidamente numa cultura tão desenvolvida. Isso manteve a civilização grega jovem por um período relativamente longo; pois nas mães gregas o gênio grego retornava sempre à natureza.

Nietzsche, Humano, demasiado humano § 259 (grifo meu)

A única coisa que me interessa nesse parágrafo é a observação de que a relação erótica dos homens com os rapazes (a pederastia, precisamente um dos temas centrais de Foucault no Uso dos prazeres), como pressuposto único e necessário de toda educação masculina, é algo que escapa ao nosso entendimento, ao entendimento de pessoas vivendo numa sociedade inteiramente distinta. É aí onde os mundos estão ocultos, onde não é preciso disputar uma ontologia, mas apenas reconhecer usos simbólicos significativamente distintos. Não é por acaso que as pessoas supõem não infrequentemente que a homossexualidade e a pederastia são a mesma coisa. “Só muda o nome!”. O realismo reaparece, dessa vez, como comentário de carga ontológica sobre a identidade entre expressões separadas por mais de 2000 anos. A identidade entre a palavra “homossexualidade” no nosso português globalizado de 2021 e a palavra grega “pederastia” (παιδεραστία) — a palavra é sempre um modo de significar ações, interações humanas, uma forma de vida em sua complexidade e irredutibilidade. Alguém poderia ainda dizer de outro modo: o signo mudou, mas o significado é um mesmo. O problema aqui permanece, a referencialidade realista que acaba encalhada na praia do representacionalismo, na ânsia de espelhar a realidade.

Foucault trata também de outros aspectos que deixam ver como, ainda há bem pouco tempo, vivíamos em um mundo completamente diferente. Quando discute a passagem do moral ao clínico, o nascimento da interrelação entre o clínico e o jurídico, ou quando identifica a gênese da norma de desenvolvimento sexual, inexistente até o período vitoriano, Foucault explicita aspectos que moldaram o mundo em que vivemos hoje, e o modo como pensamos e julgamos. Por causa dessa diferença gritante entre mundos choca que — para falar dessas transições, de como era o mundo antes da instauração desses paradigmas, e dos casos que parecem marcar pontos de virada — ele mencione algo como o jogo do “leite coalhado”, uma brincadeira perversa que hoje tomaríamos como pedofilia sem hesitação.

Já é suficientemente difícil entender o significado dessa pluralidade de mundos tendo em conta uma, por assim dizer, uma mesma timeline, isto é, vendo a história da “civilização ocidental” sob a luz das múltiplas mudanças de paradigma que fizeram com que, num curto intervalo e incidindo sobre uma “mesma” cultura, nos pareça impossível compreender a experiência e o mundo em que estavam metidas pessoas não tão distantes quanto os gregos. Mas o que é verdadeiramente desafiador, numa sociedade científica e digital como a nossa, é compreender em que medida, mesmo que sob o escudo da pretensa universalidade científica, possamos existir, coexistir e até nos comunicar a partir de mundos diferentes, sendo coetâneos.

A história das normas, leis e conceitos humanos é a história do possível e do impossível, e o que assim se reconstitui discursivamente são os sucessivos remapeamentos do campo normativo, daquilo que podemos conceber como (inteligível || possível) devido às mudanças que afetaram a vida social humana. Há sempre um lado de fora, um espaço não abarcado pelo que nós supomos ser a totalidade, de tal sorte que a totalidade do que se conhece nunca pode chegar a ser a “totalidade” daquilo que supomos real (o real não forma uma totalidade, como o conhecimento, pois é indeterminável). É somente quando nós não apenas admitimos a transitoriedade e historicidade das regras de organização do próprio conhecimento, mas também o limite de sua capacidade técnica e instrumental, que podemos entender o lugar lógico/psicológico da ignorância. Podemos lidar cientificamente com o saber, mas só a filosofia (ética) pode nos ensinar a lidar com a ignorância e com aquilo que está além da capacidade de explicação.


O oxigênio existia antes da descoberta de Lavoisier? Sim! Não há nisso nenhuma dificuldade ontológica, mas a descoberta do oxigênio nos coloca em outro mundo. Para mim não é trivial o modo como Thomas Kuhn se expressa:

No mínimo, como resultado da descoberta de oxigênio, Lavoisier viu a natureza de maneira diferente. E na ausência de algum recurso a essa hipotética natureza fixa que ele “viu de forma diferente”, o princípio da economia nos incitará a dizer que, após descobrir o oxigênio, Lavoisier trabalhou em um mundo diferente.

Thomas Kuhn, The structure of scientific revolutions

Lisey’s Story, com Julianne Moore

Não canso de dizer, só a arte pode nos ensinar a ver e lidar com diferentes mundos. Por acaso, recentemente, saiu uma série que leva essa premissa às últimas consequências ficcionais, e que por isso tem um grande componente espiritual, místico, chame como quiser. Pra variar, a premissa é de Stephen King, a série se chama Lisey’s Story e é estrelada por Julianne Moore e Clive Owen. Não é para todos os gostos, é verdade, mas o modo como ela aborda a distinção entre imaginação e realidade é fascinante. Ninguém melhor para falar sobre realidade e imaginação que um escritor.

Paranormal

A norma é o padrão de medida — como o padrão metro, ou polegada, ou pés, etc. — que define o que está conforme ou não ao que ela determina. É certo que no que se refere aos padrões de medida as gradações importam, enquanto que, quando falamos de normalidade e normal, tendemos a ver o que se determina em termos dicotômicos, separamos o normal e o não normal (ou anormal). Mas o anormal, aquilo que não se ajusta à regra, é parte do espectro mapeado pela norma, não está no lado de fora.

A impossibilidade de um lado exterior (um lado de fora) é uma questão importante em lógica. A lógica se ocupa do mais geral e a existência de um lado de fora supõe a possibilidade de pensar o impensável, o ilógico. O que está do lado de fora do que é lógico é ilógico e sem sentido. Portanto, se não podemos pensar o ilógico é porque a lógica preenche o mundo sem deixar espaços vazios. Embora a ciência não possa se ocupar da mesma maneira com o geral, ela tem também grandes ambições. A ciência também define uma totalidade (embora o que está do lado de fora não seja impossível, como na lógica), de tal maneira que não admite, assim como a lógica, um lado de fora. Por isso, por mais inusitado que seja um fenômeno com que uma ciência se ocupa, ele estará sempre no radar de suas normas — ainda que como um caso singular (um outlier, pensando em termos estatísticos). Isso significa que a ciência não precisa e não deve utilizar o termo paranormal para designar eventos inexplicados, de outro modo ela estaria admitindo não apenas que não sabe algo, mas também que não pode saber.

Todo quadro normativo nos apresenta o mundo como se não houvesse um lado de fora ao campo constituído por suas regras prescritivas, eu chamo isso de cegueira normativa. A cegueira normativa é fenômeno psicológico, embora pareça ter bases lógicas. Não há nenhuma barreira lógica que nos impeça de entender uma contradição.

As regras da gramática são num mesmo sentido arbitrárias e não arbitrárias, como a escolha de uma unidade de medida.

Wittgenstein, big typescript

Ou melhor, claro que há. Ao dizer uma contradição você viola uma das leis básicas da lógica, mas nada te impede de dizer, por exemplo, “Chove e não chove!”. De maneira geral ninguém faz uma afirmação fatual tão categórica usando contradições, porque salta os olhos o fato de que a gente não sabe o que fazer com esse tipo de enunciado. Mas os contextos mais amplos permitem que uma contradição diga coisas importantes sem parecer sem sentido, como no comentário de Wittgenstein acima — um dos tantos em que ele usa contradições para dizer coisas importantes. O que eu queria dizer com esse arrudeio é que a cegueira normativa não se explica pela lógica, mas pela psicologia. Pela necessidade de estabilidade exigida por nossa saúde mental, pela necessidade de acordos. Se bem que, pensando melhor, não há porque dizer que a psicologia exige a estabilidade, pois sem acordos fundamentais tampouco pode haver linguagem e lógica (sem suficiente regularidade). Por isso grande parte das reflexões sobre a lógica e a linguagem desde o século XIX até hoje estão ocupadas em dizer as condições de possibilidade do sentido.

Se algum incauto ainda resistiu a esse tormento estará se perguntando qué coño tiene todo eso que ver com o paranormal? O paranormal é a afirmação de que a ciência necessariamente tem um lado de fora inalcançável. Dizer que a totalidade dos fenômenos conhecidos pela ciência não é a totalidade do real é uma trivialidade, pois todos aceitam que ainda temos muito o que conhecer. Contudo, dizer que há elementos do real que por sua constituição escapam ao que a ciência pode descrever é outra coisa, é afirmar uma limitação constitutiva dos nossos próprios instrumentos epistêmicos. O paranormal vai um pouco por essa linha.

Holly Gibney (Cynthia Erivo) em Outsider.

Na verdade na verdade, esse texto é inteiramente motivado pela série Outsider, pelo modo engenhoso como ela apresenta a ideia do paranormal. Uma série que fala do bicho papão (boogeyman, el cuco, etc.) é no mínimo curiosa. Não acho que ela seja pra todo mundo, mas eu gostei bastante justo porque a paranormal em questão (Holly Gibney) é apresentada não como uma fanática por coisas ocultas, mas por uma espécie de Sheldon Cooper resignada pela impossibilidade de explicar seus dons (maldições?).

O artista Stephen Wiltshire consegue pintar cenários imensamente complexos pela mera contemplação em poucos instantes. Ele não é um paranormal, embora o altismo não esteja no espectro do que nos ensinam que seja normal.

Num dos episódios da série Holly conta como chegou a ser internada por seus pais porque eles (lamentável e compreensivelmente) se assustavam com suas capacidades, com sua memória prodigiosa, por exemplo, capaz de reter os mínimos detalhes das coisas — quase como um Funes, el memorioso. Não é triste que a necessária estabilidade que nos permite a comunicação seja também a própria barreira que nos impede de enxergar coisas belas nos outros? Que nos espante o que foge à norma e que o costume do normal torne certas coisas simplesmente invisíveis?

PS. O relativismo é uma inevitável consequência da cegueira normativa.
PPS. O nascimento do normal é um dos aspectos mais estimulantes do pensamento de Foucault.
PPS. A série é baseada no livro de Stephen King e ele fez parte da produção da série.

O que não podemos ver

David Foster Wallace começa Isto é água lembrando uma anedota:

Dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrário.
Ele os cumprimenta e diz:
— Bom dia, meninos. Como está a água?
Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta:
— Água? Que diabo é isso?

David foster wallace, Ficando longe do fato de já estar meio longe de tudo

Wittgenstein escreveu incontáveis vezes em seus cadernos algo que está registrado assim nas Investigações Filosóficas:

O que nós fornecemos são na verdade observações sobre a história natural do homem; não são curiosidades, mas constatações das quais ninguém duvidou, e que escaparam à observação apenas porque estão sempre diante dos nossos olhos.

Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 415

Ou assim, em outro momento:

Os aspectos para nós mais importantes das coisas estão mascarados pela sua simplicidade e trivialidade. (Não podemos notá-los, — pois os temos sempre diante dos olhos.)

Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 129

E eles não são os únicos a falar disso, creio que há algo em Lacan sobre coisa parecida. É fascinante pensar que o mais fundamental pode ser justo o que nos escapa. A visibilidade é apenas um modo de representar uma relação que não é meramente perceptiva ou epistêmica, mas ética e lógico-psicológica. Isto é, não se trata apenas de um não perceber ou de um não notar algo que está oculto, a dificuldade vem justo do fato de que aquilo que não se percebe está por toda parte e não escondido. É como se o excesso de visibilidade — ou a presença constante — do que quer que seja pudesse misteriosamente ocultá-lo.

Quais são os efeitos de não percebermos o que está diante dos nossos olhos? Digo, efeitos éticos, lógicos e psicológicos? Este é um universo inteiro de investigação e reflexão.

Borges tem um precioso comentário em Deutsches Requiem em que parece dizer justo o contrário. Essa aparente oposição sempre me fascinou porque parece conter uma verdade irrefutável:

Yo había comprendido hace muchos años que no hay cosa en el mundo que no sea germen de un Infierno posible; un rostro, una palabra, una brújula, un aviso de cigarrillos, podrían enloquecer a una persona, si esta no lograra olvidarlos. ¿No estaría loco un hombre que continuamente se figurara el mapa de Hungría?

Jorge Luis Borges, Deutsches requiem

Aquilo que continuamente se faz presente não é o fiador da racionalidade, como pensava Wittgenstein, mas a própria semente da loucura, julgava Borges. E ele também tem razão, não é o que parece?

Estes são temas que orbitam ao redor do universo da cegueira normativa, este produto lógico de não sermos capazes de enxergar o lado de fora do nosso campo normativo.

A teimosia como questão filosófica

Há algum tempo eu tenho insistido num ponto: eliminar a arbitrariedade, a vontade e qualquer coisa que escape à determinação causal da ciência corresponde à tarefa de um determinado projeto de racionalidade. Um projeto estreitamente vinculado a concepções filosóficas entretecidas à Matemática e à Lógica. De acordo com esse marco teórico, a distinção kantiana entre o reino da Liberdade e o reino da Natureza deve ser abandonada e assim ficaríamos apenas com a Natureza. Muitas perspectivas interessantes se derivam das ideias ligadas a esse projeto. No entanto, embora sua força e seus efeitos se vejam claramente em casos como a Cambridge Analytica, fenômenos comuns e decisivos do uso da linguagem escapam de sua pretensão generalista e determinista. Nas suas anotações Wittgenstein recorta uma frase de Schopenhauer que pode ser um bom ponto de partida para olhar desses fenômenos:

Se você se encontra perplexo tentando convencer alguém de algo sem ser capaz de sair do lugar, diga a si mesmo que é a vontade e não o intelecto o que você está enfrentando.

Como é possível conceber a mudança sem ter em conta a adesão que as pessoas tem às suas crenças e visão de mundo? Que estratégia podemos empregar para levá-las a crer naquilo que julgamos necessário se não consideramos a estabilidade que uma visão de mundo produz e a instabilidade gerada pelo seu abandono?

Sistemas de referências como estabilizadores lógicos e psicológicos formam um tema que me interessa muitíssimo e sobre o qual já escrevi aqui e em outros lugares, mas há ainda outro aspecto que anda lado a lado a essa discussão. O produto psicológico da certeza (lógica) é a convicção, e do sentimento de convicção se deriva, não poucas vezes, a confiança. A confiança é um elemento indispensável para que certas ideias possam produzir resultados que nos parecem naturais: um inventor, um cientista, um escritor, qualquer um quem que, dentro de um dado paradigma, tenha uma ideia dissonante precisa ter confiança suficiente para afirmar suas ideias, a despeito da recepção e das críticas. Entretanto, essa confiança não é a marca dos gênios e das pessoas verdadeiramente investidas de uma visão nova e transformadora. Em realidade, a confiança é mais comum do que parece e dela não se pode inferir nada sobre a qualidade e o valor das ideias de quem a possui.

A confiança não apenas estabiliza uma visão de mundo, ela tende a promover e projetar as crenças e ideias que a caracterizam. Disso resulta uma situação embaraçosa: se por um lado a confiança é imprescindível para que ideias novas possam projetar-se e produzir efeitos que só o novo pode nos trazer, por outro, o fato de que ela seja tão bem distribuída quanto o bom senso de que fala Descartes parece produzir o efeito de impedir que as pessoas mudem a forma como pensam.

O bom senso é a coisa mais bem distribuída do mundo: pois cada um pensa estar tão bem provido dele, que mesmo aqueles mais difíceis de se satisfazerem com qualquer outra coisa não costumam desejar mais bom senso do que têm.

Descartes, discurso do método

Disso tudo resultam dúvidas exasperantes: qual é a medida entre a convicção e a incerteza? Que relação deve haver entre o conhecimento e a ignorância? É possível passar toda a vida escrevendo sobre esse tema sem esgotá-lo, mas o que me interessa agora é salientar que, embora a questão se ramifique ou se entrelace a um sem número de outras (como a tendência a confirmação), uma palavra muito comum pode apresentar de modo simples o que está na raiz de toda essa discussão: teimosia. A teimosia dá conta dessa resistência da vontade, da face negativa, por assim dizer, da confiança e da estabilidade. Trata-se inegavelmente de um problema filosófico significativo: qual é o papel da resistência nos intercâmbios linguísticos e nos usos do discurso?

Há mais variáveis nessa discussão do que minha incipiente capacidade de sistematizar me permite gerenciar, portanto a seguir eu vou colocar três pontos torcendo para que lhes pareça claro o vínculo entre todas essas ideias.

Nietzsche tinha um modo curioso de conceber uma certa expressão da força de caráter:

A estreiteza de opiniões, transformada em instinto pelo hábito, leva ao que chamamos de força de caráter. Quando alguém age por poucos, mas sempre os mesmos motivos, seus atos adquirem grande energia; se esses atos harmonizarem com os princípios dos espíritos cativos, eles serão reconhecidos e também produzirão, naquele que os perfaz, o sentimento da boa consciência. Poucos motivos, ação enérgica e boa consciência constituem o que se chama força de caráter. Ao indivíduo de caráter forte falta o conhecimento das muitas possibilidades e direções da ação; seu intelecto é estreito, cativo, pois em certo caso talvez lhe mostre apenas duas possibilidades; entre essas duas ele tem de escolher necessariamente, conforme sua natureza, e o faz de maneira rápida e fácil, pois não tem cinqüenta possibilidades para escolher.

Nietzsche, humano, demasiado humano, § 228

É inevitável lembrar de um certo capitão reformado do Exército berrando, com enorme convicção, ante um apático jornalista: “através do voto cê não vai mudar nadaaaaa nesse país”. Não dá pra negar que a estreiteza confere muita força às palavras e às ações, e não sem razão as pessoas se sentem atraídas por discursos carregados de convicção.

Nesse mesmo contexto, ao examinar questão do gênio, Nietzsche destacou que é tortuoso e incerto o caminho pelo qual o gênio poderia conferir às suas próprias ações a mesma energia que uma pessoa estreita manifestava.

Comparado àquele que tem a tradição a seu lado e não precisa de razões para seus atos, o espírito livre é sempre débil, sobretudo na ação; pois ele conhece demasiados motivos e pontos de vista, e por isso tem a mão insegura, não exercitada. Que meios existem para torná-lo relativamente forte, de modo que ao menos se afirme e não pereça inutilmente?

Nietzsche, humano, demasiado humano, § 230

Nas últimas décadas essa a debilidade do gênio e a confiança dos estreitos, por assim dizer, tem atraído o interesse científico por causa de investigações psicológicas como as do chamado Efeito Dunning-Kruger. Esse efeito pretende explicar a inclinação das pessoas estreitas e obtusas a sobrevalorizar suas competências e, por outra parte, a tendência dos espíritos verdadeiramente fortes a menosprezar suas habilidades. Não é à toa que Nietzsche se considerava um psicólogo sem igual.

Por fim, em certa medida a teimosia, a confiança e a convicção são elementos indispensáveis, pois não parece nem possível nem desejável simplesmente eliminá-las. No entanto, mesmo no melhor dos casos, quando a convicção acompanha ideias geniais e transformadoras, há sempre o risco de que assim também se engesse uma visão de mundo. Talvez o aspecto que mais tardia e inadvertidamente tenha me chamado atenção no pensamento de Wittgenstein seja seu descompromisso com a estabilidade. Suas ideias eram reformadas numa velocidade que tornava quase impraticável acompanhá-las, essa era uma queixa conhecida entre alguns de seus amigos. O desapego à estabilidade pode bem denotar uma atitude valiosa a respeito da relação entre conhecimento e ignorância. Esse texto já está longo e coalhado de citações, mas permitam uma última:

Ao escrevermos, como evitar que escrevamos sobre aquilo que não sabemos ou que sabemos mal? É necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo a dizer. Só escrevemos na extremidade de nosso próprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber e nossa ignorância e que transforma um no outro. É só deste modo que somos determinados a escrever. Suprir a ignorância é transferir a escrita para depois ou, antes, torná-la impossível. Talvez tenhamos aí, entre a escrita e a ignorância, uma relação ainda mais ameaçadora que a relação geralmente apontada entre a escrita e a morte, entre a escrita e o silêncio.

Gilles deleuze, diferença e repetição (prólogo)

Eu acredito que as armadilhas da convicção só podem ser superadas quando nos parecer natural não apenas admitir alguma instabilidade em nossa visão de mundo mas também estar a vontade com a nossa própria ignorância. É difícil conceber a comunicação e o entendimento como ferramentas capazes de responder às exigências de transformação que teremos que levar a cabo nas próximas (décadas && séculos) sem incorporar esses dois elementos à nossa cultura e subjetividade. Toda a tradição determinista, aquela que eu mencionei no primeiro parágrafo, dá aos acordos um valor desmedido e por isso pouco ou nada tem a oferecer ante aos conflitos e desacordos que, camufladamente, abundam na vida humana. É o caráter desestabilizador dos conflitos e desacordos aquilo sobre o que deveríamos meditar. Quero num outro momento escrever sobre esses desacordos.


PS. Ao longo da história humana muita gente boa notou a convicção dos estúpidos e a sua contraparte, mas não dá pra deixar de lembrar de Yeats, em The Second Coming:

The best lack all conviction, while the worst
Are full of passionate intensity.

Nós fomos à Lua?

Meus interesses são tão voláteis quanto meu humor. Em 2015, quando eu estava lendo Sobre a certeza, de Wittgenstein, andei fascinado pela ideia de sistemas de referências, os sistemas pragmático-normativos que enformam nossa visão de mundo. E então escrevi um artigo, num espanhol ainda mais precário do que tenho hoje, chamado ¿Hemos ido a la Luna? O artigo não era a defesa de teses conspiratórias, mas explorava uma consequência simples (mas bombástica) das ideias de Wittgenstein. O que acontece quando os pilares e eixos de nossas visões de mundo são confrontados e questionados?

O esplendor da Lua

A perspectiva de Wittgenstein é clara: as bases de nossa visão de mundo não cumprem essa função porque são verdadeiras, mas sim porque fomos (treinados && adestrados) numa visão de mundo onde elas tem a função de fundamento. Sua pragmática caminha lado a lado com o behaviorismo (e, por consequência, com a primatologia), e por isso uma ênfase significativa é concedida ao papel do treinamento, à função das autoridades que nos ensinam e ao longo período de formação necessário para aquisição das habilidades linguísticas. Esse deslocamento da verdade do seu lugar fundamental, isto é, o fato de que a verdade não é mais a base e a fundação da nossa visão de mundo, tem efeito ainda muito pouco digerido pelo pensamento contemporâneo — ou melhor dizendo, ainda muito pouco aceito. No Sobre a certeza encontramos afirmações como essa:

O ato de dar razões, entrentanto, chega a um fim — mas o fim não está constituído de certas proposições que se nos apresentam como imediatamente verdadeiras, quer dizer, não é um modo de ver [visão] de nossa parte; é um agir que se encontra na base dos nossos jogos de linguagem.

Wittgenstein, sobre a certeza, § 204

Wittgenstein substitui o ver como verdadeiro pelo agir como se algo fosse verdadeiro (este algo não é proposicional, nem determinado). Portanto, não se trata mais de ter evidências ou de considerar esse ou aquele fato verdadeiro, se trata de adquirir (cega e passivamente) um modo de agir que reflete uma visão de mundo onde certas coisas são tomadas como verdadeiras. (Nós nos emancipamos dessa heteronomia logicamente necessária? Nos tornamos seres autônomos?) É como se primeiro nos fosse ensinado um dogma e só depois, muito depois, adquirissemos a capacidade de questionar (por em dúvida) o que nós aprendemos. Daí o famoso mote do livro: a dúvida pressupõe a certeza. É uma exigência lógica. Só é possível participar da comunidade linguística onde certas dúvidas podem ser enunciadas quando antes comungamos um monte de certezas. Essas certezas amparam a visão de mundo que herdamos quando aprendemos a linguagem.

A consequência que eu queria sublinhar com o artigo era a seguinte: se a verdade não está mais nesse lugar fundamental, então a manutenção de certas ideias e fatos que nos parecem inevitavelmente verdadeiras depende de fatores mais subjetivos do que gostaríamos de admitir. Numa palavra, vontade. Esses fatos tem um papel estrutural tão importante em nossa visão de mundo que não podemos descartá-los sem jogar fora com eles toda a visão de mundo, tendemos, portanto, a preservá-los e a confirmar nossa visão de mundo não importa o que aconteça.

Não é essa a questão: “E se você tivesse que mudar de opinião mesmo sobre aquelas coisas mais fundamentais?” E a resposta a essa questão parece ser: “Você não tem que mudar. Isso é exatamente o que ser ‘fundamental’ significa”

Wittenstein, sobre a certeza, § 512

Como fica a nossa concepção de racionalidade diante disso? O papel importante que atribuímos à coerção e constrangimento lógicos? É claro que selecionei a dúvida sobre a ida à Lua justamente porque ela é polêmica e excêntrica o bastante para fazer ver meu ponto. O próprio Wittgenstein costumava fabricar ficções para tornar claras suas ideias e o fato dele próprio ter mencionado algumas vezes a viagem à Lua como exemplo de algo impossível me inspirou (ele pensou tudo isso por volta dos anos 50).

Em nome da determinação, a lógica sempre buscou eliminar a vontade (a arbitrariedade) de seus extratos fundamentais, para impedir que imperasse na linguagem uma pluralidade de fatores insubmissos à sede de controle que secretamente subjaz aos projetos racionalistas que a guiam. Mas a vontade — expressão de uma psicologia nunca satisfatoriamente conjurada pela lógica e da lógica — teimava em voltar, cada vez mais forte. E é verdadeiramente difícil sustentar um projeto racionalista tal e como o compreendemos ainda hoje tendo em vista a importância da vontade, isto é, a tendência a conservar (arbitrariamente) a estabilidade de nossas perspectivas. Isso se deixa ver não apenas em filosofias da ciência tão distintas quantas as de Karl Popper e Thomas Kuhn, quanto no dia a dia das nossas post-truth societies.

Essa ênfase sobre o papel da vontade alimentou minha posterior fascinação pela ideia de estabilidade, como produto híbrido lógico e psicológico (minha ideia de lógica é psicologista), e a consequente tendência à estabilidade que ela alimenta. Disso também se deriva minhas críticas às instituições, a opinião de que a reflexão tem um papel disruptivo para instituições e quadros normativos, mas essa já é uma outra história. Com essa postagem espero pelo menos ter conseguido tornar um pouco mais palatável meu artigo e tirá-lo da bruma conspiratória que o título inevitavelmente inspirava, pois esse tema me parece imensamente fascinante.

PS. Eu gosto de citar duas expressões da influência de Wittgenstein, especialmente em relação a essa desidratação da verdade. A primeira (controversa) é o texto de Richard Rorty chamado The Decline of Redemptive Truth and the Rise of a Literary Culture, o segundo é o artigo de Danièle Moyal-Sharrock chamado Animal in Epistemology. Os textos não são exatamente acessíveis a um público mais amplo, mas tem perspectivas interessantíssimas para quem se interessar por esses temas.

PPS. Apesar de minha empolgação ao escrever, o artigo não foi aceito pela revista à qual o enviei. E perdi a esperança de que fosse aceito por qualquer outra revista.

Convicção e Tendência à confirmação

Se a única ferramenta que você tem é um martelo, você tende a ver todo o problema como um prego

Abraham Maslow

O que determina a nossa tendência a fazer com que as coisas, as experiências e o sentido que lhes conferimos, sempre se ajustem a nossa visão de mundo? Uma resposta possível poderia ser: o fato de não termos alternativa e de não estarmos familiarizados com perspectivas diferentes da nossa. Como assim, não temos alternativa? Grande parte da nossa visão de mundo se constitui por inculcação, isto é, por meio do condicionamento (adestramento) que nos familiariza com certos conceitos, com certas ferramentas com as quais lidamos com o mundo. Não temos outras opções, os instrumentos que herdamos são os únicos com os quais podemos lidar com o mundo, de tal sorte que as coisas que ameaçam esse conjunto de instrumentos (que formam um sistema) correspondem a um perigo real. A mera repetição tem um papel fundamental na construção da nossa visão de mundo. O que se constitui por meio da repetição e do condicionamento — os conceitos, as ideias, as imagens — são as próprias lentes com que visamos toda a experiência possível, a moldura com que enxergamos a realidade. Essas lentes não são descartáveis, elas são a própria condição de toda experiência, tudo que pode acontecer, para que possa ter sentido, deve se ajustar a elas. Nada deve ficar do lado de fora. Assim, não ter alternativa significa não ser capaz de ver o mundo fora dessa moldura, de outra forma e segundo outra perspectiva.

Um exemplo bizarro talvez ajude a esclarecer o que quero dizer: imagine que você olha pro céu e vê uma baleia voando. Um exemplo menos extravagante não poderia dar conta do propósito do exemplo que é ilustrar o colapso de nossos paradigmas. Mesmo quem nunca estudou física e biologia sabe o disparate que é imaginar uma baleia voando. Os princípios e leis científicas não são nada mais do que o esforço para dar contornos nítidos à regularidade dos eventos naturais (por meio de leis naturais) que povoam nossa experiência. Uma lei como a lei da gravidade se reafirma cotidianamente, a cada a nova experiência, sempre que acidentalmente deixamos cair o pão ou a caneta. Se um evento francamente incompatível com essa lei pudesse acontecer — como no caso da baleia voadora — e não pudéssemos encontrar uma explicação razoável (um exemplo tão bizarro tem seus méritos), pareceríamos compelidos a revisar todo o marco de nossas explicações e nos veríamos numa situação difícil. As leis muito gerais da ciência, como a gravidade, mesmo que em tese sejam falsificáveis, como queria Popper, tem um papel tão importante na estruturação e no controle de toda a experiência que seu possível colapso nos levaria ao completo desamparo, isto é, a uma situação para a qual não estamos preparados e à qual aparentemente não saberíamos ao certo como reagir.

Mas o que isso tem a ver com a tendência à confirmação? Nossa visão de mundo é um sistema de crenças e sua estrutura é como a de um castelo de cartas no qual cada peça está direta ou indiretamente ligada às outras. Dentro desse sistema a possibilidade de certas mudanças implica transformações radicais em nossa visão de mundo e poderia nos levar de um mundo familiar, com o qual estamos acostumados, a um mundo estranho e imprevisível, com o qual ainda precisaríamos nos familiarizar. A tendência à confirmação é uma certa disposição diante da possibilidade de um desamparo epistêmico ou da falta de sentido, isto é, da possibilidade de estar diante de uma situação não familiar à qual não sabemos o que pensar e como agir. A convicção que caracteriza e acompanha essa tendência parece funcionar como um estabilizador de visões de mundo. Assim, tendemos as selecionar os fatos que salvaguardam nossa visão de mundo, pois não temos nenhuma outra para substitui-la caso aceitemos que algo possa de fato colocá-la em perigo. Mas isso não significa que a tendência a confirmação (e a convicção que a acompanha) seja uma tendência deliberada, voluntária e consciente para preservar a estabilidade de nossa visão de mundo, essa estabilidade é antes o resultado da falta de alternativas. Tendemos a preservar nossa visão de mundo porque, mesmo que alguma alternativa se apresente, ela será menos familiar que a nossa própria e a transição (a conversão) a uma nova perspectiva implicaria, no mínimo, algum desconforto, uma insegurança diante da experiência e a necessidade de uma readaptação. Nada pode nos compelir, nos obrigar a reavaliar as bases que estruturam nossa visão da realidade, por isso mesmo toda essa temática está estreitamente ligada à questão da vontade e de seu papel na manutenção de nossa perspectiva. Se é verdade que os fatos (a descoberta de fatos novos) estão no centro da perspectiva científica sobre o mundo e parecem poder determinar alterações substanciais na nossa percepção da realidade, é certo também que grande parte da nossa visão de mundo permanece surda aos apelos da razão (isto é, à pretensão racional de constranger e obrigar por meio de razões), estando antes ancorada na vontade, isto é, num dimensão imune a qualquer constrangimento causal ou racional (daí porque, nesse pontos nodais, falamos em persuasão e não em convencimento).

Tudo isso deveria nos levar a considerar mais cuidadosamente o papel da imaginação. Se a passagem a uma situação não familiar — portanto não controlável porque não sujeita às normas estruturantes que herdamos ao adquirir nossa visão de mundo — representa uma ameaça abertamente rejeitada pela nossa vontade (vontade e razão andam de mãos dadas), talvez a possibilidade de uma posição diferente diante do desamparo, das situações não familiares, de tudo aquilo que foge ao nosso sistema de convicções, possa resultar de um maior espaço concedido à imaginação. Naturalmente, a imaginação não pode criar familiaridade, quer dizer, levamos muito tempo para nos acostumarmos à nossa visão de mundo e a imaginação não pode, num piscar de olhos, converter uma perspectiva distinta em algo familiar, mas ela pode nos tornar mais abertos à mudança. A convicção não poucas vezes nos fecha às mudanças e, em termos éticos, nos fecha à diferença e à alteridade. A imaginação não é incompatível com a convicção, mas ela pode determinar uma atitude diferente diante daquilo que não se encaixa em nossa visão de mundo. O efeito mais danoso da tendência à confirmação é o isolamento e a impossibilidade de entender diferenças radicais, e esse parece um dos maiores desafios de um mundo globalizado (apesar dos efeitos homogeneizantes da globalização). Quer dizer, num mundo dominado pela ciência, é muito difícil não abraçar uma perspectiva na qual todas as diferenças podem ser reduzidas a um solo comum e universal. Diante disso, é natural que cada um acredite poder justificar suas perspectivas frente a outras — ciência é justificação. Assim, o apelo à imaginação reflete a compreensão de que, apesar dos muitos campos comuns da nossa experiência passíveis de serem arbitrados pela lógica da nossa linguagem, o sentido do nosso simbolismo comporta graus de inteligibilidade que não podem ser acessíveis senão por um esforço imaginativo de compreender as circunstâncias que conferem sentido à visão de mundo dos outros. E mesmo o mais importante cientista arrisca mostrar-se intolerante se a convicção em suas posições determinar um senso de universalidade que lhe impeça de compreender a pluralidade das visões de mundo possíveis e a singularidade que cada conjunto de circunstâncias engendra, a despeito do indeterminado número de aspectos compartidos (universais) entre as diferentes perspectivas.

PS. Apenas recentemente tomei conhecimento do tópico de investigação psicológica conhecido como confirmation bias, mas desde então o tema me interessa profundamente, embora eu não tenha encontrado ocasião para ler algo nada técnico a respeito. De todo modo, me parece que a questão pode ser aproximada à discussão sobre certeza, convicções e visões de mundo (num âmbito lógico, conforme o entendimento de Wittgenstein).
PPS. Não sem razão a lógica e a matemática sempre foram apresentados como modelos de racionalidade, isto é, da capacidade da razão de constranger, de conduzir-nos “por paredes muito rígidas”. A força do dever e da necessidade lógico-matemática. Razão é poder. — Mas essa força não se deriva da generalidade (universalidade) das suas leis, como pensavam os formalistas.