Paranormal

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A norma é o padrão de medida — como o padrão metro, ou polegada, ou pés, etc. — que define o que está conforme ou não ao que ela determina. É certo que no que se refere aos padrões de medida as gradações importam, enquanto que, quando falamos de normalidade e normal, tendemos a ver o que se determina em termos dicotômicos, separamos o normal e o não normal (ou anormal). Mas o anormal, aquilo que não se ajusta à regra, é parte do espectro mapeado pela norma, não está no lado de fora.

A impossibilidade de um lado exterior (um lado de fora) é uma questão importante em lógica. A lógica se ocupa do mais geral e a existência de um lado de fora supõe a possibilidade de pensar o impensável, o ilógico. O que está do lado de fora do que é lógico é ilógico e sem sentido. Portanto, se não podemos pensar o ilógico é porque a lógica preenche o mundo sem deixar espaços vazios. Embora a ciência não possa se ocupar da mesma maneira com o geral, ela tem também grandes ambições. A ciência também define uma totalidade (embora o que está do lado de fora não seja impossível, como na lógica), de tal maneira que não admite, assim como a lógica, um lado de fora. Por isso, por mais inusitado que seja um fenômeno com que uma ciência se ocupa, ele estará sempre no radar de suas normas — ainda que como um caso singular (um outlier, pensando em termos estatísticos). Isso significa que a ciência não precisa e não deve utilizar o termo paranormal para designar eventos inexplicados, de outro modo ela estaria admitindo não apenas que não sabe algo, mas também que não pode saber.

Todo quadro normativo nos apresenta o mundo como se não houvesse um lado de fora ao campo constituído por suas regras prescritivas, eu chamo isso de cegueira normativa. A cegueira normativa é fenômeno psicológico, embora pareça ter bases lógicas. Não há nenhuma barreira lógica que nos impeça de entender uma contradição.

As regras da gramática são num mesmo sentido arbitrárias e não arbitrárias, como a escolha de uma unidade de medida.

Wittgenstein, big typescript

Ou melhor, claro que há. Ao dizer uma contradição você viola uma das leis básicas da lógica, mas nada te impede de dizer, por exemplo, “Chove e não chove!”. De maneira geral ninguém faz uma afirmação fatual tão categórica usando contradições, porque salta os olhos o fato de que a gente não sabe o que fazer com esse tipo de enunciado. Mas os contextos mais amplos permitem que uma contradição diga coisas importantes sem parecer sem sentido, como no comentário de Wittgenstein acima — um dos tantos em que ele usa contradições para dizer coisas importantes. O que eu queria dizer com esse arrudeio é que a cegueira normativa não se explica pela lógica, mas pela psicologia. Pela necessidade de estabilidade exigida por nossa saúde mental, pela necessidade de acordos. Se bem que, pensando melhor, não há porque dizer que a psicologia exige a estabilidade, pois sem acordos fundamentais tampouco pode haver linguagem e lógica (sem suficiente regularidade). Por isso grande parte das reflexões sobre a lógica e a linguagem desde o século XIX até hoje estão ocupadas em dizer as condições de possibilidade do sentido.

Se algum incauto ainda resistiu a esse tormento estará se perguntando qué coño tiene todo eso que ver com o paranormal? O paranormal é a afirmação de que a ciência necessariamente tem um lado de fora inalcançável. Dizer que a totalidade dos fenômenos conhecidos pela ciência não é a totalidade do real é uma trivialidade, pois todos aceitam que ainda temos muito o que conhecer. Contudo, dizer que há elementos do real que por sua constituição escapam ao que a ciência pode descrever é outra coisa, é afirmar uma limitação constitutiva dos nossos próprios instrumentos epistêmicos. O paranormal vai um pouco por essa linha.

Holly Gibney (Cynthia Erivo) em Outsider.

Na verdade na verdade, esse texto é inteiramente motivado pela série Outsider, pelo modo engenhoso como ela apresenta a ideia do paranormal. Uma série que fala do bicho papão (boogeyman, el cuco, etc.) é no mínimo curiosa. Não acho que ela seja pra todo mundo, mas eu gostei bastante justo porque a paranormal em questão (Holly Gibney) é apresentada não como uma fanática por coisas ocultas, mas por uma espécie de Sheldon Cooper resignada pela impossibilidade de explicar seus dons (maldições?).

O artista Stephen Wiltshire consegue pintar cenários imensamente complexos pela mera contemplação em poucos instantes. Ele não é um paranormal, embora o altismo não esteja no espectro do que nos ensinam que seja normal.

Num dos episódios da série Holly conta como chegou a ser internada por seus pais porque eles (lamentável e compreensivelmente) se assustavam com suas capacidades, com sua memória prodigiosa, por exemplo, capaz de reter os mínimos detalhes das coisas — quase como um Funes, el memorioso. Não é triste que a necessária estabilidade que nos permite a comunicação seja também a própria barreira que nos impede de enxergar coisas belas nos outros? Que nos espante o que foge à norma e que o costume do normal torne certas coisas simplesmente invisíveis?

PS. O relativismo é uma inevitável consequência da cegueira normativa.
PPS. O nascimento do normal é um dos aspectos mais estimulantes do pensamento de Foucault.
PPS. A série é baseada no livro de Stephen King e ele fez parte da produção da série.

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