Paranormal

A norma é o padrão de medida — como o padrão metro, ou polegada, ou pés, etc. — que define o que está conforme ou não ao que ela determina. É certo que no que se refere aos padrões de medida as gradações importam, enquanto que, quando falamos de normalidade e normal, tendemos a ver o que se determina em termos dicotômicos, separamos o normal e o não normal (ou anormal). Mas o anormal, aquilo que não se ajusta à regra, é parte do espectro mapeado pela norma, não está no lado de fora.

A impossibilidade de um lado exterior (um lado de fora) é uma questão importante em lógica. A lógica se ocupa do mais geral e a existência de um lado de fora supõe a possibilidade de pensar o impensável, o ilógico. O que está do lado de fora do que é lógico é ilógico e sem sentido. Portanto, se não podemos pensar o ilógico é porque a lógica preenche o mundo sem deixar espaços vazios. Embora a ciência não possa se ocupar da mesma maneira com o geral, ela tem também grandes ambições. A ciência também define uma totalidade (embora o que está do lado de fora não seja impossível, como na lógica), de tal maneira que não admite, assim como a lógica, um lado de fora. Por isso, por mais inusitado que seja um fenômeno com que uma ciência se ocupa, ele estará sempre no radar de suas normas — ainda que como um caso singular (um outlier, pensando em termos estatísticos). Isso significa que a ciência não precisa e não deve utilizar o termo paranormal para designar eventos inexplicados, de outro modo ela estaria admitindo não apenas que não sabe algo, mas também que não pode saber.

Todo quadro normativo nos apresenta o mundo como se não houvesse um lado de fora ao campo constituído por suas regras prescritivas, eu chamo isso de cegueira normativa. A cegueira normativa é fenômeno psicológico, embora pareça ter bases lógicas. Não há nenhuma barreira lógica que nos impeça de entender uma contradição.

As regras da gramática são num mesmo sentido arbitrárias e não arbitrárias, como a escolha de uma unidade de medida.

Wittgenstein, big typescript

Ou melhor, claro que há. Ao dizer uma contradição você viola uma das leis básicas da lógica, mas nada te impede de dizer, por exemplo, “Chove e não chove!”. De maneira geral ninguém faz uma afirmação fatual tão categórica usando contradições, porque salta os olhos o fato de que a gente não sabe o que fazer com esse tipo de enunciado. Mas os contextos mais amplos permitem que uma contradição diga coisas importantes sem parecer sem sentido, como no comentário de Wittgenstein acima — um dos tantos em que ele usa contradições para dizer coisas importantes. O que eu queria dizer com esse arrudeio é que a cegueira normativa não se explica pela lógica, mas pela psicologia. Pela necessidade de estabilidade exigida por nossa saúde mental, pela necessidade de acordos. Se bem que, pensando melhor, não há porque dizer que a psicologia exige a estabilidade, pois sem acordos fundamentais tampouco pode haver linguagem e lógica (sem suficiente regularidade). Por isso grande parte das reflexões sobre a lógica e a linguagem desde o século XIX até hoje estão ocupadas em dizer as condições de possibilidade do sentido.

Se algum incauto ainda resistiu a esse tormento estará se perguntando qué coño tiene todo eso que ver com o paranormal? O paranormal é a afirmação de que a ciência necessariamente tem um lado de fora inalcançável. Dizer que a totalidade dos fenômenos conhecidos pela ciência não é a totalidade do real é uma trivialidade, pois todos aceitam que ainda temos muito o que conhecer. Contudo, dizer que há elementos do real que por sua constituição escapam ao que a ciência pode descrever é outra coisa, é afirmar uma limitação constitutiva dos nossos próprios instrumentos epistêmicos. O paranormal vai um pouco por essa linha.

Holly Gibney (Cynthia Erivo) em Outsider.

Na verdade na verdade, esse texto é inteiramente motivado pela série Outsider, pelo modo engenhoso como ela apresenta a ideia do paranormal. Uma série que fala do bicho papão (boogeyman, el cuco, etc.) é no mínimo curiosa. Não acho que ela seja pra todo mundo, mas eu gostei bastante justo porque a paranormal em questão (Holly Gibney) é apresentada não como uma fanática por coisas ocultas, mas por uma espécie de Sheldon Cooper resignada pela impossibilidade de explicar seus dons (maldições?).

O artista Stephen Wiltshire consegue pintar cenários imensamente complexos pela mera contemplação em poucos instantes. Ele não é um paranormal, embora o altismo não esteja no espectro do que nos ensinam que seja normal.

Num dos episódios da série Holly conta como chegou a ser internada por seus pais porque eles (lamentável e compreensivelmente) se assustavam com suas capacidades, com sua memória prodigiosa, por exemplo, capaz de reter os mínimos detalhes das coisas — quase como um Funes, el memorioso. Não é triste que a necessária estabilidade que nos permite a comunicação seja também a própria barreira que nos impede de enxergar coisas belas nos outros? Que nos espante o que foge à norma e que o costume do normal torne certas coisas simplesmente invisíveis?

PS. O relativismo é uma inevitável consequência da cegueira normativa.
PPS. O nascimento do normal é um dos aspectos mais estimulantes do pensamento de Foucault.
PPS. A série é baseada no livro de Stephen King e ele fez parte da produção da série.

O espírito de um tempo

Há poucas coisas mais cansativas do que ler a crítica dos defensores da ciência contra o terraplanismo e as teorias da conspiração. É uma receita de aborrecimento. Não simpatizo com essas ideias e adoro ciência e tecnologia, mas não gosto dos seus defensores. A ciência virou um dogma da sociedade capitalista*, algo que as pessoas se sentem impelidas a defender, mas quando lhes perguntamos sobre o lugar da ciência e do conhecimento na sociedade tudo que elas oferecem são platitudes que deixam claro que elas nunca se questionaram seriamente sobre a importância disso que defendem com tanta veemência. Diante desses lugares comuns, inevitável não se sentir compelido a bancar o advogado do diabo. Resistirei a essa tentação porque não é isso o que me interessa agora.

Muitos dos fenômenos que nos espantam, da post-truth até o fortalecimento dos movimentos new age, dizem algo sobre o espírito do nosso tempo. Não há mais perspectivas holísticas em ciência, a coisa mais próxima disso é o anseio de unificar a gravidade à teoria quântica dos campos e produzir assim uma teoria de tudo, a expressão mais geral do conhecimento humano. Mas a generalidade dessa teoria, embora tenha a abrangência que a determinação lhe confere, é inteiramente analítica, constitui-se a partir das partículas elementares da matéria e de suas leis fundamentais — não é uma visão sintética do mundo. Além do que, é uma teoria restrita a técnicos muito bem preparados, não pode oferecer ao mundo senão mais promessas de domínio técnico. As pessoas estão cansadas de promessas técnicas. Sempre que alguém critica os rumos da inquestionável civilização ocidental surge a torto e a direito quem se disponha a justificá-la oferecendo estatísticas de quanto nós estamos melhores em um sem número de aspectos. E quem questiona isso? Se a crítica aos rumos dessa civilização significasse uma recusa de tudo de positivo e valioso que ela nos oferece essa objeção seria compreensível. É difícil pra quem não entende o papel da técnico da justificação (verdade) compreender o drama da vida humana. Sobretudo agora que a filosofia também foi relegada a um domínio estritamente técnico.

Enquanto os cientistas sonham em fabricar uma solução técnica para todos os problemas do mundo, as pessoas sentem falta de participar de algo maior do que a vida atomizada a que foram confinadas. O papel que lhes cabe nesse teatro é o de meramente assentir ao que dizem autoridades competentes, mas nem sempre foi assim. Até Goethe, von Humboldt e outras grandes figuras as atividades intelectuais que depois viemos a chamar de ciência tinham a preocupação de articular os mais variados domínios da experiência humana oferecendo uma visão global cuja sofisticação nada deve à atividade científica contemporânea, mas que não se reduzia ao domínio técnico.

O que resta ao defensores da ciência é acusar de ignorância e irracionalidade os que se recusam a aceitar a autoridade científica e a força de suas verdades. Faz parte do jogo. Mas não dá pra negar há muitas pistas que deveriam nos fazer pensar sobre a relação entre o conhecimento e a vida na sociedade científica. Fenômenos que gostaríamos de pensar como marginais e isolados se avolumam constituindo forças paralelas às forças institucionais da ciência, ramificando-se e se fortalecendo numa dinâmica desconhecida cujos efeitos ainda nos são imprevisíveis. Não podemos compreender o que não respeitamos, o que não olhamos de frente, com honestidade e compreensão. Dar as costas às pessoas em nome da arrogância científica só pode levar à incompreensão de fenômenos que se avolumam a revelia do que podemos ver. Não surpreenderá se formos atropelados por algo completamente fora do radar. Apesar de todas as benesses, o espírito do nosso tempo está cada vez mais distante do espírito científico e não é simplesmente porque as pessoas são ignorantes renitentes. E honestamente, não é de se estranhar. Inspirar é mais difícil que criticar.


* Dogma é tudo aquilo que não questionamos, sobre o que não refletimos, mas tão somente aceitamos como algo que não deve ser posto em dúvida, em razão do papel central que o adestramento tem na constituição da nossa subjetividade. Não existem bons dogmas, há apenas dogmas e seus efeitos. A cada momento histórico novas justificações devem ser construídas para nossas perspectivas, mesmo as que nos são mais caras.

A teimosia como questão filosófica

Há algum tempo eu tenho insistido num ponto: eliminar a arbitrariedade, a vontade e qualquer coisa que escape à determinação causal da ciência corresponde à tarefa de um determinado projeto de racionalidade. Um projeto estreitamente vinculado a concepções filosóficas entretecidas à Matemática e à Lógica. De acordo com esse marco teórico, a distinção kantiana entre o reino da Liberdade e o reino da Natureza deve ser abandonada e assim ficaríamos apenas com a Natureza. Muitas perspectivas interessantes se derivam das ideias ligadas a esse projeto. No entanto, embora sua força e seus efeitos se vejam claramente em casos como a Cambridge Analytica, fenômenos comuns e decisivos do uso da linguagem escapam de sua pretensão generalista e determinista. Nas suas anotações Wittgenstein recorta uma frase de Schopenhauer que pode ser um bom ponto de partida para olhar desses fenômenos:

Se você se encontra perplexo tentando convencer alguém de algo sem ser capaz de sair do lugar, diga a si mesmo que é a vontade e não o intelecto o que você está enfrentando.

Como é possível conceber a mudança sem ter em conta a adesão que as pessoas tem às suas crenças e visão de mundo? Que estratégia podemos empregar para levá-las a crer naquilo que julgamos necessário se não consideramos a estabilidade que uma visão de mundo produz e a instabilidade gerada pelo seu abandono?

Sistemas de referências como estabilizadores lógicos e psicológicos formam um tema que me interessa muitíssimo e sobre o qual já escrevi aqui e em outros lugares, mas há ainda outro aspecto que anda lado a lado a essa discussão. O produto psicológico da certeza (lógica) é a convicção, e do sentimento de convicção se deriva, não poucas vezes, a confiança. A confiança é um elemento indispensável para que certas ideias possam produzir resultados que nos parecem naturais: um inventor, um cientista, um escritor, qualquer um quem que, dentro de um dado paradigma, tenha uma ideia dissonante precisa ter confiança suficiente para afirmar suas ideias, a despeito da recepção e das críticas. Entretanto, essa confiança não é a marca dos gênios e das pessoas verdadeiramente investidas de uma visão nova e transformadora. Em realidade, a confiança é mais comum do que parece e dela não se pode inferir nada sobre a qualidade e o valor das ideias de quem a possui.

A confiança não apenas estabiliza uma visão de mundo, ela tende a promover e projetar as crenças e ideias que a caracterizam. Disso resulta uma situação embaraçosa: se por um lado a confiança é imprescindível para que ideias novas possam projetar-se e produzir efeitos que só o novo pode nos trazer, por outro, o fato de que ela seja tão bem distribuída quanto o bom senso de que fala Descartes parece produzir o efeito de impedir que as pessoas mudem a forma como pensam.

O bom senso é a coisa mais bem distribuída do mundo: pois cada um pensa estar tão bem provido dele, que mesmo aqueles mais difíceis de se satisfazerem com qualquer outra coisa não costumam desejar mais bom senso do que têm.

Descartes, discurso do método

Disso tudo resultam dúvidas exasperantes: qual é a medida entre a convicção e a incerteza? Que relação deve haver entre o conhecimento e a ignorância? É possível passar toda a vida escrevendo sobre esse tema sem esgotá-lo, mas o que me interessa agora é salientar que, embora a questão se ramifique ou se entrelace a um sem número de outras (como a tendência a confirmação), uma palavra muito comum pode apresentar de modo simples o que está na raiz de toda essa discussão: teimosia. A teimosia dá conta dessa resistência da vontade, da face negativa, por assim dizer, da confiança e da estabilidade. Trata-se inegavelmente de um problema filosófico significativo: qual é o papel da resistência nos intercâmbios linguísticos e nos usos do discurso?

Há mais variáveis nessa discussão do que minha incipiente capacidade de sistematizar me permite gerenciar, portanto a seguir eu vou colocar três pontos torcendo para que lhes pareça claro o vínculo entre todas essas ideias.

Nietzsche tinha um modo curioso de conceber uma certa expressão da força de caráter:

A estreiteza de opiniões, transformada em instinto pelo hábito, leva ao que chamamos de força de caráter. Quando alguém age por poucos, mas sempre os mesmos motivos, seus atos adquirem grande energia; se esses atos harmonizarem com os princípios dos espíritos cativos, eles serão reconhecidos e também produzirão, naquele que os perfaz, o sentimento da boa consciência. Poucos motivos, ação enérgica e boa consciência constituem o que se chama força de caráter. Ao indivíduo de caráter forte falta o conhecimento das muitas possibilidades e direções da ação; seu intelecto é estreito, cativo, pois em certo caso talvez lhe mostre apenas duas possibilidades; entre essas duas ele tem de escolher necessariamente, conforme sua natureza, e o faz de maneira rápida e fácil, pois não tem cinqüenta possibilidades para escolher.

Nietzsche, humano, demasiado humano, § 228

É inevitável lembrar de um certo capitão reformado do Exército berrando, com enorme convicção, ante um apático jornalista: “através do voto cê não vai mudar nadaaaaa nesse país”. Não dá pra negar que a estreiteza confere muita força às palavras e às ações, e não sem razão as pessoas se sentem atraídas por discursos carregados de convicção.

Nesse mesmo contexto, ao examinar questão do gênio, Nietzsche destacou que é tortuoso e incerto o caminho pelo qual o gênio poderia conferir às suas próprias ações a mesma energia que uma pessoa estreita manifestava.

Comparado àquele que tem a tradição a seu lado e não precisa de razões para seus atos, o espírito livre é sempre débil, sobretudo na ação; pois ele conhece demasiados motivos e pontos de vista, e por isso tem a mão insegura, não exercitada. Que meios existem para torná-lo relativamente forte, de modo que ao menos se afirme e não pereça inutilmente?

Nietzsche, humano, demasiado humano, § 230

Nas últimas décadas essa a debilidade do gênio e a confiança dos estreitos, por assim dizer, tem atraído o interesse científico por causa de investigações psicológicas como as do chamado Efeito Dunning-Kruger. Esse efeito pretende explicar a inclinação das pessoas estreitas e obtusas a sobrevalorizar suas competências e, por outra parte, a tendência dos espíritos verdadeiramente fortes a menosprezar suas habilidades. Não é à toa que Nietzsche se considerava um psicólogo sem igual.

Por fim, em certa medida a teimosia, a confiança e a convicção são elementos indispensáveis, pois não parece nem possível nem desejável simplesmente eliminá-las. No entanto, mesmo no melhor dos casos, quando a convicção acompanha ideias geniais e transformadoras, há sempre o risco de que assim também se engesse uma visão de mundo. Talvez o aspecto que mais tardia e inadvertidamente tenha me chamado atenção no pensamento de Wittgenstein seja seu descompromisso com a estabilidade. Suas ideias eram reformadas numa velocidade que tornava quase impraticável acompanhá-las, essa era uma queixa conhecida entre alguns de seus amigos. O desapego à estabilidade pode bem denotar uma atitude valiosa a respeito da relação entre conhecimento e ignorância. Esse texto já está longo e coalhado de citações, mas permitam uma última:

Ao escrevermos, como evitar que escrevamos sobre aquilo que não sabemos ou que sabemos mal? É necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo a dizer. Só escrevemos na extremidade de nosso próprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber e nossa ignorância e que transforma um no outro. É só deste modo que somos determinados a escrever. Suprir a ignorância é transferir a escrita para depois ou, antes, torná-la impossível. Talvez tenhamos aí, entre a escrita e a ignorância, uma relação ainda mais ameaçadora que a relação geralmente apontada entre a escrita e a morte, entre a escrita e o silêncio.

Gilles deleuze, diferença e repetição (prólogo)

Eu acredito que as armadilhas da convicção só podem ser superadas quando nos parecer natural não apenas admitir alguma instabilidade em nossa visão de mundo mas também estar a vontade com a nossa própria ignorância. É difícil conceber a comunicação e o entendimento como ferramentas capazes de responder às exigências de transformação que teremos que levar a cabo nas próximas (décadas && séculos) sem incorporar esses dois elementos à nossa cultura e subjetividade. Toda a tradição determinista, aquela que eu mencionei no primeiro parágrafo, dá aos acordos um valor desmedido e por isso pouco ou nada tem a oferecer ante aos conflitos e desacordos que, camufladamente, abundam na vida humana. É o caráter desestabilizador dos conflitos e desacordos aquilo sobre o que deveríamos meditar. Quero num outro momento escrever sobre esses desacordos.


PS. Ao longo da história humana muita gente boa notou a convicção dos estúpidos e a sua contraparte, mas não dá pra deixar de lembrar de Yeats, em The Second Coming:

The best lack all conviction, while the worst
Are full of passionate intensity.

O dever da expressão

Quando se é uma pessoa chata como eu é preciso ter cuidado para não revelar a chatice muy a menudo. Em que situação alguém revela sua chatice? Por exemplo, quando expressa sua opinião sem ter sido perguntado. Pra ilustrar a situação, imagine que você está com um grupo de amigos e esses amigos encontram outro grupo que você não conhece. Fantástico, os amigos dos amigos são amigos. Em certo momento, num dos grupos de conversa que se formaram um dos amigos dos seus amigos começa a tecer loas à ciência, fala sobre como os cientistas vão livrar o mundo dos seus problemas, apesar dos políticos. Apesar da política. E suponhamos que você pensa quase o oposto. Só não digo o oposto simplesmente e sem ressalvas porque sua perspectiva não é exatamente uma oposição à ciência, mas uma crítica ao que se tornou a ciência (como instituição) — e uma dúvida corrosiva sobre a possibilidade da ciência resolver nossos “problemas”. O que você faria nessa situação? Você simplesmente escutaria calado tudo que é dito? Fingiria que não está escutando? Ou diria a sua opinião mesmo que ela seja bem diferente da que se expõe e sem que ninguém tivesse perguntado?

Como bom chato, eu diria minha opinião. Na minha cabeça de chato toda pessoa que expressa uma ideia em público aceita e endossa a possibildade de vê-la questionada, por mais central que a verdade dessa ideia possa ser para manter incólume o arcabouço da sua visão de mundo. Isso gera uma atitude chata, mas nem tão danosa, apenas surpreendentemente de pouco efeito, tendo em conta que se deriva da confiança e do compromisso com a razão, a palavra, o argumento, a lógica — a verdade. A razão produz poucos efeitos (talvez seja melhor dizer efeitos imediatos). Porque ninguém abandona uma visão de mundo porque outra pessoa lhe apresentou uma verdade, o jogo argumentativo e sua maior arma — a coerção, o constragimento racional (romanticamente celebrado nas ciências formais) — funcionam até certo ponto. Não é como se a verdade fosse um solvente de visões de mundo, ao contrário, quanto mais forte é o arcabouço de uma visão de mundo menos poderosa é a verdade contra ela (e tendemos a preservar a estabilidade desse estado de coisas). Pois a força de uma visão de mundo reside justamente no fato dela estar fora desse âmbito bipolar onde ela estaria exposta à possibilidade de ser falseada, é como se ela passasse a um outro patamar de verdade, a uma outra modalidade. Como se sua verdade passesse do estatuto de verdade contingente ao de verdade necessária. Como se se transformasse numa verdade analítica, dessas que não podem ser contrariadas pela experiência (ela se transforma numa espécie de eixo). E por isso eu sou chato, porque eu acredito (ou acreditei por muito tempo) honestamente em sandices como esse endosso implícito à possibilidade de revisão. As pessoas não-chatas sabiam algo que eu não notava, porque eu pressupunha erroneamente. Elas sabiam que a expressão de ideias nunca era um convite ao debate, à discussão. Nunca era a expressão de uma abertura ao debate e à revisão. Às vezes acontecia até de os mais apaixonados defensores das suas ideias serem também os mais ferozes opositores de qualquer crítica, por mais que sua paixão me fizesse pensar que eles abraçavam a pluralidade com igual entusiasmo — como seria de se esperar. E ainda que a sensação de ser chato me asfixiasse por dentro, ela parecia fazer mais sentido do que acreditar que as pessoas não estavam abertas a mudar.

Hoje faz mais sentido acreditar que a arbitrariedade é um componente indissociável de qualquer sistema de crenças. Indissociável. E que o desejo de estabilidade é quase sempre muito mais forte do que a paixão pela verdade. É claro que as pessoas não costumam pensar que a verdade e a estabilidade são coisas independentes, ao contrário. Elas pensam que a estabilidade se deriva da verdade: a estabilidade de nossas visões de mundo está ancorada na força das verdades que as constituem. Não lhes ocorre pensar que é o apego à estabilidade de nossas visões de mundo que empresta uma força indestrutível às nossas verdades, uma força que enfraquece a pluralidade em nome de uma unidimensionalidade incondicional (porque necessária). Esse desejo por estabilidade a que todos nós tendemos tem muitos nomes e expressões, mas ele inevitavelmente converge a um desejo de determinação.

Esse texto é um pouco desonesto porque embora ele se chame “o dever da expressão” eu não acredito que a expressão seja um dever. É verdade que a tentação de expressar minha opinião é forte e quase inescapável, porque eu acho que todo uso da linguagem é político. A linguagem tem uma dimensão constitutivamente pública (não privada), mesmo quando se escreve para ninguém. Ou mesmo quando se escreve para si mesmo. Mas isso não significa que há alguma coisa como um dever da expressão. Em realidade, ainda que ter entendido certas coisas tenha mudado minha opinião sobre mim mesmo, na maior parte das vezes eu ainda evito falar, como quem teme ser chato. É desagradável falar com pessoas que não estão verdadeiramente dispostas a escutar, que não estão abertas a entender (concordar é uma outra história), mesmo que tenham sempre tanta vontade de falar *. Escutar e a generosidade do esforço de entender se transformaram em atitudes reservadas às amigas e amigos, às pessoas próximas, aos grupos com os quais nos identificamos. De qualquer modo, esse tema me lembrou uma das frases de que eu mais gosto, sacada de um livro de Somerset Maugham, e que diz de modo breve e claro algo cujo alcance nos custa entender:

Pode-se conduzir um cavalo à beira d’água mas não se pode obrigá-lo a beber


* E o silêncio? O silêncio é um tema que tem me fascinado porque pode ser entendido como um regulador do pensamento, que controla seu ritmo (de processamento, por assim dizer), sua duração, edita sua expressão, aperfeiçoa por consequência a capacidade de ouvir e escutar (já que não podemos entender se estamos pensando ao mesmo tempo outra coisa mais importante [de maior prioridade em termos de recursos de processamento]). Mas o que me encanta no silêncio é sua, por assim dizer, oposição simbólica à vontade de falar.

A mentira está em busca de uma audiência

É fácil ridicularizar qualquer ideia e pensamento, basta estar diante de uma audiência que já concorda com as ideias que você defende. Para ridicularizar não é preciso mais que uma audiência. Nenhuma verdade. A verdade não tem nenhuma importância aqui. Quando as pessoas já estão de acordo sobre alguma coisa, o que se diz sobre essa coisa é na maior parte das vezes uma questão de publicidade, de controle sobre a opinião dos outros, nunca de verdade, de razão — ou de ciência. A sociedade tecnológica olha com nojo o pensamento não-científico — e os profundos acordos que o tornam possível — como uma espécie de barbarismo, algo a ser remediado pela verdade que os técnicos conhecem. Tudo é uma questão de saber a verdade, de ter uma sociedade orientada à verdade. Mas a verdade virou a Virgem de Pilar. Os donos do mundo e os técnicos que trabalham para eles não sabem como essa verdade asséptica — capaz de curar o barbarismo de certos pensamentos e trazê-los de volta a reta razão — toca a vida real das pessoas. E porque eles não sabem isso, não são capazes senão de criar paliativos enquanto vendem a ilusão de que há respostas sistêmicas aos múltiplos desafios que enfrentamos. Bactérias que devoram plástico. Plantações que não precisam solo orgânico.

Enquanto uma solução técnica para o mundo vai sendo forjada em algum laboratório ou centro de pesquisa — ainda que os donos desses laboratórios estejam cagados de medo de colapsos sociais, como conta Douglas Rushkoff —, outros acordos vão sendo urdidos às margens da ciência e das bases epistêmicas da bendita civilização ocidental. Acordos que não podemos entender pelo simples fato de que não estamos prestando atenção. Ninguém presta atenção senão desinteressadamente a algo que julga inferior. Talvez esses que endossam os novos acordos estejam muito longe de onde estamos e por isso não escutamos os acordos sendo selados. Acordos que envolvemos o medo, que são reações ao medo. Um medo que os donos do mundo não entendem senão como ficção — ou como terrorismo —, um medo muito distante da vida real dessas pessoas, porque naturalmente, como todos nós, elas vivem em suas bolhas. Deve ser por isso que o terror tem se transformado numa das mais interessantes expressões da criatividade cinematográfica. De qualquer forma, é preciso deter o medo, pois o medo sempre foi capaz de reunir grandes audiências. A mentira está em busca de uma audiência e ela tem sido tremendamente eficiente nessa busca. Os donos da verdade, por outro lado, seguem acreditando ingenuamente que basta brandi-la para que os outros a reconheçam e a aceitem, eles tem atrofiada sua capacidade de se fazer entender, de conectar verdades cada vez mais abstratas e compartimentalizadas em nichos de saber especializado à vida real das pessoas. Quem pode determinar que efeitos se seguirão da prevalência de acordos muito diferentes dos que lastreiam a ciência e a verdade?