O espírito de um tempo

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Há poucas coisas mais cansativas do que ler a crítica dos defensores da ciência contra o terraplanismo e as teorias da conspiração. É uma receita de aborrecimento. Não simpatizo com essas ideias e adoro ciência e tecnologia, mas não gosto dos seus defensores. A ciência virou um dogma da sociedade capitalista*, algo que as pessoas se sentem impelidas a defender, mas quando lhes perguntamos sobre o lugar da ciência e do conhecimento na sociedade tudo que elas oferecem são platitudes que deixam claro que elas nunca se questionaram seriamente sobre a importância disso que defendem com tanta veemência. Diante desses lugares comuns, inevitável não se sentir compelido a bancar o advogado do diabo. Resistirei a essa tentação porque não é isso o que me interessa agora.

Muitos dos fenômenos que nos espantam, da post-truth até o fortalecimento dos movimentos new age, dizem algo sobre o espírito do nosso tempo. Não há mais perspectivas holísticas em ciência, a coisa mais próxima disso é o anseio de unificar a gravidade à teoria quântica dos campos e produzir assim uma teoria de tudo, a expressão mais geral do conhecimento humano. Mas a generalidade dessa teoria, embora tenha a abrangência que a determinação lhe confere, é inteiramente analítica, constitui-se a partir das partículas elementares da matéria e de suas leis fundamentais — não é uma visão sintética do mundo. Além do que, é uma teoria restrita a técnicos muito bem preparados, não pode oferecer ao mundo senão mais promessas de domínio técnico. As pessoas estão cansadas de promessas técnicas. Sempre que alguém critica os rumos da inquestionável civilização ocidental surge a torto e a direito quem se disponha a justificá-la oferecendo estatísticas de quanto nós estamos melhores em um sem número de aspectos. E quem questiona isso? Se a crítica aos rumos dessa civilização significasse uma recusa de tudo de positivo e valioso que ela nos oferece essa objeção seria compreensível. É difícil pra quem não entende o papel da técnico da justificação (verdade) compreender o drama da vida humana. Sobretudo agora que a filosofia também foi relegada a um domínio estritamente técnico.

Enquanto os cientistas sonham em fabricar uma solução técnica para todos os problemas do mundo, as pessoas sentem falta de participar de algo maior do que a vida atomizada a que foram confinadas. O papel que lhes cabe nesse teatro é o de meramente assentir ao que dizem autoridades competentes, mas nem sempre foi assim. Até Goethe, von Humboldt e outras grandes figuras as atividades intelectuais que depois viemos a chamar de ciência tinham a preocupação de articular os mais variados domínios da experiência humana oferecendo uma visão global cuja sofisticação nada deve à atividade científica contemporânea, mas que não se reduzia ao domínio técnico.

O que resta ao defensores da ciência é acusar de ignorância e irracionalidade os que se recusam a aceitar a autoridade científica e a força de suas verdades. Faz parte do jogo. Mas não dá pra negar há muitas pistas que deveriam nos fazer pensar sobre a relação entre o conhecimento e a vida na sociedade científica. Fenômenos que gostaríamos de pensar como marginais e isolados se avolumam constituindo forças paralelas às forças institucionais da ciência, ramificando-se e se fortalecendo numa dinâmica desconhecida cujos efeitos ainda nos são imprevisíveis. Não podemos compreender o que não respeitamos, o que não olhamos de frente, com honestidade e compreensão. Dar as costas às pessoas em nome da arrogância científica só pode levar à incompreensão de fenômenos que se avolumam a revelia do que podemos ver. Não surpreenderá se formos atropelados por algo completamente fora do radar. Apesar de todas as benesses, o espírito do nosso tempo está cada vez mais distante do espírito científico e não é simplesmente porque as pessoas são ignorantes renitentes. E honestamente, não é de se estranhar. Inspirar é mais difícil que criticar.


* Dogma é tudo aquilo que não questionamos, sobre o que não refletimos, mas tão somente aceitamos como algo que não deve ser posto em dúvida, em razão do papel central que o adestramento tem na constituição da nossa subjetividade. Não existem bons dogmas, há apenas dogmas e seus efeitos. A cada momento histórico novas justificações devem ser construídas para nossas perspectivas, mesmo as que nos são mais caras.

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