Por que soa ingênuo falar de amor?

Essa imagem é uma comédia!

Não há quem possa negar a capacidade mobilizadora do ódio, especialmente na triste circunstância em que nos encontramos, cercados por bolsonaristas. No entanto, mesmo entre soi-disant cristãos, falar de amor parece ingênuo, pois é como se estivéssemos convidando alguém a tomar parte do universo dos ursinhos carinhosos. A crítica da ingenuidade é parte fundamental das tarefas dos homens (do patriarcado), pois cabe às princesas o sonho e a fantasia (a utopia). Aos homens cabe ter medo, mas como homens não devem ter medo (pois assim reza a cartilha), esse medo é devidamente mascarado de tal modo que a desconfiança e malícia dos espertos são os únicos elementos que se veem da superfície. Por cierto, outra coisa que nos faz lembrar o bolsonarismo é que há de caricato (e nefasto) na identidade masculina.

O amor de Jesus é, ou deveria ser, um instrumento revolucionário, mas foi devidamente esterilizado pela hipocrisia capitalista e transformado num discurso vazio, completamente isolado das práticas e ações. Não por outra razão os evangélicos são apoiadores de primeira hora de Bolsonaro e são comuns imagens patéticas de pastores em comunhão com um defensor da tortura e do estupro. A parte que mais concretamente concerne ao capitalismo na esterilização do amor diz respeito à sua transformação num produto, num modelo que pode ser convertido em imagem/totem a ser vendido no mercado. O que se vende no mercado capitalista não são apenas produtos, todos sabem disso, mas também ideias, paradigmas, modos de ser e até de amar. Tudo que é replicável, reprodutível, repetível está à venda. Embora o prazer seja o principal produto do mercado subjetivo capitalista, no mercado intersubjetivo o amor reina. O amor romântico é vendido como experiência partilhada de bem-estar, alegria e felicidade, experiência perfeitamente ajustável ao padrão instagramável de visibilidade. Exposto e vendido como produto, nesse amor se repetem padrões fabricados ou absorvidos pelo mercado com a finalidade de fazer com que qualquer pessoa possa reconhecê-lo como inegável manifestação de sucesso, êxito e realização — de tudo que é pública e consensualmente desejável. No mercado, onde estão todos competindo para serem melhores que os outros, a realização do amor romântico é uma meta das mais valiosas, pois dá prestígio e respeitabilidade a quem a alcança, lhe dá poder simbólico.


A expansão dos serviços que a internet a um só tempo escoa e estimula faz com que o papel das empresas como agentes publicitários seja suplementados pelas próprias pessoas. A capacidade de persuasão (quase coerção) que antes parecia restrita às empresas capazes de bancar gordos orçamentos publicitários agora está também ramificado e expandido no trabalho do influencer, que é uma espécie de terceirização da publicidade. E a vontade de influenciar vai diluindo no nosso sangue mais um pouco do veneno da vaidade capitalista, até que pareça seguro afirmar, e que não nos reste dúvida, de que já nenhuma dimensão da vida humana que está livre da lógica mercantil capitalista.

Enquanto eu escrevia, ou melhor, enquanto eu buscava o artigo de Pierre Dardot e Christian Laval (o artigo citado no link anterior), achei por completo acaso um artigo não lido de Edward Bernays chamado The Engineering of Consent, no meu tablet, onde eu lia os artigos pro doutorado. Vai aqui o trecho inicial sem tradução, por pura preguiça (tá aqui uma tradução boa feita por algoritmos):

Freedom of speech and its democratic corollary, a free press, have tacitly expanded our Bill of Rights to include the right of persuasion. This development was an inevitable result of the expansion of the media of free speech and persuasion, defined in other articles in this volume. All these media provide open doors to the public mind. Any one of us through these media may influence the attitudes and actions of our fellow citizens. The tremendous expansion of communications in the United States has given this Nation the world’s most penetrating and effective apparatus for the transmission of ideas.

Edward bernays, The Engineering of Consent (grifo meu)

Edward Bernays foi o personagem sobre quem a BBC fez o documentário The century of Self. Coincidência? Sinais?

Tudo isso me lembra o Cântico Negro, de José Régio, esse com uma vibe anti-influencer:

“Vem por aqui” – dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

José Régio, Cântico negro

O amor, eu já disse aqui uma vez, é uma experiência real e print('singular ' * 10000) de conexão entre seres humanos. O amor romântico em si não tem nada de censurável, nem mesmo sua artificialidade pode ser condenada, o problema é seu agenciamento pelo mercado capitalista, é a sua transformação em algo não singular, mas repetível — e numa meta almejada por um público em torno do qual distintos mercados florescem, como, por exemplo, o mercado turístico.

Para encaixá-lo no modelo de reprodução capitalista, a simplificação aplaina e transforma o amor em algo insosso. As arestas são mascaradas, porque não são comercializáveis. Talvez poucos o comprassem se soubessem dos custos implicados, se conhecessem suas feições reais. Quem não conhece tais feições pode contemplá-las como a arte as apresenta, por exemplo, nessa preciosa cena de Gênio Indomável, ou como elemento fundamental de A chegada. Aliás, A chegada é um filme nietzscheano, ele encena a forma mais bonita do amor, o Amor Fati, o amar todas as coisas como se elas fossem necessárias, o dizer sim! — se transformar em alguém capaz de dizer sim, um Jasagender.

O amor revela o melhor de nós, mas também nos expõe e nos abre à possibilidade de ser vulnerados. E assim o medo predomina, silencioso e ubíquo, mascarado pela exibição contínua da hostilidade (projeção teatral de uma coragem ausente). Sentimos vergonha do medo que sentimos, da ameaça real e concreta que o ser humano representa para outro ser humano (homo homini lupus) e assim nos envergonhamos também de acreditar em outra coisa, pois isso poderia parecer fraqueza. E o maquiamento (edição) das aparências, central para uma sociedade orientada ao espetáculo e dependente do fomento do egoísmo, cala ainda mais fundo a ânsia de manifestar o amor, pois quem teme a vulnerabilidade do amor teme também parecer ridículo aos olhos dos outros. Nesse cenário, a coragem e a abertura necessárias para assumir os riscos de amar e de acreditar no amor alcançam níveis irreais e tornam quase proibitiva sua experiência e sua expressão.

O medo que atravessa a nossa sociedade, como um fantasma, irreal e indizível, não pode ser combatido instrumentalmente, com ferramentas forjadas em bases epistêmicas, pois como eu insisto em dizer todo o medo está sempre justificado. Só a promessa de algo profundamente desejável pode nos fazer encarar os espinhos e os fantasmas que cercam o amor, só a experiência concreta e singular do amor nos faz acreditar naquilo que disso pode vir a ser. A experiência real da conexão entre seres humanos é o único elemento que pode dissipar a bruma de desconfiança que nos cerca.

Recortei esse depoimento duro e precioso sobre diferentes lições do amor do documentário Humans.

Documentários sobre o capitalismo e seus efeitos

Já faz alguns anos que os documentários têm ganhado um fôlego tremendo, talvez impulsionados pela mina de ouro da recém-nascida indústria de streaming. O caso é que muita coisa boa tem surgido e já há uma coleção razoável de filmes que têm um viés bastante crítico em relação aos efeitos do capitalismo. É certo que nenhum deles chega a exprimir ostensivamente essa crítica ao sistema — isso me incomoda imensamente —, mas para bom entendedor meia palavra basta.

Incomoda também um tom reformista em boa parte deles, mas isso é natural já que a maioria, senão a totalidade, foi produzida no contexto de sociedades liberais que creem que tudo é uma questão de ajustes internos. De tal modo que não custa repetir, mais uma vez, que a ênfase a respeito do efeito que essas ideias tem sobre o capitalismo é minha. Tá aqui a lista, este post é apenas uma compilação:

Sobre os variados efeitos das redes sociais há não apenas O dilema das redes (Netflix), mas também Sujeito a termos e condições (Terms and conditions may apply), que aliás está completo na rede, só que em inglês. Os documentários exploram múltiplos aspectos, desde nossa transformação em meros dados comercializados na economia da atenção, até os mecanismos de controle comportamental constitutivos dos modelos que estão na base das redes sociais e dos sites que frequentamos diariamente. Modelos que nos adestram inadvertidamente e que fazem de modo quase imperceptível o que a Cambridge Analytica fez descaradamente. Sobre tudo isso Jaron Lanier fala com muita propriedade nessa entrevista, além de explicar porque os conteúdos negativos têm um papel central na dinâmica de engajamento das redes.

Cowspiracy: o segredo da sustentabilidade e Seaspiracy (Netflix) tratam da insustentabilidade de indústrias que devastam o meio ambiente e tornam real a cada dia o prospecto de um planeta inviável à existência humana.

O Capital no século XXI e The New Corporation tratam de modo mais direto a questão do sistema econômico e da inviabilidade do que se propõe como modelo. O primeiro filme é baseado no livro de Thomas Piketty. São filmes que apresentam de modo claro críticas que precisam circular entre um público cada vez mais amplo.

Por fim, Spaceship Earth (Netflix) documenta a experiência, bancada por um bilionário do Texas, de criar uma biosfera artificial e confinar dentro dela um grupo de seres humanos a fim de avaliar seu efeito. Não é muito diferente da ambição do miolo mole metido a visionário, Elon Musk, que quer colonizar outros planetas (para salvar a humanidade?) e, por isso, vejam só, ele está juntando dinheiro. Sobre esse e outros aspectos eu escrevi recentemente A presença humana, um primeiro texto sobre ecologia.

“Estender a luz da consciência às estrelas”, quando o sujeito tem muito dinheiro ele pode dizer toda sorte de bobagem e ainda assim será aplaudido.

Para quem se interesse pelo tema das críticas ao capitalismo, sugiro também meu mapa contra o capitalismo.

A presença humana

Júpiter, uma linda e tormentosa bola de gás.

Somos mais de 7 bilhões de seres humanos no planeta e vivemos quase todos numa economia globalizada cujo equilíbrio depende de fatores distantes não apenas do nosso olhar — da mesa ou da cadeira onde comemos nossas refeições —, mas também de nossos focos de atenção. Nós afetamos o planeta de um modo inédito. <fiction> Se um extraterrestre passasse pela Terra e do o espaço a contemplasse por mais de 500 anos, ele observaria uma mudança tão radical e violenta quanto as revoluções causadas na superfície de Júpiter pelas incontáveis tormentas que o constituem. Seres com outra relação com o tempo veriam nosso impacto como num time-lapse.

An animation showing deforestation in the Amazon
Time-lapse: histórico do desmatamento em Rondônia registrado no EarthTime. É como se fossemos uma doença de pele, é vergonhoso

Os extraterrestres talvez nem se dessem conta de que as mudanças são causadas por indivíduos, eles podem não fazer essa distinção. Embora tenhamos ferramentas de individualização, nem por isso pensamos os fenômenos gasosos em termos individuais, é a dinâmica de interação desses indivíduos (átomos, moléculas, invente seu sistema de individualização) o que nos interessa e o que provoca os efeitos com os quais estamos preocupados. (Podemos decompô-los em partes individuais ainda menores até chegar às partes subatômicas [menores unidades e objetos de individualização], então o sonho de determinação estará ainda mais longe e só a estatística poderá nos ajudar). Mas nós, ao contrário, somos muito individuais e tudo parece dizer respeito a nossa individualidade, nunca ao pertencimento a uma rede mais ampla </fiction>.

Não somos gases numa dinâmica de expansão, somos seres vivos, interferindo, agindo sobre o planeta. Agindo sobre ele. Agindo sobre o planeta. Interrompendo processos, manipulando cadeias causais, nem o mundo subatômico está livre do escrutínio e da intervenção humanas. A presença humana afeta todos os níveis e atua em todos os sistemas físicos. Não é preciso ser gênio para imaginar que não temos em conta o efeito sobre muitos dos sistemas que influenciamos. Por exemplo, não se sabe ao certo a concentração de biomassa formada pelos seres que vivem na zona crepuscular, nos oceanos. Qual é o impacto da acidificação dos oceanos, ou da presença nociva do plástico nesses sistemas? E qual é o impacto desse sistema no nosso próprio, que parecemos presumir que está separado dos outros sistemas naturais*? Nós sabemos o impacto da vida das abelhas em nossa própria vida — dos insetos em geral.

Twilight Zone: las amenazas de la última frontera de la humanidad en la Tierra

Ação e reação, que fique claro! Não é vingança (intencionalidade), é a mera reação de sistemas muito mais complexos que nossa capacidade de produzir sentido. Competência sem compreensão, diria Daniel Dennett. Competência para nos destruir, para destruir o anseio de previsibilidade que está por trás da busca por instituições, do Direito, e de todas as inúmeras partes que compõem o que poderíamos chamar de tecnologias da estabilidade (Tecnosfera).

A ficção científica apresenta diferentes modos de conceber nossa relação com o planeta. E para conceber melhor essa relação precisamos abandoná-lo e nos mover entre as estrelas, entre as galáxias. Wall-E talvez seja o filme que eu mais gosto nesse gênero, por ser o mais, digamos, realista. Seres humanos brancos e sedentários vivem num ambiente que em tudo se assemelha a um shopping center, nada pode ser mais honesto com as ilusões da nossa civilização. Ou um shopping center ou um daqueles cruzeiros sobre os quais David Foster Wallace escreveu. Um filme honesto e ainda assim gentil.

Recentemente eu gostei muito de High Life, que fala sobre a humanidade em ambientes espaciais, numa nave que viaja sem rumo pelo espaço. Fala também da esperança nos seres que virão e da nossa relação com o meio natural através das plantas, do solo, da terra. The Martian trata o tema das plantas sob a perspectiva utilitarista e pragmática dos engenheiros (lembro da Maria da Conceição Tavares falando sobre os EUA: um país de engenheiros). Repete em novas cores um episódio da tara survivalist da cultura americana, do seu sofisticado (porque científico) meio de elogiar o trabalho e a indústria (or you can get to work!). Isso de que There will be blood trata em primeiro plano. Não me levem a mal, o filme é bom. E boa parte do seu charme consiste numa generosa, embora secundária, mão de verniz de psicologia, vem do cuidado em mostrar os efeitos provocados pela falta do convívio humano, a importância da saúde mental para a atividade eficiente do corpo (da música, nesse contexto, como forma de memória e pertencimento). São tantos os filmes que apresentam ambientes espaciais e eu o menos indicado para resgatá-los.

Mas perguntemos aos astronautas quais os efeitos do espaço em seus corpos e mentes. Perguntemos àqueles que efetivamente já estiveram no espaço sobre o cheiro do espaço, sobre o que lhes parece aquele ambiente. Há um documento de uma página no site da NASA sobre atrofia muscular. E uma infinidade de outras informações. A nossa relação com o espaço (e com a Terra) na ficção científica está num grau de paridade realística semelhante à representação do mar na Tenda do Biquini, de Bob Esponja. Nunca nos ocorre pensar não apenas nos efeitos sobre o corpo — efeitos quase imediatos, pois depois de meros 11 dias no espaço os astronautas perdem até 20% de massa muscular — mas, sobretudo, nas consequências na nossa descendência. Os efeitos evolutivos.

A pressão evolutiva implicada numa mudança tão radical nos degeneraria num período irrisório de uma ou duas gerações, quando muito. Considerando apenas o distanciamento do sol, o perder nosso lugar na praia, já serie suficiente para provocar efeitos colossais. O impacto ósseo da falta de vitamina D, sintetizada principalmente pela exposição aos raios solares, nos tornaria criaturas de vidro, sem tônus muscular nem rigidez óssea. Não há substitutos para tudo que a Terra nos provê.

A exuberância da Terra é algo singular, não importa para onde nosso olhar se dirija — e nosso olhar é capaz de se estender muito longe, no espaço e no tempo — nada se compara, não encontramos nenhum lugar nem minimamente parecido. E ainda assim, a alienação da vida urbana nos acostuma ao pensamento de que somos independentes, e poderíamos fabricar nosso próprio ambiente, nossa própria biosfera.

Não há trailers legendados para o documentário Spaceship Earth, sobre a tentativa de criar uma biosfera artificial.

Todos os mimos, confortos e distrações da vida urbana excluem do nosso feixe de considerações o pertencimento à rede de vida do planeta, e nos enchem de uma arrogância cega e doentia, e de uma indolência diante dos efeitos nocivos da nossa presença. O fascínio dogmático pela complexidade.

A ecologia é o campo de estudo, teórico e transdisciplinar, que se impõe como um eixo inevitável para todos os que vivem e pesquisam hoje. No entanto, a ecologia não é nada mais do que um modo ainda canhestro e incipiente da ciência abordar uma questão ética mais profunda (a chave aqui é a oposição entre teoria e prática, determinação normativa e agência), a saber, como agir e como se organizar politicamente diante da inevitável constatação de que somos parte de um grande organismo. Nós até hoje — 2021, que fique claro —, não construímos nada que manifestasse que nos interessa de fato viver como se fossemos parte desse planeta. Agimos como se fossemos melhores, e como se o resto (seres e coisas indistintamente) estivesse a nosso serviço. As joias da nossa civilização, as cidades, não tem senão uma relação decorativa com a natureza. Por mais bonitos que sejam os parques urbanos — e eu sou um dos seus admiradores —, eles são apenas simulacros da natureza, não a integram como parte essencial, por melhor que seja o projeto urbano da cidade. (Quem desejaria outra coisa, aliás? A cidade é feita para não ser natureza, nela nós não queremos nem mesmo pisar na merda de outros seres.) O Rio de Janeiro deve ser lindo, sem dúvida!, mas é um caso especial. (O Rio de Janeiro está para as cidades como a Terra está para todos os outros planetas do universo). A cidade é asséptica, mesmo quando é imunda (Louis CK falando da imundice das ruas de Nova York). A cidade é cultura, a natureza ali é decoração e simulacro (não apenas os zoológicos). Ela tem seu próprio lixo, seu lixo não é mera decomposição, matéria morta ou queimada. Seu lixo é químico, poluente, mortal, mortífero.

Parques: simulacros da natureza. O belíssimo Parque do Retiro, em Madrid.

Não somos independentes dos outros seres sacrificados para manter e melhorar nossa forma de vida; estamos ligados à água que não vemos, ao ambiente em que circulamos como se ele não existisse. A ecologia como campo de estudo é sumamente importante e interessante, mas é a ecologia como ética é o que me interessa. Mas dá pra falar da ecologia como saber sem falar da ecologia como ética? Claro que dá, é o que temos feito até agora. Mesmo a ética nós ensinamos como técnica, não como ética [normatividade das leis morais versus prudência, a pragmática e a ética aristotélica]. É o que nos resta porque, no final das contas, não dá pra ensinar ética [não se pode ensinar a julgar: Aristóteles e Wittgenstein]. Daí a normatividade ganhou uma força enorme, e parece que não sobrou nada além disso (a filosofia moderna colocou a lógica e a matemática num pedestal e sedimentou o caminho para ciência contemporânea). Parece que tudo são leis (normas) e dados. Se para falar em ecologia precisamos então falar de ética, nós estamos realmente fodidos! Mas como transformar nossa relação com o mundo de modo que não sejamos meros (controladores && manipuladores) do mundo, mas também parte dele? Quero dizer, como fazer isso sem uma ética, sem valores que pareçam dirigir a ação (mas que são a própria ação) e o pensamento? Como transformar nossa relação com o planeta sem a reflexão implicada em pensar a ação e o pensamento? É claro que essa ética precisa do conhecimento, Aristóteles jamais negou o papel do conhecimento, mas o saber agir não se reduz a um saber. É um saber de outra ordem, ou um saber que não se sabe, mas que se manifesta no agir.

O efeito da nossa presença no planeta concerne a todos, não apenas porque não temos para onde fugir, mas também porque, dado tudo que conhecemos do universo, é sandice desejar algo diferente da exuberância à qual pertencemos na Terra. É nas cidades onde nasce e viceja esse sentimento antiecológico, esse independentismo biológico que alimenta o sonho de ser capaz de criar nossa própria biosfera. É na cidade onde a presença humana precisa ser reinventada como parte da natureza, é aí onde começa a questão ética, na polis.

* Porque pertencemos à Cultura (Kultur, isso que é diferente da natureza), uma cultura capaz de considerar a possibilidade de criar sua própria biosfera. A arrogância humana frente à Natureza.


Mapa contra o capitalismo

Criei esse mapa para apresentar uma objeção ao capitalismo de modo esquemático e até deliberadamente arbitrário. O mapa tem relação com essa discussão sobre nossa presença, sobre a ética da coexistência com o tecido da vida e sobre a nossa reintegração ao mundo.

Mapa contra o capitalismo. Torneiras e instrumentos, voltando ao mundo. O urbano como antiecológico: capitalismo e serviços. Conforto e comodidade. O paraíso urbano (subjetividade e hedonismo)! Impessoalidade e privacidade, como conviver com os outros. Falar com estranhos, ser estranho.

Somos muito pouco

A sábia visão do futuro de PoolyDrawnLines

Não me leve a mal, eu não sou dos que gostam de identidades. Nem identidade nacional, nem identidade de espécie, nada. O que não significa que não tenha as minhas, sou corinthiano, por exemplo. Corinthiano, mas nunca deixei de torcer por outro time porque não devia. Como não torcer pelo São Paulo de Telê Santana no Mundial em 92 e 93? Em alguma medida isso reflete minha relação com as identidades. Mas o que eu queria dizer era que apesar de não gostar muito de identidade, eu penso com frequência na identidade humana. Não como humanista, mas como alguém que se pergunta: isso que nós somos como coletivo é algo apreciável? Tem valor?

Não importa que as pessoas se sintam apenas indivíduos, ou que no máximo formem um agregado de indivíduos atomizados e amarrados frouxamente entre si por identidades que os igualam a poucos, enquanto sobre os outros, os diferentes, a maioria, recai sua agressividade — como lembrava Freud. Essas pessoas que nós encontramos apenas acidentalmente no mercado, na feira, na rua, nas vias de transporte, são para boa parte dos outros animais criaturas a serem evitadas. Se os animais tivessem nossa capacidade para o preconceito, não escutaríamos nem mesmo o arrulhar das pombas. O mero vislumbre da silhueta de um humano inspiraria o nojo e a repulsa em todos os outros animais. Mas como não têm nossa enorme capacidade para o mal, os animais ainda se aproximam de nós, como se não fossemos, para eles, o mal a ser evitado. Se considerarmos essa insólita ficção que eu inventei, em que os animais nos identificam como humanos a partir de tudo que nós fizemos com eles, nós poderíamos condenar esses animais, esses reminiscentes de outras milhares de espécies que extinguimos, por ter nojo de nós? Quero dizer, ainda que a gente se sinta tão individual? É isso o que eu me pergunto quanto à identidade humana.

E por que nós haveríamos de cuidar dessa identidade, se somos apenas indivíduos? Se somos, quando muito, um nacional, um cidadão que pertence a um país, ou a algum continente (ou parte de continente) a que atribuímos importância em nosso próprio proveito. Os outros humanos são nossos únicos adversários, os únicos cuja opinião importa. Não temos Deus, não respeitamos os animais a ponto de nos afetar o que eles poderiam pensar de nós (eles não pensam!), e não nos importa o que eles possam sentir. O que então nos faria valorizar o humano e zelar por essa identidade? Um competidor externo, certamente. Assim, sonhamos com extraterrestres. Sonhamos com androides (e os androides sonham com ovelhas elétricas?). Em nossos sonhos nós projetamos a superioridade que não podemos enxergar em nós mesmos e que precisa ser projetada porque nós não podemos assumi-la. A quem mais seríamos superiores, aos animais? — Grande merda! Eles são estúpidos! Os sádicos podem até sentir prazer torturando a quem a eles julgam inferior, mas não superioridade. A superioridade é o triunfo sobre um inimigo que se respeita e estima, não é o caso. Não, nós só respeitamos as inteligências com que sonhamos. Diante delas, o cinema e a literatura nos contam, podemos às vezes até vislumbrar o melhor de nós, como se todas as criaturas inteligentes do universo fossem um derivado, feitas a partir da nossa costela. No entanto, isso significa que aquilo que nos é superior já não pode ser humano — deve necessariamente ser outra coisa.

Nem todos os filmes de Ridley Scott são bons, ou pelo menos tão bons como Blade Runner, mas é difícil dizer que alguém refletiu e imaginou melhor que ele as inteligências artificiais, os androides — mesmo contando com Philip Dick, Isaac Azimov e Ewan McGregor, recentemente. Mesmo Alien Covenant, que é um filme bem meia boca, tem insights incríveis.

Por medo de ser rebanho, aceitamos ser meros indivíduos, não com resignação, mas como se nos fosse dada a maior das virtudes. A singularidade do indivíduo — é verdade — é a fonte de todas as virtudes (ainda que elas tenham começado nos povos). E o que nos tornamos? Rebanho! Ou não somos? Quem ainda é otimista diante dos rebanhos é porque ainda crê nos sonhos que sonha, mesmo que o sonhador seja cientista. Aliás, principalmente se for. Os cientistas já não tem a mesma imaginação para sonhar novos sonhos.

A cooperação foi o que nos trouxe até aqui, ainda que alguns digam que foi a competição¹, mas isso que nos tornamos ainda me parece muito pouco. Observemos os estorninhos no céu, como é incrível o que eles fazem juntos. — Eles são apenas animais, tudo que eles fazem é simples comparado à complexidade do nosso pensamento, não temos nada que aprender deles.

Há muitos vídeos da dança dos estorninhos, mas eu gosto especialmente desse vídeo porque dá pra ouvir (apesar da música) a reação e o som das asas dos pássaros.

Nós também já fizemos coisas incríveis juntos, ao nosso modo, claro. Eu sou apaixonado pelo Linux, pra ficar num exemplo de um projeto cooperativo do nosso tempo. Mas tudo que fizemos até aqui ainda é muito pouco, dada nossa inteligência. Às vezes eu penso se poderíamos agir como uma rede de computadores, como uma botnet. A mente não é um software, é verdade, embora essa analogia seja muitas vezes útil. Ainda assim poderíamos nos coordenar de modo análogo. A botnet não é a melhor das imagens, porque é um sistema centralizado e determinado pela lógica master/slaves. As máquinas são nada mais que zombies dirigidos para realizar uma mesma operação computacional². Precisaríamos formar um sistema descentralizado e a única tecnologia que me vem a cabeça é o blockchain. Mas como é possível coordenar ações sem um sistema centralizado de execução, sem um master? — alguém me perguntaria. Bem, eu só estou relatando uma sandice que às vezes me passa pela cabeça, não sugerindo uma panaceia. A coordenação dos pensamentos, no entanto, talvez seja o que basta para que saibamos (juntos) o que fazer (tenhamos o poder executivo de um master).

O certo é que ainda somos muito pouco porque como indivíduos somos egoístas e como membros da sociedade, gregários. E acreditamos que devemos escolher entre ser indivíduos ou ser parte do rebanho. A individualidade impede a coordenação social e a sociabilidade ameaça estrangular a singularidade do indivíduo. Sem dúvida, os nossos conceitos nos enfeitiçam.

Talvez um dia alguma nave espacial desça na Terra e nos mostre uma superioridade que não poderemos reconhecer como tal, uma superioridade diferente daquela que aparece em nossos sonhos (ou pesadelos).


¹ Isso mostra que não convém deixar que uma verdade determine qual é a realidade onde um valor deveria ser o elemento determinador. Nada impede que prevaleça um valor inferior, por assim dizer, indesejável, injusto, cruel até. Sim, nada impede. Mas pelo menos estamos sem máscaras e subterfúgios, sabemos o que escolhemos. A verdade exclui e logo se desinteressa pelo que foi excluído como falso (ela finge que não existe história e que tudo é progresso linear, não há circularidades). Se depois de tanto tempo no mercado nós ainda acreditamos que os valores da sociedade de mercado devem ser os elementos axiais da sociedade, assim deve ser, mas não por convicção democrática ou coisa parecida. Cada vida, como cada espécie, tem seu tempo e seu potencial, se os humanos aceitarem que isso é o melhor que podemos ser, nada pode mudar isso. Aliás, estava me referindo Hayek quando falei de competição, aos liberais e ultraliberais.

² Os dois únicos usos que conheço em que uma rede coordena computadores para trabalhar juntos (além das aplicações de Big Data e do paralelismo computacional) em algum objetivo comum são o ataque de Negação de Serviço (Denial of Service Attack, DoS) e as tentativas de minerar bitcoins. Entretanto, nenhum dos dois usos tem uma conotação positiva, de tal sorte que valem mais como uma analogia das potencialidades.


Em Filosofia da Consciência algumas ideias têm sido resgatadas para falar Panpsiquismo, isso me parece muito estimulante.


Atualização: por coincidência, encontrei poucos dias depois essa matéria sobre o novo livro de Miguel Nicolelis. Ele usa o termo Brainet:

Tudo indica que a “Brainet” não é mera metáfora. O trabalho do brasileiro na Universidade Duke (EUA), bem como o de outros neurocientistas, está mostrando que a atividade cerebral de indivíduos diferentes engajados na mesma tarefa de fato acaba ficando sincronizada, podendo até ser usada para controlar avatares virtuais ou aparatos robóticos de forma conjunta.

Tenho enormes diferenças com Nicolelis, mas esse pensamento é muito estimulante e tem tanta gente pensando isso em áreas tão diferentes hoje em dia que é curioso constatar essa coincidência.

Che Guevara e minha misantropia

Há coisas que nós sabemos, mas que só reconhecemos completamente quando falamos ou escrevemos sobre elas. Talvez porque as tenhamos sempre diante dos nossos olhos. Precisamos externalizá-las, torná-las objetos exteriores que podem ser manipulados com o olhar e o pensamento — algo independente de nós. Foi o que aconteceu com minha misantropia.

Nada mais familiar do que meu ódio pela humanidade, nada mais insistente do que a tendência a notar o pior nas pessoas e constatar a artificialidade de suas palavras e ações. O teatro das ações humanas inevitavelmente trai a leviandade com que as pessoas julgam a inteligência umas das outras e a desfaçatez com que creem poder dissimular suas intenções e desejos. Tudo isso era algo tão presente em mim que eu mal podia notar, era a própria moldura do meu campo de visão. Mais uma vez, foi Daniel Day-Lewis quem me fez ver o quanto essas lentes são capazes de envenenar.

A misantropia de Daniel Plainview e sua cega confiança na família, nos laços de sangue.

Antes disso, no entanto, uma espécie de antídoto já havia sido inoculado em minhas veias. Foi o que impediu que meu ódio me consumisse. E esse antídoto conta algo sobre mim tanto quanto minha misantropia.

Quando eu tinha pouco menos de 20 anos li um livro que, se não me falha a memória, era um caderno (ou cadernos compilados) de Che Guevara editado para publicação. Com o passar dos anos a memória dos livros que lemos desvanece, mas alguma coisa às vezes fica. Eu já mencionei aquilo que ficou em mim da leitura dos cadernos de Che, uma frase, enunciada quase com vergonha, que dizia algo mais ou menos assim:

Ainda que possa parecer piegas devo dizer que o verdadeiro revolucionário é movido por um grande sentimento de amor.

Há muitas crenças e ideias que eu não partilho com Che, inclusive a crença na revolução, mas a maioria das pessoas não conhece nada de sua vida e de suas ideias. Che sofreu com a arma mais nociva do capitalismo, a banalização. O capitalismo consegue transformar qualquer coisa significativa em algo banal pela mera assimilação e repetição (Marcuse insistia sobre esse aspecto). Neste caso, massificação da sua imagem. A mais mínima profundidade é aplainada pela sua redução a um mero imago, um ícone, um totem que circula sem intermediários nem reflexão, convidando as pessoas a imediatamente tomar partido das identidades que apresenta veladamente, como se tratasse da escolha de um time de futebol. Não é a toa que, sem que ninguém se desse por isso, a publicidade assumiu o lugar da Razão no século passado.

Nossas diferenças são menos importantes do que nossos acordos, aquela confissão quase envergonhada disse algo sobre mim e foi a partir disso que comecei a me identificar com a esquerda.

O corpo de Ernesto Che Guevara e Monika Ertl, a guerrilheira que matou seu assassino.

Um guerrilheiro que falava de amor me espantou porque eu simplesmente nunca havia pensado que alguém podia guerrear porque ama, porque foi levado pelo amor. Que o amor pudesse ser a força motriz de uma guerra. Nunca havia pensado por essa perspectiva e não entendia o que isso significava. Guerra para mim era ódio, vontade de eliminar o diferente, todas essas coisas que eu conhecia bem dentro de mim. O amor tinha que ser a paz. Che me fez ver o amor não como mera platitude, uma pasta amorfa e insípida de sentimentalismo barato que nos conecta através de uma rede de coisas vulgares e banais, ele me fez ver o amor como uma força nobre, poderosa, que poderia ser investida em atos e palavras plenos do melhor de nossa inteligência. Isso e meu sentimentalismo bobo e piegas contribuíram para que um contrapeso importante se opusesse a minha misantropia. Não foi pouca coisa, tendo em vista que também tendo à amargura e ao ressentimento. A construção quase inconsciente (em background) de uma imagem respeitável do amor — oposta à figura banalizada do amor romântico — foi importante para conter os danos em minha alma de algo tão imensamente danoso como o ódio. Quem não sabia, hoje sabe o que o ódio pode fazer com a mentalidade das pessoas observando a extrema direita e os bolsonaristas roots.

Em Diários de Motocicleta, a atuação de Gabriel Garcia Bernal reflete com fidelidade o espírito das palavras de Che Guevera.

O meu sentimentalismo piegas e até o desbotado amor romântico vendido nos modelos publicitários dessa sociedade que tem sempre um modelo que oferecer aos que desejam (quem não deseja?) abrigam verdades e meias verdades importantes, que não devem ser descartadas apressadamente.

Permitam-me até o embaraço de defender o amor romântico, a mais capitalista das representações, que adoça nossa vida e estraga nosso paladar. Embora Romeu e Julieta se multiplique como uma praga, repetindo um paradigma da força do amor contra o poder irreversível da morte, há experiências singulares do amor que não são reprodutíveis, porque não são repetem, não podemos vendê-las como modelos que as pessoas podem seguir, dada a singularidade da existência dessas pessoas reais. Eu penso, por exemplo, no amor de André Gorz, esse amor apresentado (e não representado) nas suas cartas a sua mulher, Dorine. Uma singular experiência do amor, que expõem as potencialidades indeterminadas implicadas na conexão real entre dois seres humanos. Até Feynman, ao seu jeito, parece testemunhar em favor da influência dessa conexão ao falar da sua primeira mulher, Arline, em What do you care what other people think?.

Tudo isso pra dizer uma platitude, para constatar uma banalidade: o amor também tem muita força. Às vezes a gente precisa voltar a dizer o óbvio, porque ele nos escapa. Vemos tão claramente a força do ódio, o impacto do medo em nossa sociedade global, que sentimos como se não pudéssemos reagir a isso de modo eficaz (desculpa a palavra). Não é verdade, nós também nos fortalecemos. O caso é que amar e encenar o amor não são a mesma coisa! E amar se aprende amando, já nos lembrava Drummond.

Eu gosto especialmente dessa primeira história contada em Human, sobre o impacto do amor na vida de um criminoso. O vídeo já está embutido de modo a começar nela.

PS. E é conveniente lembrar o caráter inseparável do amor e da amizade — mas como representar que sejam coisas diferentes e, ao mesmo tempo, inseparáveis?

Quanto as Big Tech sabem sobre nós?

Katie Bouman e seu cluster de discos rígidos

Eu poderia aplicar um algoritmo de análise de sentimentos no meu perfil do Twitter. Uma análise simples, binária, positivo e negativo, só pra ter uma ideia do tipo de sentimentos que predomina nos meus tweets (eu sei qual!). Há milhões de tutoriais — pra todos os níveis — sobre como fazer isso, usando o Python, por exemplo. Você pula a matemática (se quiser), vai direto pro código, segue os passos e pronto, está apto a aplicar o algoritmo sobre seus próprios dados.

Algumas empresas avaliam em tempo real o impacto de suas marcas nas redes sociais, o efeito da exposição de figuras públicas associadas a ela. Avaliam se há um bom fluxo de interações, sentimentos positivos, se a figura vale o investimento. Paolla Oliveira certamente tem contrato com a Reebok, ela sempre fala da marca. Quando estava aprendendo sobre Data science Rafael Nadal era o exemplo, não lembro qual era a marca associada. A gente podia pensar em Neymar, Ronaldo and so on and so on (sic). Pra mim, não deixa de parecer brutal que possamos fazer avaliações de tendências assim, usando essas ferramentas, esses métodos, contando com tantos dados e em tempo real. Nem sempre as redes sociais tem representatividade sobre uma população, depende de que população nós estamos falando. Mas em qualquer caso eles tem uma boa amostra de nós, do quem nós somos. Nos países em que a internet chega a mais gente, o alcance é colossal. O que elas podem saber de nós avaliando os nossos dados? E qual é o limite?

As pessoas que trabalham nessas empresas são absurdamente capazes (não apenas qualificadas, certificados e titulações em computação podem não significar nada) — o melhor que o dinheiro pode comprar e o dinheiro pode comprar muito. São jovens que povoam as séries de tecnologia como Mr Robot e Halt and Catch Fire — um pouco menos rebeldes, na verdade, mais ajustados ao mundo das aparências. Então, em termos de complexificação, o céu é o limite. Pra entender o abismo que nos separa desse mundo tenhamos em conta algo: no mercado das tecnologias de ponta há circunstâncias em que poucas pessoas no mundo podem avaliar se uma ideia é uma aposta, um blefe ou algo sólido — por falta de qualificação técnica pra entender a novidade. Quanto nós sabemos sobre computação quântica pra avaliar se a vale a pena investir numa briga em que já estão a Google e a IBM? Quantas pessoas você acha que sabem sobre o tema de modo a ser capaz de entender o impacto dessa tecnologia? Isso dá uma ideia do nível de complexidade em que circulam as decisões sobre o que fazer com os nossos dados, ou sobre que tipo de software de análise aplicar, que algoritmos utilizar. Nesse campo, o sujeito pode simplesmente desenvolver seu próprio algoritmo, todo o entorno de trabalho (hardware e software pode ser desenvolvido dentro da empresa). A Google criou o TPU, um hardware desenhado para trabalhar com tensores.

Mas o que elas poderiam saber de nós? Bem, não sei muito sobre o que elas já sabem, mas o potencial é imenso.

Artigo da Slate sobre um experimento do Facebook

O que você faria se tivesse uma quantidade colossal de informações sobre quase todo o mundo e ela fosse sua, digo, sua propriedade e você não precisasse prestar contas a ninguém sobre o que faz com ela? Pois é, o Facebook faz a mesma coisa. O céu é o limite, é o que eu digo. A resposta mais didática e bem apresentada que encontrei sobre o que elas podem fazer com o que sabem sobre nós está no documentário Terms and Conditions May Apply.

https://www.youtube.com/watch?v=LIiLoT4Po-c
O documentário está inteiro aqui, mas sem legendas.

E como é que se acumula tanta informação sobre nós? Por exemplo, eu tenho pouco mais de 2 Gb de dados no meu email, que é recente, comecei a usá-lo em 2011. Meu antigo correio deve ser de quando o Gmail foi criado, em 2004 — deve ter mais informações e ocupar mais espaço. São muitos dados! Agora imagine uma pessoa que tem o Gmail desde o começo e que, além disso, usa sua conta Google no Android (no seu smartphone) e no Google Chrome, no computador. Isto é, alguém que dá o login no Chrome do seu computador para que o navegador sincronize suas informações entre todos os dispositivos conectados à conta do Google. Caramba! Geolocalização, históricos de pesquisa em todos os dispositivos, emails, chamadas, tudo centralizado nos data centers do Google — eles tem tudo e podem cruzar todas as informações. Imagine o que se pode saber de uma pessoa uma vez que saibamos por onde ela anda, com quem ela conversa e sobre o quê, que buscas faz no Google, que páginas acessa. Se você acha que elas não nos gravam, com que você acha que são treinados os algoritmos de reconhecimento de voz, com áudio de filmes da Disney? As empresas não apenas podem saber sobre nós, como indivíduos, mais do que nós mesmos sabemos, elas também podem saber sobre nós como coletivo, como massa (ou manada). Podem prever nossa conduta, simular nosso comportamento em determinadas circunstâncias. Eu já escrevi sobre a Cambridge Analytica por aqui. O caso da Cambridge Analytica é paradigmático sobre como podemos ser instrumentalizados por meio das informações coletadas pelas Big Tech, a ponto de nos levar a perguntar se somos mesmo livres, se ainda tem sentido falar em liberdade.

As empresas de tecnologia definem o padrão tecnológico, determinam a regra e dão a medida do que corresponde a um avanço tecnológico em suas áreas. Por isso toda a briga em torno da supramacia quântica. Isso significa que nenhum governo, nenhuma Universidade ou centro de pesquisa tem pleno entendimento do que elas podem fazer e do que elas efetivamente fazem. Isso dificulta qualquer tentativa de controle e compreensão. Dificulta qualquer regulação institucional, pois nada do que as empresas fazem é público e elas não são obrigadas a declarar o que fazem. E ainda que fossem, quem garantiria que cumprem o que declaram? Pelo que eu vejo não há nenhum mecanismo de controle que seja possível. Mesmo que auditores super-qualificados tivessem acesso local a toda infraestrutura das empresas e permissão completa para acessar a base de dados sobre pesquisas em desenvolvimento, ainda assim não seria suficiente. Nada mais fácil do que esconder alguma coisa usando computadores. Descobriríamos os abusos muito depois de nos tornarmos vítimas.

A quantidade de dados sobre apenas um usuário é gigantesca, mas o conjunto de dados de todos os usuários é inconcebivelmente grande. Quando se lida com muitos dados chega um ponto em que é preciso desenvolver as próprias ferramentas para processá-los. O Facebook deu início ao desenvolvimento do entorno Cassandra (agora capitaneado pela Apache), uma base de dados não relacional que lida com informações ao largo de uma infinidade de servidores. Trata-se de permitir que se processe esses dados de uma vez, como se todos estivessem num mesmo computador. Quem tem um cliente de email como o Outlook ou o Thunderbird sabe que, se guarda muitos emails — por exemplo, 10 ou 15 Gb de mensagens —, a aplicação começa a apresentar instabilidade porque carrega com muita informação de uma só vez. A base de dados facilmente se corrompe e estraga a semana do usuário, por isso em políticas de grupo corporativas costuma haver restrições sobre o número de mensagens disponíveis. Agora imagine o que significa processar não Gigabytes, mas Terabytes, Petabytes de dados.

Para processar dados em grande escala (Big Data) é preciso transformar a imensa rede de servidores nos quais os dados estão espalhados numa só máquina. Bem, como se fosse. Daí a necessidade de softwares como o Hadoop, que não faz mais do que criar um File System a partir dessa rede, que torna possível tratá-la como se fosse um único disco rígido. Uma vez configurado o sistema de arquivos, outras aplicações, como o Spark, podem processar os dados. É preciso então configurar essa rede de processadores como se fosse apenas um, e é isso que faz o Spark (entre outros). Portanto, são duas etapas, primeiro é preciso criar as condições para tratar o cluster de computadores como se fosse apenas um único disco rígido, depois é preciso criar as condições para tratar o cluster de computadores como se fosse apenas um único processador. Essas duas etapas representam uma parte significativa das tecnologias que envolvem o que se chama de Big Data, elas dão lugar a uma capacidade computacional sem precedentes. Já não são necessários hardwares caros, mainframes disponíveis apenas a grandes empresas ricas o bastante para pagar a fortuna que eles custam. Agora, qualquer empresa pode montar um cluster com significativa capacidade computacional colocando em série máquinas com configurações apenas razoáveis. É como se pudesse somar a capacidade computacional das máquinas, isso torna incrivelmente fácil e barato operar e escalar esses clusters. Apesar disso, esse é o reino onde a Amazon AWS domina, porque ela vende essa tecnologia nas nuvens, sem precisar montar a infraestrutura, para qualquer empresa ou pessoa que pagar pra utilizar a capacidade computacional de Big Data.

O processamento da primeira imagem de um buraco negro é um bom exemplo disso que se torna possível a partir do uso dessas tecnologias. Katie Bouman, a pesquisadora que aparece acima, na foto em destaque no post, está ao lado de um cluster de discos rígidos com mais de um petabytes de dados sobre o buraco negro. Nada disso seria possível se não existissem as tecnologias que permitem distribuir (paralelamente) o processamento das mesmas tarefas numa rede de computadores.

1 Petabyte equivale a 1000 discos rígidos de 1 Gygabyte

A medida que mais e mais dispositivos coletam informações sobre nós, as regularidades do nosso comportamento passam a estar disponíveis para serem determinadas por máquinas cada vez mais potentes. Máquinas que são capazes de identificar regularidades com precisão inconcebível por nossos limitados recursos biológicos — elas que são capazes de aprender a distinguir entre diferentes tipos de melanona, apesar da imensa pluralidade das amostras. A internet das coisas é uma perspectiva que tem nos feito sonhar com cidades inteligentes, prontas a responder aos nossos anseios antes mesmo que eles se manifestem. Será que de fato esse oceano de informação sobre nós, circulando nas mãos de atores tão poderosos, ajudará a converter a sociedade naquilo que desejamos?

Dado que também somos máquinas, condicionadas por variáveis determinísticas, a única coisa concreta que podemos divisar nesse mar de devaneios é a possibilidade de sermos manipulados como marionetes por empresas munidas de informações que nem mesmo suspeitamos. Todo resto é publicidade! Mas cada um acredita no que quiser.