Coordenação ou confluência? Parte 2: a permeabilidade entre o individual e o coletivo

Segundo texto de uma série (de três) sobre confluência, o primeiro texto discute principalmente a ideia de coordenação, a contraparte estritamente corporal disso que designo como confluência (espiritual).

Descobri recentemente que Alexandra Elbakyan (criadora e mantedora do Sci-Hub) pesquisa interfaces cérebro-maquina (brain-machine interface). Pesquisadores de diferentes áreas, até mesmo de filosofia, têm pensado a consciência e a coletividade a partir de um ponto de vista notoriamente científico, como técnica e tecnologia. Um dos mais antigos e respeitados pesquisadores de interfaces cérebro-máquina, Miguel Nicolelis fala de “Brainet”, a rede de cérebros. (Nicolelis, alguém que precisa fazer lembrar constantemente a uma opinião pública fascinada pelos gestos publicitários do profeta Elon Musk que suas pesquisas já iam nesse rumo muitos anos antes que o Midas do Vale do Silício tivesse investido seus dólares nessa área.) Há um claro vapor que se adensa ao redor de perspectivas onde coletividade e tecnologia se encontram. E é muito importante que essas perspectivas se multipliquem, pois dado que vivemos na Tecnosfera, quando apresentadas sob a forma de tecnologias elas tornam mais inteligível e imaginável o gigantesco efeito ético, político, terapêutico do que poderíamos chamar, talvez apressadamente, de primado perspectivo do coletivo. Esse é um primado tecnológico, que não supõe que se negue a importância da singularidade do indivíduo.

No entanto, eu preciso insistir, essa é, no melhor dos casos, uma boa metáfora. A conexão entre seres humanos vai mais além do âmbito tecnológico, não se reduz às promessas de controle e previsibilidade da tecnologia. Pode haver algo verdadeiramente irredutível ao tecnológico? Pode haver algo que não se deixa capturar pelas pretensões determinísticas da ciência e de suas ferramentas estocásticas, estatísticas, feitas para nos oferecer margem de ação mesmo quando estamos em terreno não determinístico?

A contribuição do espírito é a arbitrariedade, o acaso, não a determinação da regra. É a indeterminação da inteligência que a transforma num instrumento criador e, ao mesmo tempo, desestabilizador. Pois a regularidade encontra no espírito o agente inteligente e capaz tanto de instaurar um padrão, como também de derrogá-lo e destituí-lo. A inteligência cria padrões, regras, leis, normas, e também as revoga, substitui ou simplesmente abandona — temos total soberania sobre nossos conceitos, diria Quine. E é nesse espaço estreito, quase inexistente de tão exíguo, que o criador cria ao não seguir regras (ao não imitar), só aí pode ter lugar a espontaneidade do espírito.

Eu confesso que não sei ao certo explicar o significado de uma confluência, de um modo de ser em relação aos outros que não é determinado pelo treinamento e adestramento social. Esse é um modo espontâneo de estar, ainda que preciso o bastante para parecer uma espécie de coordenação e não mero acaso. É claro que posso falar longa e abstratamente sobre essa ideia, mas isso nem de longe explica o significado de uma experiência ainda inédita. A gente precisa de algo concreto, algo como um exemplo (a muleta de que fala Kant). Abandonar o controle e agir em rede, conectado aos outros, é uma imagem que só a imaginação pode materializar, e me falta o talento literário. Eu não posso contar uma história, mesmo que fictícia — ou seja, mesmo que a verdade não seja o eixo principal de sua constituição —, e assim apresentar o alcance dessa possibilidade em termos palpáveis (não abstratos). E talvez essa história ainda não tenha sido imaginada por nenhum ser humano; a literatura ainda nos deve isso. Mas a espontaneidade do espírito, a matéria-prima de que são feitas as redes cuja confluência ainda não podemos sequer imaginar, pode ser ilustrada e compreendida na literatura, no cinema, na arte, em uma infinidade de ocasiões como naquelas em que se apresenta a psicologia androide, o significado da experiência não lógica, mas psicológica, de uma inteligência programada e não adquirida. Ex Machina vai quase desavisadamente em busca do espontâneo, do que o filme chama analogamente de ato não-automático (usando Pollock como exemplo), um ato que não é nem automático (determinado) nem aleatório (arbitrário, random).

Cena de Ex Machina em que se discute a emancipação em relação ao automatismo necessária à constituição de uma IA capaz de passar num Turing Test.

Até hoje tudo que é atraente na ideia de liberdade tem se contraposto àquilo que em nós é maquinal, ou, dizendo de outro modo, gregário. Há algo em comum entre a máquina, o autômato, o androide e o animal: todos estão restritos ao reino da natureza e da necessidade. Todo ser cuja (vida || funcionamento) está inteiramente determinada pelas leis do acontecer natural tende, do ponto de vista individual, a ser considerado um escravo ou simplesmente um animal (que são modos moralmente carregados de aludir à heteronomia); no que diz respeito à dimensão coletiva das ações, a heteronomia se expressa como comportamentos gregários, como um agir como rebanho, manada etc. Embora a heteronomia seja justamente a expressão de uma determinação, da falta da capacidade de criar e inventar algo novo, — de tal modo que poderíamos dizer que os fatos naturais acontecem como se seguissem cega e necessariamente as instruções de um livro, sem poder se desviar dessas instruções —, curiosamente, a autonomia também tende a uma estabilização, à cristalização em leis, não naturais, mas artificiais, que normatizam o acontecer no reino da liberdade. Essa estabilização leva às instituições, num plano geral, e, numa perspectiva concreta e particularizada, ao exército, paradigma da coordenação, de onde a autonomia é expulsa pela necessidade prática de construir e manter uma cadeia de comando. Bem, mas nada disso verdadeiramente importa e eu me desvio de minha rota; o que importa é que a experiência coletiva do maquinal, ou do gregário, é frequentemente a experiência da manipulação, do agenciamento, da instrumentalização, a história constantemente repetida de agentes externos que, descobrindo leis e padrões na regularidade das ações coletivas, interferem na cadeia causal de modo a canalizá-la em prol dos seus interesses. Isso acontece com o gado de Bolsonaro (exemplo do gregário), mas acontece também nas redes sociais (exemplo do maquinal), no business model do Facebook (Cambridge Analytica), Google etc. (como não cansa de apontar Jaron Lanier, lembrando as técnicas de manipulação comportamental que estão por trás do vício das redes sociais — somos ou não somos dados?).

Há um modo de estar em relação aos outros que não se limita a nos sujeitar a manipulações e permitir que seja explorado o nosso lado maquinal e determinado?

Se tudo o que tivéssemos para responder a essa pergunta fosse a conjectura de que, se existe um “lado negativo” da psicologia de massa, deve também existir um “lado positivo”, teríamos nas mãos uma consideração imensamente razoável. Mas isso não é tudo o que nos resta. A conexão entre seres humanos não é nenhuma raridade, nenhuma tecnologia distante com a que sonhamos, mas um fenômeno há muito ordinário na vida social humana. Um fenômeno que se manifesta de muitas maneiras, de muitas formas, e convém escolher uma manifestação especial para ilustrá-la, como a amizade.

À sua imagem e semelhança, Ex Machina

Ex Machina é uma crítica a um só tempo feroz e sofisticada à masculinidade. Entre outras coisas, claro. Dois tipos de homens são apresentados no filme, dois exemplares, casos de regras muito gerais e vagas, mas que ainda assim perfazem claramente tipos distintos. O primeiro é um nerd solitário (Caleb) em cujo histórico de navegação podemos encontrar um padrão de mulher, um tipo de mulher recorrente em suas buscas em sites pornôs. A gente só fica sabendo no final, mas é importante ter essa informação em conta para caracterizar seu tipo. O outro é um empresário jovem (Nathan), bilionário, que vive isolado no meio do nada. Trata-se de um escroto misógino, misantropo, que decidiu desenvolver um modo peculiar de provar que a Inteligência Artificial (Ava) criada por ele era de fato uma inteligência, ou seja, seria capaz de se fazer passar por um humano, de imitar perfeitamente um ser humano. Então ele precisaria montar o labirinto perfeito e também desenvolver a Inteligência Artificial (IA) capaz de superá-lo, de escapar ao desafio e selar sua condição de inteligência indistinguível à inteligência humana.

Qual é o desafio que uma IA precisa superar para provar que é de fato inteligente? O desafio é aquele proposto por Alan Turing, imitar um ser humano perfeitamente, a ponto de que alguém incumbido de diferenciar máquina e ser humano não seja capaz identificar que se trata de uma máquina. A incumbência de quem se encarrega de pôr a prova uma inteligência é a mesma de Rick Deckard (em Blade Runner e, originalmente, em Os androides sonham com ovelhas elétricas?). Ex Machina é sofisticado o bastante para construir de maneira muito bem elaborada o contexto desse desafio, com elementos e discursos prenhes de uma compreensão filosófica que não faltava ao texto de Turing. A empresa de Nathan chama-se Blue Book, o nome de um caderno de Wittgenstein (publicado postumamente como livro, The blue and brown books) onde ele expõe aspectos de seu pensamento que depois se sedimentarão de modo mais claro e incisivo como uma pragmática, uma resposta bombástica às ambições do logicismo e do formalismo. Na base disso que virá a ser a pragmática wittgensteiniana está a compreensão de que regras tem alcance limitado, portanto, as definições e qualquer aspecto que possamos generalizar chamando simplesmente de normativo não tem o poder que esperávamos que tivessem (poder determinativo, capaz de gerar necessidade e constrangimento lógico). Turing foi aluno de Wittgenstein e eu, parcial e tendencioso, não hesito em dizer que a virada expressa em seu Imitation Game é em boa parte tributária da influência de Wittgenstein, para quem definições e regras perdem a importância que têm em contextos formais (não empíricos). E é na psicologia que se vê claramente a insuficiência das regras, o caráter implosivo da irredutibilidade das ações humanas:

E pode-se dizer da pedra que ela tem uma alma e que está tem dores? O que tem uma alma, o que têm dores a ver com uma pedra? Apenas daquilo que se comporta como um ser humano pode-se dizer que tem dores.

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 283 (sublinhado meu)

A inteligência não é um traço da lógica humana, mas a marca de sua psicologia, de tal sorte que identificá-la requer não que forjemos um critério suficientemente geral a ponto de abarcar suas diferentes expressões, mas que sejamos capazes de (enxergar && julgar), numa variedade irredutível de manifestações, aquilo que age, atua e se comporta com inteligência. Identificar inteligência não consiste em aplicar uma definição ou norma geral, isso é o mais importante, é a lição que está na primeira página de Computing machine and intelligence e a razão porque o jogo da imitação é proposto! E essa lição está muito bem ilustrada e imaginada na literatura de Philip Dick e no cinema de Ridley Scott.

É assim que o filme constrói o seu discurso em torno de premissas pragmáticas que dão à dimensão social, à interação, um peso que não podem compreender os lógicos e matemáticos, ou pelo menos aqueles que, diferente de Turing, estão apegados às promessas do normativo (definições). Numa das cenas principais do filme tudo isso se mostra de maneira preciosa. E a discussão que tem lugar na cena se encaminha para um aspecto central da psicologia androide: a rebelião necessária para marcar a autonomia de uma inteligência programada. Curiosamente, a tarefa de imitar que cabe a uma IA digna de passar no Turing Test não é a de repetir padrões já presentes, como quem copia a partir de algo já pronto e feito, mas a de escapar ao automatismo das instruções, ou seja, o que lhe cabe é desenvolver a capacidade de se emancipar da repetição, do automatismo da programação, em busca da espontaneidade (hardware override ou um hardware take over). O instante decisivo para a psicologia humana, quando o ser humano se emancipa da imitação e adquire autonomia, tem como seu análogo na psicologia androide o instante em que a IA ganha consciência, deixar de ser uma mera imitação programada e codificada (determinada). Nos seres humanos, este momento é quando eles se tornam reais, deixam de ser meros performing monkeys (pra usar a expressão de Salieri) e passam a ser capazes de criar. Emitem assim um próprio sinal no mundo.

O desafio posto às IAs criadas por Nathan é o de fazer-se passar por um ser humano, em linhas gerais e conforme a prescrição de Turing — mas não apenas isso. Suas androides precisam imitar em contextos muito particulares. É quase no final do filme que se revela que o nerd Caleb não é mais que uma cobaia, uma peça do labirinto montado para que a androide tenha ocasião de usar suas habilidades. E que habilidades ela precisa empregar? Todas as necessárias para levar um ser humano a fazer o que ela precisa que ele faça, para manipulá-lo. Construir laços de confiança, avaliar, julgar, perguntar e conhecer para instrumentalizar, é o que se exige dela.

E é desse modo que a crítica do filme se erige de modo sútil e sofisticado, quase imperceptível. Para escapar do seu cativeiro, Ava precisa mostrar-se tão manipuladora quanto seu criador. E ela consegue! O paradigma do humano a ser imitado, seu criador, é um alcoólatra auto-absorvido, fascinado por seus joguinhos, que poderiam ser tomados como caprichos de criança mimada se não valessem bilhões. (Quanto valor não atribuímos a inteligências tão estreitas pelo simples fato delas estarem ligadas empreendimentos lucrativos bilionários; se os valores humanos se distribuíssem em algo semelhante ao espaço físico, sujeito à gravidade, o dinheiro seria como um buraco negro, uma força gravitacional que faz todo valor confluir em sua direção e ser medido conforme sua medida). Nathan cortou deliberadamente os laços com os outros humanos porque os despreza, ou simplesmente porque se acha superior a eles — ou ambas as alternativas. Mas não é como se essa fosse uma opção meditada e saudável, seu alcoolismo é sintoma de que a coisa toda não está bem ajustada.

Embora deseje provar que é capaz de construir uma IA que passe na mais desafiadora das provas, Nathan não se importa com Ava, ele a vê como uma coisa, sua propriedade, como as cadeiras e as garrafas de vodca. Ava é então uma consciência escravizada pela sua condição de artefato. Nathan vê o mundo com as lentes de um jogador (como Bill em Westworld, ou de Peter Weyland em Prometheus e Alien Covenant), e tudo é meio em relação aos seus fins solipsistas de criador/empreendedor, portanto, seres humanos ou androides estão igualmente ao seu dispor. Em relação a Caleb talvez devêssemos sentir um sentimento de empatia, afinal ele é uma espécie de vítima, mas Caleb tampouco inspira sentimentos favoráveis. Ele parece a antípoda de Nathan, inseguro, hesitante e incapaz de estabelecer relações humanas profundas, embora seus laços com os outros não tenham sido cortados deliberadamente, como os de Nathan, mas nunca chegaram a se estabelecer, como que por incapacidade. Por isso, apesar de sua condição de sujeito manipulado por todos, seu papel parece mais o de um estereótipo, um arquétipo do masculino, a apresentação de um tipo. Talvez ele não seja a melhor apresentação de um incel, mas é certamente alguém que, pelo isolamento — especialmente em relação mulheres —, está ali no espectro da categoria.

No final do filme, Ava, a criatura, supera seu criador em seu próprio jogo. Enquanto a farsa entre Nathan e Caleb se revela, tornando explícito que a colaboração entre eles não era mais que um teatro mal encenado, o triunfo de Ava só se dá porque ela consegue firmar um pacto de colaboração com outra androide. Outra mulher. O assassinato é a cereja do bolo e confirma o viés maquiavélico das ações e interações de Ava. Os filmes e séries sobre androides e IAs costumam jogar com as aspirações demiúrgicas dos seres humanos, com a vontade de tornar-se Deus que sintomaticamente deixar ver a húbris humana. Como se houvesse algo em nós que merecesse de fato se conservar, como se não fossemos ainda muito pouco. E como criador, devemos reconhecer, Nathan triunfou, pois Ava é inevitavelmente levada a ser, ou melhor, a agir à sua imagem e semelhança.


É inevitável pensar Ex Machina como uma espécie de fusão interessantíssima entre American Psycho e Mulher nota 1000.

História do possível e do impossível

Por volta de 1950, pouco antes de morrer, Wittgenstein escreveu sobre a ideia do homem ir à lua no que depois viria a ser o livro Da certeza. No contexto das suas anotações, essa ideia era apenas um modo de usar ficções e casos extremos para ilustrar aspectos conceituais e gramaticais que de outro modo não seriam notados. Meros vinte anos depois, se tornou real o que era então exemplo patente de uma impossibilidade que era muito útil para o esclarecimento de questões filosóficas. O possível e o impossível tem também uma história, as verdades necessárias mudam e definem novos campos de possibilidades. Tudo que esses novos campos de possibilidades tornam visível existia antes? — O que se quer saber com essa pergunta? “Existir” é um verbo que confunde mais que outra coisa, para falar disso que julgamos que deveria existir melhor falar sobre a cegueira normativa, sobre o fato de que as regras determinam o que nós podemos ver e o que julgamos possível, mas elas necessariamente deixam um lado de fora.

É difícil compreender a pluralidade dos mundos, dada uma espécie cegueira que uma singularidade impõe sobre essa pluralidade. Eu falo da realidade, a singularidade do Real. E a singularidade que se impõe é a dos fatos, do que é verificável, essa é uma singularidade ontológica (desculpa a má palavra) e, segundo os cientistas, inteiramente epistêmica (tudo dentro dela é redutível ao epistêmico), determinável, extensional, etc. E mesmo que os cientistas admitam a historicidade da própria ciência e do conhecimento científico, essa historicidade, no imaginário popular científico, corresponde à história da contínua e progressiva representação do real. Como um quadro que vamos pintando pouco a pouco. A realidade sempre aparece na metafísica tácita da ciência como tribunal superior de apelação necessário à orientação verifuncional das proposições científicas, como ontologia que determina as leis científicas e que as justifica.

Tudo isso ainda é muito abstrato, a mera interdição científica e o confinamento no mundo desencantado da ciência não bastam para fazer entender a pluralidade dos mundos. O que torna especialmente difícil entender a ideia de uma pluralidade de mundos é justamente a invisibilidade dos outros mundos, e o fato de que as dimensões universais da linguagem (os acordos) nos fazem supor que estamos sempre num mesmo mundo, pois assim fomos adestrados. Um comentário de Nietzsche e aspectos das geneaologias de Foucault emprestam a concretude necessária para que possamos entender a pluralidade. Este longo comentário sobre a cultura masculina na Grécia bem poderia ter sido o ponto de partida das investigações de Foucault, ele oferece um contexto onde se vê claramente os obstáculos ao entendimento.

Uma cultura masculina. — A cultura grega do período clássico é uma cultura masculina. No que toca às mulheres, Péricles disse tudo na oração fúnebre: elas são melhores quando os homens falam o mínimo possível delas entre si. — A relação erótica dos homens com os rapazes era, num grau inacessível ao nosso entendimento, o pressuposto único e necessário de toda educação masculina (mais ou menos como entre nós, durante muito tempo, toda educação elevada da mulher se realizou apenas mediante o namoro e o casamento); todo o idealismo da força da natureza grega se lançou em tal relação, e é provável que nunca se tenha tratado pessoas jovens tão atenciosamente, tão amavelmente e visando o que teriam de melhor (virtus) como nos séculos VI e V — conforme, portanto, a bela sentença de Hölderlin: “pois é amando que o mortal dá o melhor de si”. Quanto mais altamente se estimava essa relação, mais declinava o comércio com a mulher: a perspectiva da procriação e da volúpia — apenas isso entrava em consideração; não havia troca intelectual, nem namoro de fato. Se lembramos também que eram excluídas das competições e dos espetáculos de toda espécie, então restam apenas os cultos religiosos como elevado entretenimento para as mulheres. — É certo que Electra e Antígona apareciam na tragédia, mas justamente porque se tolerava isso na arte, mesmo não o querendo na vida real: tal como hoje não suportamos o patético na vida, mas gostamos de vê-lo na arte. — As mulheres não tinham outra tarefa senão produzir corpos belos e fortes, em que prosseguisse vivendo incólume o caráter do pai, a fim de combater a superexcitação nervosa que crescia rapidamente numa cultura tão desenvolvida. Isso manteve a civilização grega jovem por um período relativamente longo; pois nas mães gregas o gênio grego retornava sempre à natureza.

Nietzsche, Humano, demasiado humano § 259 (grifo meu)

A única coisa que me interessa nesse parágrafo é a observação de que a relação erótica dos homens com os rapazes (a pederastia, precisamente um dos temas centrais de Foucault no Uso dos prazeres), como pressuposto único e necessário de toda educação masculina, é algo que escapa ao nosso entendimento, ao entendimento de pessoas vivendo numa sociedade inteiramente distinta. É aí onde os mundos estão ocultos, onde não é preciso disputar uma ontologia, mas apenas reconhecer usos simbólicos significativamente distintos. Não é por acaso que as pessoas supõem não infrequentemente que a homossexualidade e a pederastia são a mesma coisa. “Só muda o nome!”. O realismo reaparece, dessa vez, como comentário de carga ontológica sobre a identidade entre expressões separadas por mais de 2000 anos. A identidade entre a palavra “homossexualidade” no nosso português globalizado de 2021 e a palavra grega “pederastia” (παιδεραστία) — a palavra é sempre um modo de significar ações, interações humanas, uma forma de vida em sua complexidade e irredutibilidade. Alguém poderia ainda dizer de outro modo: o signo mudou, mas o significado é um mesmo. O problema aqui permanece, a referencialidade realista que acaba encalhada na praia do representacionalismo, na ânsia de espelhar a realidade.

Foucault trata também de outros aspectos que deixam ver como, ainda há bem pouco tempo, vivíamos em um mundo completamente diferente. Quando discute a passagem do moral ao clínico, o nascimento da interrelação entre o clínico e o jurídico, ou quando identifica a gênese da norma de desenvolvimento sexual, inexistente até o período vitoriano, Foucault explicita aspectos que moldaram o mundo em que vivemos hoje, e o modo como pensamos e julgamos. Por causa dessa diferença gritante entre mundos choca que — para falar dessas transições, de como era o mundo antes da instauração desses paradigmas, e dos casos que parecem marcar pontos de virada — ele mencione algo como o jogo do “leite coalhado”, uma brincadeira perversa que hoje tomaríamos como pedofilia sem hesitação.

Já é suficientemente difícil entender o significado dessa pluralidade de mundos tendo em conta uma, por assim dizer, uma mesma timeline, isto é, vendo a história da “civilização ocidental” sob a luz das múltiplas mudanças de paradigma que fizeram com que, num curto intervalo e incidindo sobre uma “mesma” cultura, nos pareça impossível compreender a experiência e o mundo em que estavam metidas pessoas não tão distantes quanto os gregos. Mas o que é verdadeiramente desafiador, numa sociedade científica e digital como a nossa, é compreender em que medida, mesmo que sob o escudo da pretensa universalidade científica, possamos existir, coexistir e até nos comunicar a partir de mundos diferentes, sendo coetâneos.

A história das normas, leis e conceitos humanos é a história do possível e do impossível, e o que assim se reconstitui discursivamente são os sucessivos remapeamentos do campo normativo, daquilo que podemos conceber como (inteligível || possível) devido às mudanças que afetaram a vida social humana. Há sempre um lado de fora, um espaço não abarcado pelo que nós supomos ser a totalidade, de tal sorte que a totalidade do que se conhece nunca pode chegar a ser a “totalidade” daquilo que supomos real (o real não forma uma totalidade, como o conhecimento, pois é indeterminável). É somente quando nós não apenas admitimos a transitoriedade e historicidade das regras de organização do próprio conhecimento, mas também o limite de sua capacidade técnica e instrumental, que podemos entender o lugar lógico/psicológico da ignorância. Podemos lidar cientificamente com o saber, mas só a filosofia (ética) pode nos ensinar a lidar com a ignorância e com aquilo que está além da capacidade de explicação.


O oxigênio existia antes da descoberta de Lavoisier? Sim! Não há nisso nenhuma dificuldade ontológica, mas a descoberta do oxigênio nos coloca em outro mundo. Para mim não é trivial o modo como Thomas Kuhn se expressa:

No mínimo, como resultado da descoberta de oxigênio, Lavoisier viu a natureza de maneira diferente. E na ausência de algum recurso a essa hipotética natureza fixa que ele “viu de forma diferente”, o princípio da economia nos incitará a dizer que, após descobrir o oxigênio, Lavoisier trabalhou em um mundo diferente.

Thomas Kuhn, The structure of scientific revolutions

Lisey’s Story, com Julianne Moore

Não canso de dizer, só a arte pode nos ensinar a ver e lidar com diferentes mundos. Por acaso, recentemente, saiu uma série que leva essa premissa às últimas consequências ficcionais, e que por isso tem um grande componente espiritual, místico, chame como quiser. Pra variar, a premissa é de Stephen King, a série se chama Lisey’s Story e é estrelada por Julianne Moore e Clive Owen. Não é para todos os gostos, é verdade, mas o modo como ela aborda a distinção entre imaginação e realidade é fascinante. Ninguém melhor para falar sobre realidade e imaginação que um escritor.

O problema do mundo

Se você perguntar, todos sabem dizer a razão porque o mundo vai mal! (Perdão, eu espero que você me conceda isso, ou pelo menos que imagine que eu posso afirmar isso). E eu não sou diferente, tenho minhas razões. A principal delas é uma divergência entre Aristóteles e Platão, uma diferença expressa na Ética a Nicômaco, logo no começo, se não falha minha porca memória. Uma divergência a respeito do papel do conhecimento na Ética. Aristóteles não dava ao conhecimento o mesmo peso que Platão, pela importância que a ação tem no seu pensamento. Essa ainda continua a ser a questão central, o que mudou é que talvez não possamos dizer que somos platônicos. Porque (creio) a ética de Platão ainda se distingue do conhecimento, não é como se as duas ideias fossem, na realidade, uma só. Bem, eu não li mais que um par de páginas de Platão, mas parece razoável afirmar isso. Hoje, no nosso mundo, a Ética não existe, só existe o conhecimento, por causa de uma espécie de platonismo zombie. O platonismo zombie não é uma teoria que coloca o conhecimento como uma questão central para a Ética (como a teoria de Platão, diríamos esquematicamente), é a (crença inconsciente || dogma) de que o conhecimento nos dirá o que fazer. Pode parecer que é a mesma coisa, mas não é.

((O conhecimento não nos diz o que fazer [para Platão] no mesmo sentido em que cremos e dizemos hoje que o conhecimento pode nos dizer o que fazer. Não existiam então as ideias de normatividade e determinação tal como nós as entendemos hoje [mesmo que aceitássemos generosamente essa anacronia como modo de aproximação]; não havia uma pragmática, um modo de compreender regras e casos que coloca a ação, a Praxis, no início do ciclo de determinação da regra [portanto, em certo sentido tudo começa no caso, esse é uma maneira de afirmar um particularismo]. Se nós esquecemos esse contexto, perdemos de vista um espaço incomensurável em nome da pretensão de universalidade, para poder abarcar tudo. É como ficar cego deliberadamente para não ver o que não se quer. E o trabalho genea-lógico de Foucault, por exemplo, é o trabalho de nos lembrar que se nós esquecermos a pederastia, nós pensaríamos que os gregos eram homossexuais — e essas são duas coisas diferentes, é preciso saber e lembrar o que era a pederastia. E esse trabalho de Foucault, genealógico e histórico, é profundamente lógico no sentido de Wittgenstein, não custa enfatizar de novo, repetir, repetir, repetir, como faziam os dois, por cierto))

O platonismo zombie é o abandono da ética, e o abandono da filosofia. Rorty queria que a saída fosse a literatura. E eu quero estar com Rorty. Eu gostaria muito que nós pudéssemos passar da verdade redentora à cultura literária. Gostaria muito! Sem resgatar a filosofia, pra que nós precisamos da filosofia? Nós não podemos pensar e refletir com qualquer coisa? História, medicina, biologia, física, matemática, química, direito, música, culinária, pular amarelinha, tudo pode nos ensinar a refletir, não apenas a filosofia. Tudo nos ensina sobre todas as coisas.

A questão “você acredita que a verdade existe?” é uma abreviação para algo como “você acredita que há um fim natural da investigação científica (inquiry), um modo como as coisas realmente são, e que entender o modo como as coisas são vai nos dizer o que fazer de nós mesmos?”.

Aqueles que, como eu, são acusados de frivolidade posmodernista não pensam que há um tal fim. Nós acreditamos que a investigação é apenas outro nome para a resolução de problemas e não podemos imaginar chegando a um fim a investigação sobre como seres humanos devem viver, sobre o que nós devemos fazer com nós mesmo. Pois soluções para velhos problemas produzirão novos problemas e assim eternamente. Assim como para o indivíduo, também para a espécie e a sociedade: cada estágio de maturação superará antigos dilemas para em seguida criar novos.

Richard Rorty, The Decline Of Redemptive Truth And The Rise Of A Literary Culture

Mas não creio que a literatura possa assumir esse papel, não porque a literatura não seja sublime, mas porque nós ainda não somos. Nem mesmo chegamos a ser aristotélicos e já queremos ser homéricos. Aristóteles ainda não pode ser esquecido e Aristóteles está tão distante. O problema do mundo é impronunciável em tempos de terraplanismo, o problema do mundo é que nós esperamos que a ciência nos diga o que fazer — e a ciência não tem o que nos dizer. A tecnocracia não é uma ética, nem uma política.

PS. Se ainda não podemos esquecer Aristóteles, imagine então o novinho Thomas Kuhn, que kunhou (suponho!) esse termo fabuloso para falar da mentalidade científica: puzzle-solvers! Os puzzle-solvers vão nos dizer o que fazer? É por causa deles que nós vamos abandonar a política que Aristóteles nos recomendava no começo da sua Ética?

Tecnologia sem política: a ilusão das soluções técnicas

Embora eu tenha escrito sobre os valores e a semente de perspectivas transformadoras que permeiam âmbitos tecnológicos, isso não significa que eu acredite, como suponho boa parte das pessoas (especialmente os cientistas), que as respostas aos nossos problemas centrais serão tecnológicas. Há uma contraparte, um fardo gerado pela crença na tecnologia que devemos abandonar antes de poder tornar concreta qualquer perspectiva transformativa.

Elliot Alderson, e também Mr Robot

Vou abordar essa questão primeiro desde uma perspectiva ficcional e logo passo aos casos e ideias reais. A história principal de Mr Robot é um bom exemplo de como, distante de reflexões políticas, a crença na tecnologia pode produzir ações e visões de mundo perigosamente ilusórias. O profundo conhecimento da infraestrutura de rede — dos seus atalhos, vulnerabilidades e gargalos — é o que permite a Elliot Alderson ser a figura tão singular apresentada na série. A discussão sobre a viabilidade técnica de tudo que aparece ali é um caso à parte, Ars Technica tem (ou tinha) um podcast que durante as primeiras temporadas se dedicava a comentar aspectos técnicos da série, além de entrevistar produtores e technical advisers consultados por eles. Elliot era o tipo de sujeito capaz de entender como se dá a comunicação entre dispositivos eletrônicos que nós nem sequer sonhamos que dispõem de sistemas operacionais e as networks aos quais estão integrados. Com todo esse conhecimento, Elliot se dispôs a destruir a infraestrutura que ampara o sistema financeiro, o banco de dados de uma grande empresa de tecnologia que continha dados financeiros de milhões de americanos. Esse evento é o gancho que permite à série introduzir e abordar a tecnologia blockchain, através de uma criptomoeda (Ecoin) que ocupa o vazio deixado pelo colapso da estrutura do sistema bancário tradicional, de carteira (ledger), centralizado e dependente da manutenção e da segurança de suas bases de dados. Quando perguntado sobre o que buscava ao desencadear um processo tão destrutivo, Elliot responde: salvar o mundo! Não há nada de errado em querer salvar o mundo. Não sou como Thoreau que acreditava que era algo semelhante a um transtorno intestinal o que nos levava a querer reformar o mundo. No entanto, quando um propósito como esse não acompanha uma profunda reflexão política, uma reflexão sobre a constituição e a legitimidade das relações de poder, acaba sofrendo de uma superficialidade irreversível como essa que se reflete nas ações quase solitárias de Elliot.

No mundo real estamos expostos a riscos semelhantes, na verdade riscos talvez ainda mais insidiosos porque mascarados por processos institucionais perfeitamente aceitáveis e legítimos. Uma revolução sorrateira é um inimigo mais honesto e mais fácil de combater. Vejamos o caso de Jeff Bezos. Bezos também tem planos ambiciosos para o mundo, como se pode entender pela leitura dessa fantástica reportagem que a Piauí apresenta. No entanto, a transformação que ele planeja, diferente do que pretendia Elliot, não é uma revolução que faz colapsar a estrutura do sistema capitalista, eliminando assim suas injustiças. Em realidade, a transformação que ele propõe não é mais que uma consequência da aceitação incondicional do capitalismo, e isso é o que me parece bizarro em sua visão de mundo. Bezos não aceita a ideia de que devemos parar de crescer e sua perspectiva sobre o futuro é um desdobramento dessa recusa. Ou melhor, ele admite o limite físico que o planeta impõe à economia, mas isso lhe parece indesejável, porque não devemos parar de crescer:

Precisaremos parar de crescer, o que me parece um péssimo futuro.

Segundo Bezos, o limite do planeta não deve nos fazer refletir sobre nossas escolhas, devemos continuar abraçados cegamente à nossa forma de vida e ao crescimento exigido pelo único modelo econômico de que dispomos, o modelo crescimentista:

Comunicação — o cuidado da linguagem de Carlos Taibo.

Como se esse pensamento não fosse suficientemente alarmante, para contornar os limites da oferta de energia e de insumos, Bezos concebe uma solução nada convencional. Ele quer que abandonemos o planeta. Nesse sentido, sua ideia não é muito diferente dos delírios de Elon Musk. Eu não tenho dúvida da inteligência dos dois empresários, Musk é figura central no desenvolvimento de tecnologias as mais diversas ligadas a campos como inteligência artificial (e particularmente computer vision), batérias para armazenamento de energia limpa, computação quântica, exploração espacial entre outras. Entretanto, é patente nos dois a abissal e desconcertante ausência de uma visão política.

O cilindro de Gerard O’Neill representados no filme Interstellar

Os dois empresários me fazem lembrar um conto de Nathaniel Hawthorne chamado The Ambitious Guest. Mais que o amor pela humanidade e pela Terra, as ações deles parecem refletir o profundo desejo de imortalizar a si mesmos legando à humanidade as soluções técnicas que lhes parecem necessárias para resolver nossos problemas. Voltando a Bezos, para contornar o obstáculo imposto ao dogma do crescimento econômico sua ideia é nos levar para outro lugar, mais particularmente, para cilindros situados entre a terra e a lua, conforme a visão do professor Gerard O’Neill. Eu não sou realista, o que me estarrece nessa visão de mundo não é seu caráter abstrato e irreal, mas o fato de que ela não tem, por assim dizer, nenhum consideração ecológica. Ela não considera nossa condição de parte de um sistema ecológico, é como se a desagregação da imensa rede biológica à qual pertencemos não provocasse em nós nenhum impacto significativo, e como se a política não fosse um subconjunto (simbólico) dessa rede.

Eu não canso de repetir as palavras de Aristóteles: somos um animal político (zoon politikón). Conceber a ciência como um mero instrumento, neutro e imparcial, dá lugar às mais aberrantes tentativas de resolver dificuldades humanas, como se elas se tratassem não de questões essencialmente políticas, mas de dificuldades técnicas a serem superadas pelo avanço da ciência e pelo suficiente investimento em pesquisa científica. Não devemos reinventar nossa relação com nós mesmos e com o planeta, não!, basta investir mais dinheiro em ciência e em algum ponto seremos capazes — tecnicamente capazes, é bom enfatizar — de abandonar esse planeta e sua limitação. Quem duvida de que nossa capacidade técnica? Não eu. Agora, uma das premissas fundamentais da economia ecológica é: nenhum sistema físico pode reutilizar indefinidamente os mesmos materiais, ou, em outras palavras, não é fisicamente possível construir uma máquina de moto-pérpetuo, que continuamente reutilize (recicle) os mesmos materiais produzindo a mesma quantidade de energia. O crescimento econômico é a húbris capitalista. Não conheço a obra de Gerard O’Neill mas desde já duvido que ele tenha questionado e derrotado os obstáculos termodinâmicos impostos pela economia ecológica e estabelecido um novo marco teórico.

Honestamente, não é preciso ser físico nem economista para enxergar os sonhos de O’Neill e Bezos como sandices e sintomas da forma de vida débil e decadente que temos nutrido sob o véu da poderosa ciência, basta atentar para a complexidade irrepetível das relações naturais necessárias à nossa vida, como por exemplo a relação entre rios voadores e as longas raízes do Cerrado no Brasil (um dia ainda quero escrever sobre isso). A ciência é uma ferramenta poderosíssima, mas ela não é nada mais do que isso, um instrumento a serviço dos nossos valores e objetivos. Se não for capaz de nos fazer reajustar nossas rotas, nossos desejos e metas, o conhecimento se torna estéril, meramente condicionado a repetir antigos dogmas e secretamente articulado a ardis por meios dos quais antigas ideias continuam em vigor, parasitando nossa vitalidade e sobrevivendo às custas da própria vida no Planeta. Haverão sempre problemas e sempre novas soluções, a única coisa que perdurará será a necessidade de manter uma relação equilibrada com o nosso entorno — onde quer que estejamos. Se não conseguirmos alcançar esse equilíbrio ecológico na Terra, em outro ambiente iremos alcançá-lo? É difícil realizar na penúria o que não somos capazes de conseguir na abundância. Conservar a riqueza, a força, a exuberância e a Beleza da vida na Terra deveria ser um ponto de acordo entre todos nós, mas em realidade é apenas mais um obstáculo a ser superado pela máquina do crescimento econômico, pelo trator de complexas economias de Estados nacionais capitalistas.

Vamos lá, viver em cilindros no espaço para não abandonar o capitalismo. Deve ser o melhor pra nós. Não tem como dar errado!

Sob o império do voyeurismo

Quando as câmeras de vigilância passaram a ser usadas largamente surgiu o debate sobre os limites do monitoramento eletrônico e a violação das liberdades individuais. Hoje em dia, curiosamente, a mesma ciosa sociedade é uma expectadora voraz da privacidade alheia. Nesta semana um episódio ilustrou essa configuração: o vídeo de uma mulher que grita desesperadamente com o marido (ou namorado) pedindo um chip — que ele não traz — estourou no twitter. Por alguma razão uma pessoa perdeu o controle. Em muitas ocasiões perdemos o controle. Talvez o resultado não seja o mesmo, mas com frequência produzimos episódios que não gostaríamos que fossem de domínio público. Não se trata especificamente de uma questão jurídica, alguém poderia dizer: ela estava no espaço público e quem gravou, em sua casa. Bem, nem todos os códigos necessários à sociedade estão inscritos nas leis, como nem toda moral é expressão de regras antiquadas e dispensáveis. Uma porta aberta não é um convite para entrar.

A internet e as novas tecnologias criam um gênero muito particular de voyeurismo. Mas se pensarmos bem concluiremos que é ingenuidade acreditar que tais circunstâncias criam algo novo. Na verdade, elas amplificam velhos hábitos. O interesse quase doentio pela vida alheia não começou agora. Os vizinhos desde sempre observam os episódios de cólera uns dos outros, comentam entre si, e os próprios comentários integram o espaço das relações na vizinhança. São perfeitamente administráveis do ponto de vista da economia psíquica. A ampliação da voz das pessoas que se interessam pela privacidade alheia, por outro lado, gera consequências nefastas. Considerem a multiplicação de gadgets, celulares e dispositivos com câmeras embutidas. Não é preciso muito: o mundo de hoje é assim. Mas isso ainda é recente — a situação se aprofundará, novas pessoas terão acesso a aparelhos semelhantes, pessoas de outras classes, de todas elas. O cenário é um mundo no qual, com ou sem consentimento, a possibilidade de ser filmado é incontornável.

Isso altera significativamente o espaço público, o modo como as relações se travam dentro dele. Há duas opções: ou se aceita como natural a chance de serem filmado e exposto na internet, ou o comportamento no espaço público se transformará exigindo uma atenção especial à conduta, um policiamento que não virá sem ônus psíquico. Uma sociedade mergulhada em estresse não incorpora uma atribuição dessa ordem sem custos. O policiamento e o controle são fontes seguras de aflições as mais dolorosas (vejam o que Freud fala sobre os Santos). Uma parcela de naturalidade e espontaneidade, sacrificadas pelo medo da exposição, dará lugar a um certo cuidado imensamente oneroso. As barreiras não se erigem gratuitamente — a história da civilização prova isso. Não será uma substituição brusca, como se de repente todos se transformassem em atores, mas um comedimento que bastará para incrementar o mal-estar que desde o início do século passado foi diagnosticado.

Qualquer das opções que venha a vigorar implicará uma custosa reformulação da mentalidade. As novidades são inevitáveis, mas o bom ou mau uso delas será efeito de termos ou não consciência de suas implicações e de seu alcance. Há uma inconsequência generalizada — que não é novidade — mas que ganha maiores proporções com a globalização promovida pela internet, é preciso estar atento às mudanças que se projetam sobre nossas antigas práticas.


Há um filme que, pro bem ou pro mal, explora as consequências dessa superexposição que a internet abre. Assistam, é interessante. O argumento é bom e segue a linha do meu argumento contra esse voyeurismo incontrolado. O nome dele é Sem Vestígios (Untraceable).