À sua imagem e semelhança, Ex Machina

Ex Machina é uma crítica a um só tempo feroz e sofisticada à masculinidade. Entre outras coisas, claro. Dois tipos de homens são apresentados no filme, dois exemplares, casos de regras muito gerais e vagas, mas que ainda assim perfazem claramente tipos distintos. O primeiro é um nerd solitário (Caleb) em cujo histórico de navegação podemos encontrar um padrão de mulher, um tipo de mulher recorrente em suas buscas em sites pornôs. A gente só fica sabendo no final, mas é importante ter essa informação em conta para caracterizar seu tipo. O outro é um empresário jovem (Nathan), bilionário, que vive isolado no meio do nada. Trata-se de um escroto misógino, misantropo, que decidiu desenvolver um modo peculiar de provar que a Inteligência Artificial (Ava) criada por ele era de fato uma inteligência, ou seja, seria capaz de se fazer passar por um humano, de imitar perfeitamente um ser humano. Então ele precisaria montar o labirinto perfeito e também desenvolver a Inteligência Artificial (IA) capaz de superá-lo, de escapar ao desafio e selar sua condição de inteligência indistinguível à inteligência humana.

Qual é o desafio que uma IA precisa superar para provar que é de fato inteligente? O desafio é aquele proposto por Alan Turing, imitar um ser humano perfeitamente, a ponto de que alguém incumbido de diferenciar máquina e ser humano não seja capaz identificar que se trata de uma máquina. A incumbência de quem se encarrega de pôr a prova uma inteligência é a mesma de Rick Deckard (em Blade Runner e, originalmente, em Os androides sonham com ovelhas elétricas?). Ex Machina é sofisticado o bastante para construir de maneira muito bem elaborada o contexto desse desafio, com elementos e discursos prenhes de uma compreensão filosófica que não faltava ao texto de Turing. A empresa de Nathan chama-se Blue Book, o nome de um caderno de Wittgenstein (publicado postumamente como livro, The blue and brown books) onde ele expõe aspectos de seu pensamento que depois se sedimentarão de modo mais claro e incisivo como uma pragmática, uma resposta bombástica às ambições do logicismo e do formalismo. Na base disso que virá a ser a pragmática wittgensteiniana está a compreensão de que regras tem alcance limitado, portanto, as definições e qualquer aspecto que possamos generalizar chamando simplesmente de normativo não tem o poder que esperávamos que tivessem (poder determinativo, capaz de gerar necessidade e constrangimento lógico). Turing foi aluno de Wittgenstein e eu, parcial e tendencioso, não hesito em dizer que a virada expressa em seu Imitation Game é em boa parte tributária da influência de Wittgenstein, para quem definições e regras perdem a importância que têm em contextos formais (não empíricos). E é na psicologia que se vê claramente a insuficiência das regras, o caráter implosivo da irredutibilidade das ações humanas:

E pode-se dizer da pedra que ela tem uma alma e que está tem dores? O que tem uma alma, o que têm dores a ver com uma pedra? Apenas daquilo que se comporta como um ser humano pode-se dizer que tem dores.

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 283 (sublinhado meu)

A inteligência não é um traço da lógica humana, mas a marca de sua psicologia, de tal sorte que identificá-la requer não que forjemos um critério suficientemente geral a ponto de abarcar suas diferentes expressões, mas que sejamos capazes de (enxergar && julgar), numa variedade irredutível de manifestações, aquilo que age, atua e se comporta com inteligência. Identificar inteligência não consiste em aplicar uma definição ou norma geral, isso é o mais importante, é a lição que está na primeira página de Computing machine and intelligence e a razão porque o jogo da imitação é proposto! E essa lição está muito bem ilustrada e imaginada na literatura de Philip Dick e no cinema de Ridley Scott.

É assim que o filme constrói o seu discurso em torno de premissas pragmáticas que dão à dimensão social, à interação, um peso que não podem compreender os lógicos e matemáticos, ou pelo menos aqueles que, diferente de Turing, estão apegados às promessas do normativo (definições). Numa das cenas principais do filme tudo isso se mostra de maneira preciosa. E a discussão que tem lugar na cena se encaminha para um aspecto central da psicologia androide: a rebelião necessária para marcar a autonomia de uma inteligência programada. Curiosamente, a tarefa de imitar que cabe a uma IA digna de passar no Turing Test não é a de repetir padrões já presentes, como quem copia a partir de algo já pronto e feito, mas a de escapar ao automatismo das instruções, ou seja, o que lhe cabe é desenvolver a capacidade de se emancipar da repetição, do automatismo da programação, em busca da espontaneidade (hardware override ou um hardware take over). O instante decisivo para a psicologia humana, quando o ser humano se emancipa da imitação e adquire autonomia, tem como seu análogo na psicologia androide o instante em que a IA ganha consciência, deixar de ser uma mera imitação programada e codificada (determinada). Nos seres humanos, este momento é quando eles se tornam reais, deixam de ser meros performing monkeys (pra usar a expressão de Salieri) e passam a ser capazes de criar. Emitem assim um próprio sinal no mundo.

O desafio posto às IAs criadas por Nathan é o de fazer-se passar por um ser humano, em linhas gerais e conforme a prescrição de Turing — mas não apenas isso. Suas androides precisam imitar em contextos muito particulares. É quase no final do filme que se revela que o nerd Caleb não é mais que uma cobaia, uma peça do labirinto montado para que a androide tenha ocasião de usar suas habilidades. E que habilidades ela precisa empregar? Todas as necessárias para levar um ser humano a fazer o que ela precisa que ele faça, para manipulá-lo. Construir laços de confiança, avaliar, julgar, perguntar e conhecer para instrumentalizar, é o que se exige dela.

E é desse modo que a crítica do filme se erige de modo sútil e sofisticado, quase imperceptível. Para escapar do seu cativeiro, Ava precisa mostrar-se tão manipuladora quanto seu criador. E ela consegue! O paradigma do humano a ser imitado, seu criador, é um alcoólatra auto-absorvido, fascinado por seus joguinhos, que poderiam ser tomados como caprichos de criança mimada se não valessem bilhões. (Quanto valor não atribuímos a inteligências tão estreitas pelo simples fato delas estarem ligadas empreendimentos lucrativos bilionários; se os valores humanos se distribuíssem em algo semelhante ao espaço físico, sujeito à gravidade, o dinheiro seria como um buraco negro, uma força gravitacional que faz todo valor confluir em sua direção e ser medido conforme sua medida). Nathan cortou deliberadamente os laços com os outros humanos porque os despreza, ou simplesmente porque se acha superior a eles — ou ambas as alternativas. Mas não é como se essa fosse uma opção meditada e saudável, seu alcoolismo é sintoma de que a coisa toda não está bem ajustada.

Embora deseje provar que é capaz de construir uma IA que passe na mais desafiadora das provas, Nathan não se importa com Ava, ele a vê como uma coisa, sua propriedade, como as cadeiras e as garrafas de vodca. Ava é então uma consciência escravizada pela sua condição de artefato. Nathan vê o mundo com as lentes de um jogador (como Bill em Westworld, ou de Peter Weyland em Prometheus e Alien Covenant), e tudo é meio em relação aos seus fins solipsistas de criador/empreendedor, portanto, seres humanos ou androides estão igualmente ao seu dispor. Em relação a Caleb talvez devêssemos sentir um sentimento de empatia, afinal ele é uma espécie de vítima, mas Caleb tampouco inspira sentimentos favoráveis. Ele parece a antípoda de Nathan, inseguro, hesitante e incapaz de estabelecer relações humanas profundas, embora seus laços com os outros não tenham sido cortados deliberadamente, como os de Nathan, mas nunca chegaram a se estabelecer, como que por incapacidade. Por isso, apesar de sua condição de sujeito manipulado por todos, seu papel parece mais o de um estereótipo, um arquétipo do masculino, a apresentação de um tipo. Talvez ele não seja a melhor apresentação de um incel, mas é certamente alguém que, pelo isolamento — especialmente em relação mulheres —, está ali no espectro da categoria.

No final do filme, Ava, a criatura, supera seu criador em seu próprio jogo. Enquanto a farsa entre Nathan e Caleb se revela, tornando explícito que a colaboração entre eles não era mais que um teatro mal encenado, o triunfo de Ava só se dá porque ela consegue firmar um pacto de colaboração com outra androide. Outra mulher. O assassinato é a cereja do bolo e confirma o viés maquiavélico das ações e interações de Ava. Os filmes e séries sobre androides e IAs costumam jogar com as aspirações demiúrgicas dos seres humanos, com a vontade de tornar-se Deus que sintomaticamente deixar ver a húbris humana. Como se houvesse algo em nós que merecesse de fato se conservar, como se não fossemos ainda muito pouco. E como criador, devemos reconhecer, Nathan triunfou, pois Ava é inevitavelmente levada a ser, ou melhor, a agir à sua imagem e semelhança.


É inevitável pensar Ex Machina como uma espécie de fusão interessantíssima entre American Psycho e Mulher nota 1000.

Pular o processo: a força da prática

Espírito e técnica

Mestrinho disse, nessa entrevista a Nelson Faria, que não sabe ler partitura. Essa é uma ocasião mais que propícia para falar do primado da prática, do fato de que as regras têm uma posição secundária em relação à prática, apesar de vivermos na era dos computadores. Mestrinho disse que insistiram para ele estudar teoria musical, mas ele não queria “passar pelo processo”, pois o processo era muito lento e grande parte do que lhe era ensinado ele já sabia fazer. Na filosofia de Wittgenstein, a formulação do paradoxo da relação entre regras e práticas é a seguinte:

Nosso paradoxo era: uma regra não poderia determinar um modo de agir, pois cada modo de agir deveria estar em conformidade com a regra.

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 201

Eu gosto de reformular o paradoxo nos seguintes termos: “uma regra não pode nos dizer o que fazer a menos que já saibamos o que fazer“. Isso significa que a regra não pode ser o começo da determinação do sentido, na verdade, a própria constituição do seu papel normativo depende de uma prática que pode instaurar ou derrogar essa função. A pergunta que apresenta um contexto mais amplo no qual as duas perspectivas aparecem conectadas é: onde a execução efetivamente começa, na regra ou na prática? Apesar da tendência, infelizmente compreensível, de se envergonhar por não saber ler partitura, Mestrinho afirma hesitantemente que, pelo menos no seu caso, a prática é decisiva para constituição da habilidade de tocar. Nelson Faria confirma essa perspectiva e acrescenta uma analogia muito apropriada: aprender a tocar (e saber tocar) é como aprender uma língua, você aprende a falar e só muito depois vem a saber (ou não!) da existência das regras gramaticais, dos conectivos, dos elementos que as regras organizam, etc.

A gramática de uma linguagem não é registrada e não chega a existir até que linguagem tenha sido falada pelos seres humanos por muito tempo.

Ludwig Wittgenstein, Gramática filosófica

Agora, como é o outro lado? Por que a vergonha quando se desconhece a teoria, as regras do jogo? E qual é a função da teoria? O espírito está dado, ele nasce com Mestrinho, já a técnica permite que qualquer um possa desenvolver uma capacidade que Mestrinho já nasceu sabendo, a capacidade de tocar e criar. A técnica registra a regularidade das ações em regras que instituem as condições de um saber fazer (know how) e ao se estabelecer desse modo ela torna possível que essa competência possa ser adquirida não apenas por aqueles que a tem no espírito, mas por qualquer um. Assim teve lugar o enorme salto evolutivo que só a colaboração é capaz de propiciar. Eu disse colaboração, não competição, para que fique claro! Numa sociedade científica, ou melhor, na Tecnosfera em que nós vivemos, é muito fácil perder de vista o primado da prática, e do espírito, em função do lugar que o método e as regras têm no nosso panorama ideológico. E é ante a força simbólica desse perspectiva que mesmo um talento nato como Mestrinho chega a sentir vergonha de algo que ele simplesmente não precisa.

Espero que não seja preciso dizer que não há dúvida de que a técnica pode permitir que alguém imagine novos mundos. Vejamos o caso de Jacob Colliers. A Jacob seguramente não lhe falta espírito, mas a este legado natural se sobrepõe uma generosa camada de compreensão teórica. (Adam Neely, que eu mencionei nesse post, também sabe muito de prática e teoria musical) Assim suas habilidades se expandem e, dispondo de dinheiro para comprar equipamentos e tendo adquirido conhecimento e competência para usar softwares de edição de som, as possibilidades de criação e execução parecem ampliar-se indefinidamente. Mas não é como se houvesse de fato uma perda na ausência de uma compreensão teórica, ainda que não deixemos de sentir a ausência de uma compreensão técnica como perda e deficit. Parece como se não pudéssemos deixar de sentir como faltante, carente, tudo que não se envolve com a técnica. Mas as expressões da técnica são também expressões do espírito. Embora estejamos inclinados a pensá-la em termos estritamente normativos — envolvendo regras e o adestramento que vai construindo uma habilidade —, o melhor que a técnica pode fazer (e é preciso lembrar que mesmo a poesia necessariamente envolve técnica) é estimular o espírito de outros seres humanos, como o espírito de Alexander von Humboldt se integrou ao espírito do jovem Charles Darwin, a ponto de lançá-lo numa aventura de mais de 5 anos pelo hemisfério sul com o Beagle. Sem falar que a técnica pode simplesmente limitar o espírito, isso se pode constatar facilmente dentro da Universidade, e, aliás, em certa medida já está também na frase de Sêneca: “excesso de livros, barafunda do espírito!”.

O problema da técnica é a sua quase imperceptível aura ideológica, aquilo que caracteriza a Tecnosfera, a pretensa redutibilidade que se deriva do propósito objetivo do conhecimento. A objetividade do conhecimento pretende fazer com que a pluralidade do subjetivo se reduza a uma unidade, a unidade do Real. A técnica tem tanta importância na história humana, e facilita tanto a nossa vida, que é quase impossível dirigir-lhe uma crítica sem angariar antipatia e, não poucas vezes, inimigos. Apesar disso, mesmo se usando uma ficção nós imaginássemos uma história contrafactual na qual Mozart e Beethoven não aprenderam a escrever suas obras, — pois não sabiam usar nenhuma notação musical, embora fossem capazes de criá-las e e executá-las—, nós nos veríamos constrangidos a admitir que a beleza dessas obras se conservaria, ainda que talvez elas nunca tivessem chegado até nós. Essa ficção atesta tanto a utilidade da técnica quanto aquilo que no espírito e em suas manifestações é irredutível a ela.

É claro que, em certo sentido, o propósito desse texto é desidratar o papel da técnica, supradimensionado por uma adesão (irrefletida || dogmática) à ciência, além de criticar a consequente conversão de todas perspectivas à inescapável chave técnica problema/solução (conversão que empobrece a ciência e torna os cientistas meros puzzle-solvers, como dizia Thomas Kuhn). Entretanto, mais importante do que a crítica é a lembrança de que o espírito é a fonte de toda a criação e de que tudo o que nós entendemos como (possível || impossível) não é nada mais do que o resultado da vigência de leis e regras que foram instituídas e que, por isso mesmo, podem ser igualmente destituídas, ainda que não possamos ver um lado de fora (ver o impossível). A adesão à técnica nos congela a um espaço de estabilidade e torna a instabilidade uma tragédia, algo que só tem lugar por meio de eventos externos que, com violência, invadem nossas expectativas e comprometem a tão sonhada e tão bem-quista previsibilidade.

Poincaré, ciência e previsibilidade

Na arte é onde a autonomia, a libertação do peso da imitação, pode ser vista mais claramente como fonte da criação, manifestação do espírito.


Nos comentários de Gilbert Ryle vemos uma imagem da força da regra como perspectiva:

É claro que executar uma operação de forma inteligente não é exatamente a mesma coisa que acompanhar sua execução de forma inteligente. O agente é originário, o espectador está apenas contemplando. Mas as regras que o agente observa e os critérios que ele aplica são as mesmas que regem os aplausos e zombarias do espectador. O comentarista da filosofia de Platão não precisa possuir muita originalidade filosófica, mas se ele não puder, como muitos comentaristas não podem, apreciar a força, o rumo ou o motivo de um argumento filosófico, seus comentários serão inúteis. Se ele pode apreciá-los, então ele sabe como fazer parte do que Platão soube fazer.

Gilbert Ryle, The concept of the mind, 42

A redução da competência a um vocabulário disposicional deixa do lado de fora o espírito e torna todas as suas manifestações meras complexidades que, ao menos em tese, podem ser traduzidas em regras mais precisas (mais complexas); em algoritmos capazes de resolver algo posto em termos de complexas manipulações de dados (portanto, a elementos decidíveis). Wittgenstein usava a pianola como exemplo de determinação, setenta anos depois de sua morte, é incrível constatar que para muita gente é real e está ao nosso alcance a possibilidade de construir inteligências capazes de executar as Variações Goldberg com o mesmo brilho que Glenn Gould. Não há nada que o espírito acrescente, pois todo o espaço do possível é tecnicamente mapeável, não há nada do lado de fora. — Há sempre algo do lado de fora! Mas por ora o que importa é apenas apresentar muito claramente o que pretende a técnica e o que pode o espírito, como uma diferença entre uma pianola idealizada (modelos de inteligência artificial) e Glenn Gould (Claudio Arrau, ou o virtuose do piano de sua preferência).

Espírito e dádiva

Certa feita ouvi o seguinte comentário ao final de uma palestra de Maria Rita Kehl que eu assisti no Youtube: “Ao expor suas ideias Maria Rita faz a gente se sentir mais inteligente”. Não lembro ao certo, foi alguma coisa assim. Desde então essa ideia volta constantemente, quase como o mapa da Hungria que alguém não pudesse tirar da cabeça (felizmente, ela não é a semente de um inferno possível — mas de algo bom). A ideia ficou na minha cabeça não apenas porque era verdadeira — um modo cuidadoso e bastante inteligente de apresentar uma característica marcante do modo de Maria Rita Kehl lidar com outras inteligências —, mas também porque é muito interessante.

Era como se ela pudesse dar sua inteligência. Não lembro o que então me fez pensar que dar inteligência era uma ideia boba. Na certa foi a impressão de que assim se desvalorizava inadvertidamente o papel dos componentes inatos que constituem o sistema cognitivo. A ideia de dar inteligência parece apresentar a inteligência como algo infinitamente plástico, universal e quase imaterial, como se não houvessem determinações biológicas, químicas, físicas, que fixassem limites pra aquilo que pode ser adquirido no ambiente. Não é um oba-oba. Mas essa é uma falsa impressão, dar inteligência não significa que todo mundo é potencialmente inteligente ou que todos partilham o mesmo espectro de inteligência. A inteligência é uma ideia elusiva, porque embora nós a padronizemos — usando, nos casos mais sofisticados, nossa própria inteligência como uma espécie de padrão — ela tem uma característica emergente, pois desestabiliza os próprios padrões. Pra quem pode apreciá-las, claro, pois se abrir a apreciação da inteligência tem um preço e é uma escolha. Desestabilizados os padrões, mudam também os resultados de nossas medições e estamos num novo mundo. Não é tão simples quanto eu apresento, mas o reconhecimento da inteligência (ser capaz de reconhecer seu caráter emergente, isto é, dispensar os padrões) nos leva a ter que aceitar a instabilidade que ela carrega, junto como o fogo de Prometeu.

Toda pretensão de medir exige uma certa regularidade no comportamento do que se mede, de outro modo a medição se torna impossível.

Apenas em casos normais o uso das palavras nos é claramente prescrito; não temos nenhuma dúvida, sabemos o que é preciso dizer neste ou naquele caso. Quanto mais o caso é anormal, tanto mais duvidoso torna-se o que devemos dizer. Se as coisas fossem inteiramente diferentes de como elas efetivamente são — não haveria, por exemplo, expressão característica da dor, do medo, da alegria. Fosse o que é exceção, regra e o que é regra, exceção; ou se ambas se tornassem fenômenos de frequência relativamente semelhante — com isso nossos jogos de linguagem normais perderiam o sentido (Witz). O procedimento de colocar um pedaço de queijo sobre uma balança e determinar o preço conforme uma escala perderia seu sentido se os pedaços com frequência crescessem ou diminuíssem repentinamente, sem causas óbvias.

Wittgenstein, Investigações filosóficas, § 142

A irregularidade do comportamento do que se deseja medir torna impossível que um padrão de medida siga em vigor, pois a irregularidade colapsa a condição de sua função normativa. Diante de novas situações, novos padrões devem ser forjados, novas normas. E daquilo que desestabiliza o uso dos padrões pode ser dito que tem um caráter emergente. A inteligência tem esse caráter emergente.

Tudo isso só pra dizer que não dá pra entender a inteligência pensando apenas em termos estritamente quantitativos, paramétricos e normativos. Não dá pra entender a inteligência com espectros. O caráter desestabilizador da inteligência é um ônus que acena a uma expressão familiar, a ideia de espírito.

O universo simbólico, que é o ambiente da inteligência, não se reduz a zeros ou uns. E é por isso que a palavra espírito recupera a riqueza simbólica dispensada pela pretensão de generalidade dos zeros e uns. No ambiente do espírito podemos retomar a consideração sobre a ideia de dar inteligência sem maiores restrições, porque a dádiva não é estranha ao espírito.

“Are you free and evil or blameless and helplessly enslaved?”
Aproveitam enquanto o Youtube não derruba vídeo, é a terceira temporada de Westworld.

A dádiva é uma atitude diante da inteligência do outro. A internet está cheia de exemplos de pessoas que são capazes de nos dar um pouco da sua inteligência. É claro que é mais didático mostrar isso em relação a temas que são interessantes, mas distantes do âmbito de competência da maior parte de nós, pobres mortais. Porque assim, pelo contraste, fica mais fácil ver o quanto se alarga nosso campo de visão, para usar uma analogia conveniente. Michael Nielsen imagina um exemplo que é uma verdadeira dádiva quando precisa explicar como funciona um perceptron, que é basicamente uma unidade numa rede de modelos de decisão (uma rede neuronal). Ele explica a construção dos modelos de decisão a partir do exemplo da decisão banal de ir ou não a um festival de queijo. Então ele monta o sistema com pesos diferentes atribuídos a três fatores determinantes para decidir se ir ou não ao festival: x1 Vai fazer bom tempo? x2 Seu namorado ou sua namorada vai te acompanhar? x3 Há algum transporte público até o local do festival (você não tem carro)? Um bom exemplo é uma dádiva de inteligência, assim como uma boa explicação.

O output é a decisão ponderada a partir do que foi determinado como peso de cada fator e do valor de cada input, 0 ou 1.

A dádiva torna possível que os outros, se quiserem, adentrem universos que pareciam inacessíveis. Não estou dizendo nada que ninguém não sabia, estou dizendo o óbvio. O difícil não é conceber que os espíritos têm o dom da dádiva e que a inteligência pode ser dada, duro é entender porque então, se nós sabemos disso, nem sempre aceitamos a inteligência que nos é oferecida? Não é simples responder a essa pergunta e eu acho que pra respondê-la de modo satisfatório seria preciso falar da relação entre poder e inteligência. Falar, por exemplo, sobre como o medo de ser idiota pode ter se tornado uma arma política tão importante e sintomática. Mas não quero falar sobre isso agora, então permitam que eu me atenha a uma certa reação quase natural que nós temos diante da inteligência. Um recuo, uma recusa é um reflexo quase instintivo diante da instabilidade que a inteligência carrega. Por isso a recusa é uma (decisão && escolha), se é que realmente podemos chamá-las assim. Há pessoas e situações que nos permitem acreditar no dizer da inteligência, como quem se permite ouvi um canto de sereia, mas quando somos confrontados com ela assim abruptamente, despreparados, recusamos prontamente seus convites. Recusamos a instabilidade que pressentimos.


A inteligência precisa oferecer algo de convidativo, precisa ser sentida como a cegueira que se segue a um forte clarão, para que olvidemos o chiado que emite a instabilidade que lhe acompanha (eu me pergunto se inteligência e instabilidade são duas coisas, ou uma só). Usei o exemplo de Maria Rita Kehl, da rede neuronal, mas há muitos outros. Outro bom caso é o desse camarada falando de Garota de Ipanema (e da ambiguidade da Bossa Nova). É notória sua formação técnica, sua competência no uso dos conceitos, mas, acima de tudo, a organicidade com que o domínio técnico se articula ao seu uso da linguagem natural. Ele está à vontade, pois sua inteligência é como que parte de seu próprio corpo. Isso potencializa enormemente sua capacidade de se comunicar, atrai e amplia inteligência alheia eclipsando o zumbido da instabilidade que a acompanha. Dá vontade de largar tudo e estudar música.

Um animal de outro tipo

Uma nova espécie, o chimpanzé elefante.

Meu corpo me responde, como uma máquina. Eu não tenho muita energia, mas tenho um corpo saudável e responsive. Se eu voltasse a malhar em pouco tempo estaria em forma. Tanto quanto pode estar alguém que pesa ao redor de 100 Kg, bebe e fuma (ainda que moderadamente) por mais de 20 anos. Mas é aquela coisa: tem gente que não bebe e está morrendo. E porque meu corpo me responde e tenho saúde eu sinto vergonha de me queixar dos meus problemas e dificuldades mentais, das dificuldades que enfrenta meu espírito. São tantas as pessoas que, além de ter as dificuldades do espírito, tem também dificuldades com o corpo. Sem falar do reflexo de um no outro (eu não creio em determinação unívoca de nenhum tipo), do corpo na alma, da alma no corpo. A gente nunca valoriza apropriadamente (com justiça) o que tem com constância. E eu sinto isso, que não valorizo tanto meu corpo e minha saúde porque os tenho constantemente, como variáveis com as que não preciso me preocupar. Não se valoriza o que não se nota, o que funciona bem não notamos a menos que a gente dirija a nossa atenção a isso deliberadamente. A saúde quando falta nós logo sentimos, sentimos sua ausência. Isso é ainda mais fácil de notar numa pandemia.

Clique em CC, dentro do vídeo, para ativar as legendas. Wim Wenders representa (ou apresenta?) anjos que desejam ter um corpo e serem finitos, mortais. Eu não tenho a relação com o meu corpo que teria um anjo, pois os anjos invejam nosso corpo como quem quer o que não pode ter. Um anjo quer sentir o cheiro do café, o gosto do cigarro. Um anjo sabe dar valor a um bom cigarro. Asas do Desejo (Der Himmel über Berlin, 1987)

Assim, eu escrevo pra me lembrar do meu corpo. Pra reconhecer minha própria força e vitalidade apesar do esmagamento a que meu espírito está constantemente submetido. Durante um bom tempo eu frequentei (sempre preguiçosamente) a academia, conheço o fascínio do corpo e da força física. Não sou dessas pessoas com histórico de atleta, mas conheço o que há de aditivo e viciante em correr. O corpo é um poder, todos sabem. Infelizmente, minhas convicções biriteiras limitavam a expansão do meu interesse esportivo até que finalmente a conveniência do dia a dia, aliada à preguiça, escantearam meu interesse pelas atividades físicas numa gaveta, em algum lugar desconhecido. Às vezes flerto com a ideia de voltar à natação, mas a verdade é que como animal, ainda que forte e saudável, eu sou uma mosca (ou uma formiga) perto de qualquer chimpanzé.

A alopecia de um chimpanzé revela seus músculos e sua força.

Na sociedade, a prevalência da mente foi setorizando o lugar do corpo, limitando-o ao esporte. O corpo não tem nenhum lugar central nessa sociedade — senão como suporte, como ghost ou shell, a depender de como se olhe, que em breve vamos substituir por algo mais apropriado à nossa aspiração à imortalidade —, porque nela tudo gira em torno do nosso espírito, ou como gostam de chamar os que rejeitam o animismo, da inteligência. Claro que as expressões não são sinônimas, elas têm apenas uma relação de família, mas essa familiaridade serve ao meu propósito. Naturalmente, a prevalência da mente tem impacto sobre o corpo. É o que eu gosto na Tradeoff Hypothesis, uma hipótese que eu já mencionei aqui uma vez. É como se nós tivéssemos trocado a extraordinária memória de curto prazo dos chimpanzés pela expansão da habilidade para usar nossa memória de longo prazo. Isso é o que nos permite criar, compor a partir das memórias. Criar ficções, sentido, fantasias, teorias, hipóteses… beleza!

Não nós somos apenas animais que figuram fatos, em certo sentido os chimpanzés figuram fatos melhor que nós. Nosso forte é criar, é usar o oceânico manancial de nossas memórias para criar sentido do nada. O reservatório da memória nunca é nada — é muita coisa, pra ser preciso —, mas as possibilidades da criação não são as mesmas da representação. Embora o mundo da ciência, o nosso mundo, e os próprios cientistas ainda vivam no sonho do conhecimento como espelho da natureza, as possibilidades da criação são muito mais amplas e audaciosas, porque são a possibilidade da beleza. Somos animais artísticos, a beleza não é um fato, mas fascina como a luz do sol deve ter fascinado Ícaro. Fascina não com universalidade que gostaríamos de emprestar ao nosso conhecimento, mas com uma força desconhecida que parece afetar a quase tudo que é capaz de sentir.

Não é o quantitativo o que nos dá o que temos de mais sublime, e creio que essa ênfase sobre o papel da arte marca certa perspectiva importante do pensamento de Wittgenstein, é uma das suas lições esquecidas — como sublinha seu biógrafo, Ray Monk.

Nos nossos dias as pessoas pensam que os cientistas existem para instruí-las, poetas, músicos, etc., para entretê-las. A ideia de que estes tenham alguma coisa que lhes ensinar, isso não lhes passa pela cabeça.

Wittgenstein, cultura e valor

E é nesse sentido que vai também as ideias de Richard Rorty (creio muito pretensiosamente) sobre a cultura literária, em seu precioso artigo: O declínio da verdade redentora e a ascensão da cultura literária, um artigo que eu vou passar a vida tentando terminar de traduzir:

A questão “você acredita que a verdade existe?” é uma abreviação para algo como “você acredita que há um fim natural da investigação científica (inquiry), um modo como as coisas realmente são, e que entender o modo como as coisas são vai nos dizer o que fazer de nós mesmos?”.

Aqueles que, como eu, são acusados de frivolidade posmodernista não pensam que há um tal fim. Nós acreditamos que a investigação é apenas outro nome para a resolução de problemas e não podemos imaginar chegando a um fim a investigação sobre como seres humanos devem viver, sobre o que nós devemos fazer com nós mesmo. Pois soluções para velhos problemas produzirão novos problemas e assim eternamente. Assim como para o indivíduo, também para a espécie e a sociedade: cada estágio de maturação superará antigos dilemas para em seguida criar novos.

richard Rorty, The Decline Of Redemptive Truth And The Rise Of A Literary Culture

É isso que nós somos, animais artísticos, capazes de cantar e contar histórias, inventar mundos, por isso a arte também deve nos ensinar. Precisamos dela mais do que nunca para imaginar coisas muito diferentes. Bem, esse só pode ser o começo de uma longa conversa, porque disso tudo sai muita coisa, mas essa conversa fica pra outro dia.


Depois de escrever o texto, por coincidência topei com essa entrevista do Yamandu Costa. Nunca tinha ouvido o Yamandu falando sério! Nas entrevistas que eu vi ele sempre estava brincando, mesmo que falasse sério, com a música e os amigos. Essa entrevista aqui tá bem diferente, uma lindeza! Ele falando da morte, de arte, de amizade, tá de quebrar o vidro dos olhos.

Quanto as Big Tech sabem sobre nós?

Katie Bouman e seu cluster de discos rígidos

Eu poderia aplicar um algoritmo de análise de sentimentos no meu perfil do Twitter. Uma análise simples, binária, positivo e negativo, só pra ter uma ideia do tipo de sentimentos que predomina nos meus tweets (eu sei qual!). Há milhões de tutoriais — pra todos os níveis — sobre como fazer isso, usando o Python, por exemplo. Você pula a matemática (se quiser), vai direto pro código, segue os passos e pronto, está apto a aplicar o algoritmo sobre seus próprios dados.

Algumas empresas avaliam em tempo real o impacto de suas marcas nas redes sociais, o efeito da exposição de figuras públicas associadas a ela. Avaliam se há um bom fluxo de interações, sentimentos positivos, se a figura vale o investimento. Paolla Oliveira certamente tem contrato com a Reebok, ela sempre fala da marca. Quando estava aprendendo sobre Data science Rafael Nadal era o exemplo, não lembro qual era a marca associada. A gente podia pensar em Neymar, Ronaldo and so on and so on (sic). Pra mim, não deixa de parecer brutal que possamos fazer avaliações de tendências assim, usando essas ferramentas, esses métodos, contando com tantos dados e em tempo real. Nem sempre as redes sociais tem representatividade sobre uma população, depende de que população nós estamos falando. Mas em qualquer caso eles tem uma boa amostra de nós, do quem nós somos. Nos países em que a internet chega a mais gente, o alcance é colossal. O que elas podem saber de nós avaliando os nossos dados? E qual é o limite?

As pessoas que trabalham nessas empresas são absurdamente capazes (não apenas qualificadas, certificados e titulações em computação podem não significar nada) — o melhor que o dinheiro pode comprar e o dinheiro pode comprar muito. São jovens que povoam as séries de tecnologia como Mr Robot e Halt and Catch Fire — um pouco menos rebeldes, na verdade, mais ajustados ao mundo das aparências. Então, em termos de complexificação, o céu é o limite. Pra entender o abismo que nos separa desse mundo tenhamos em conta algo: no mercado das tecnologias de ponta há circunstâncias em que poucas pessoas no mundo podem avaliar se uma ideia é uma aposta, um blefe ou algo sólido — por falta de qualificação técnica pra entender a novidade. Quanto nós sabemos sobre computação quântica pra avaliar se a vale a pena investir numa briga em que já estão a Google e a IBM? Quantas pessoas você acha que sabem sobre o tema de modo a ser capaz de entender o impacto dessa tecnologia? Isso dá uma ideia do nível de complexidade em que circulam as decisões sobre o que fazer com os nossos dados, ou sobre que tipo de software de análise aplicar, que algoritmos utilizar. Nesse campo, o sujeito pode simplesmente desenvolver seu próprio algoritmo, todo o entorno de trabalho (hardware e software pode ser desenvolvido dentro da empresa). A Google criou o TPU, um hardware desenhado para trabalhar com tensores.

Mas o que elas poderiam saber de nós? Bem, não sei muito sobre o que elas já sabem, mas o potencial é imenso.

Artigo da Slate sobre um experimento do Facebook

O que você faria se tivesse uma quantidade colossal de informações sobre quase todo o mundo e ela fosse sua, digo, sua propriedade e você não precisasse prestar contas a ninguém sobre o que faz com ela? Pois é, o Facebook faz a mesma coisa. O céu é o limite, é o que eu digo. A resposta mais didática e bem apresentada que encontrei sobre o que elas podem fazer com o que sabem sobre nós está no documentário Terms and Conditions May Apply.

https://www.youtube.com/watch?v=LIiLoT4Po-c
O documentário está inteiro aqui, mas sem legendas.

E como é que se acumula tanta informação sobre nós? Por exemplo, eu tenho pouco mais de 2 Gb de dados no meu email, que é recente, comecei a usá-lo em 2011. Meu antigo correio deve ser de quando o Gmail foi criado, em 2004 — deve ter mais informações e ocupar mais espaço. São muitos dados! Agora imagine uma pessoa que tem o Gmail desde o começo e que, além disso, usa sua conta Google no Android (no seu smartphone) e no Google Chrome, no computador. Isto é, alguém que dá o login no Chrome do seu computador para que o navegador sincronize suas informações entre todos os dispositivos conectados à conta do Google. Caramba! Geolocalização, históricos de pesquisa em todos os dispositivos, emails, chamadas, tudo centralizado nos data centers do Google — eles tem tudo e podem cruzar todas as informações. Imagine o que se pode saber de uma pessoa uma vez que saibamos por onde ela anda, com quem ela conversa e sobre o quê, que buscas faz no Google, que páginas acessa. Se você acha que elas não nos gravam, com que você acha que são treinados os algoritmos de reconhecimento de voz, com áudio de filmes da Disney? As empresas não apenas podem saber sobre nós, como indivíduos, mais do que nós mesmos sabemos, elas também podem saber sobre nós como coletivo, como massa (ou manada). Podem prever nossa conduta, simular nosso comportamento em determinadas circunstâncias. Eu já escrevi sobre a Cambridge Analytica por aqui. O caso da Cambridge Analytica é paradigmático sobre como podemos ser instrumentalizados por meio das informações coletadas pelas Big Tech, a ponto de nos levar a perguntar se somos mesmo livres, se ainda tem sentido falar em liberdade.

As empresas de tecnologia definem o padrão tecnológico, determinam a regra e dão a medida do que corresponde a um avanço tecnológico em suas áreas. Por isso toda a briga em torno da supramacia quântica. Isso significa que nenhum governo, nenhuma Universidade ou centro de pesquisa tem pleno entendimento do que elas podem fazer e do que elas efetivamente fazem. Isso dificulta qualquer tentativa de controle e compreensão. Dificulta qualquer regulação institucional, pois nada do que as empresas fazem é público e elas não são obrigadas a declarar o que fazem. E ainda que fossem, quem garantiria que cumprem o que declaram? Pelo que eu vejo não há nenhum mecanismo de controle que seja possível. Mesmo que auditores super-qualificados tivessem acesso local a toda infraestrutura das empresas e permissão completa para acessar a base de dados sobre pesquisas em desenvolvimento, ainda assim não seria suficiente. Nada mais fácil do que esconder alguma coisa usando computadores. Descobriríamos os abusos muito depois de nos tornarmos vítimas.

A quantidade de dados sobre apenas um usuário é gigantesca, mas o conjunto de dados de todos os usuários é inconcebivelmente grande. Quando se lida com muitos dados chega um ponto em que é preciso desenvolver as próprias ferramentas para processá-los. O Facebook deu início ao desenvolvimento do entorno Cassandra (agora capitaneado pela Apache), uma base de dados não relacional que lida com informações ao largo de uma infinidade de servidores. Trata-se de permitir que se processe esses dados de uma vez, como se todos estivessem num mesmo computador. Quem tem um cliente de email como o Outlook ou o Thunderbird sabe que, se guarda muitos emails — por exemplo, 10 ou 15 Gb de mensagens —, a aplicação começa a apresentar instabilidade porque carrega com muita informação de uma só vez. A base de dados facilmente se corrompe e estraga a semana do usuário, por isso em políticas de grupo corporativas costuma haver restrições sobre o número de mensagens disponíveis. Agora imagine o que significa processar não Gigabytes, mas Terabytes, Petabytes de dados.

Para processar dados em grande escala (Big Data) é preciso transformar a imensa rede de servidores nos quais os dados estão espalhados numa só máquina. Bem, como se fosse. Daí a necessidade de softwares como o Hadoop, que não faz mais do que criar um File System a partir dessa rede, que torna possível tratá-la como se fosse um único disco rígido. Uma vez configurado o sistema de arquivos, outras aplicações, como o Spark, podem processar os dados. É preciso então configurar essa rede de processadores como se fosse apenas um, e é isso que faz o Spark (entre outros). Portanto, são duas etapas, primeiro é preciso criar as condições para tratar o cluster de computadores como se fosse apenas um único disco rígido, depois é preciso criar as condições para tratar o cluster de computadores como se fosse apenas um único processador. Essas duas etapas representam uma parte significativa das tecnologias que envolvem o que se chama de Big Data, elas dão lugar a uma capacidade computacional sem precedentes. Já não são necessários hardwares caros, mainframes disponíveis apenas a grandes empresas ricas o bastante para pagar a fortuna que eles custam. Agora, qualquer empresa pode montar um cluster com significativa capacidade computacional colocando em série máquinas com configurações apenas razoáveis. É como se pudesse somar a capacidade computacional das máquinas, isso torna incrivelmente fácil e barato operar e escalar esses clusters. Apesar disso, esse é o reino onde a Amazon AWS domina, porque ela vende essa tecnologia nas nuvens, sem precisar montar a infraestrutura, para qualquer empresa ou pessoa que pagar pra utilizar a capacidade computacional de Big Data.

O processamento da primeira imagem de um buraco negro é um bom exemplo disso que se torna possível a partir do uso dessas tecnologias. Katie Bouman, a pesquisadora que aparece acima, na foto em destaque no post, está ao lado de um cluster de discos rígidos com mais de um petabytes de dados sobre o buraco negro. Nada disso seria possível se não existissem as tecnologias que permitem distribuir (paralelamente) o processamento das mesmas tarefas numa rede de computadores.

1 Petabyte equivale a 1000 discos rígidos de 1 Gygabyte

A medida que mais e mais dispositivos coletam informações sobre nós, as regularidades do nosso comportamento passam a estar disponíveis para serem determinadas por máquinas cada vez mais potentes. Máquinas que são capazes de identificar regularidades com precisão inconcebível por nossos limitados recursos biológicos — elas que são capazes de aprender a distinguir entre diferentes tipos de melanona, apesar da imensa pluralidade das amostras. A internet das coisas é uma perspectiva que tem nos feito sonhar com cidades inteligentes, prontas a responder aos nossos anseios antes mesmo que eles se manifestem. Será que de fato esse oceano de informação sobre nós, circulando nas mãos de atores tão poderosos, ajudará a converter a sociedade naquilo que desejamos?

Dado que também somos máquinas, condicionadas por variáveis determinísticas, a única coisa concreta que podemos divisar nesse mar de devaneios é a possibilidade de sermos manipulados como marionetes por empresas munidas de informações que nem mesmo suspeitamos. Todo resto é publicidade! Mas cada um acredita no que quiser.

Cultura Pop, Humor e Inteligência

Há duas coisas que eu gosto em Zizek: o humor sempre presente nos seus textos e falas, e a sua atitude em relação à cultura pop. Meus textos não tem nem um grão de humor, são completamente planos nesse quesito. Boa parte dos comentaristas políticos de quem eu gosto incorpora o humor no que escreve e isso torna a atmosfera dos seus textos menos rarefeita — eu tenho em mente: Celso Rocha de Barros, José Roberto de Toledo, Conrado Hübner Mendes e em certa medida até Marcos Nobre. Aceitar a cultura pop — essa categoria tão abrangente e vaga — é outro elemento que ajuda trazer oxigênio à atmosfera dos pensamentos.

A chave pra entender a oxigenação da atmosfera promovida pela cultura pop está na flexibilização dos padrões de inteligência e em suas consequências discursivas. Usemos uma meia verdade para ilustrar como se dá essa flexibilização. Suponhamos que em relação ao entendimento e à capacidade de julgar há duas posições particularmente importantes e antagônicas. Duas posições distintas a respeito da importância do exemplo e da abstração. Kant acreditava que o exemplo era uma muleta e os que fossem capazes disso deveriam prescindir do seu uso:

Pois, no tocante ao rigor e precisão dos conhecimentos do entendimento, os exemplos são, geralmente, mais prejudiciais que vantajosos, porque é raro cumprirem adequadamente a condição da regra (como casus in terminis) e enfraquecem, além disso, muitas vezes, o esforço do entendimento para apreender (…) Assim, os exemplos são as muletas da faculdade de julgar de que nunca poderá prescindir quem careça desse dom natural.

Immanuel Kant, Crítica da Razão pura, B173-4

Embora essa posição pareça esnobe e arrogante, ela está conforme às exigências próprias ao pensamento de Kant e à sua inclinação ao que é puro, ao que está livre das opacidade e da incerteza da experiência e dos fatos. No Tractatus Logico-Philosophicus, Ludwig Wittgenstein apresentou um pensamento que para muitos tem o sabor de um pensamento kantiano:

O pensamento é cercado por uma bruma. — Sua essência, a lógica, apresenta uma ordem: a saber, a ordem a priori do mundo; isto é, a ordem das possibilidades, que o mundo e o pensamento tem em comum. Mas essa ordem, parece, deve ser extremamente simples. Ela antecede toda experiência e deve atravessar toda a experiência; nenhuma opacidade e incerteza empírica deve aderir a essa ordem. — Ela deve ser o mais puro cristal. Mas esse cristal não parece uma abstração, mas algo concreto, na verdade como o mais concreto, como se fosse há coisa mais dura que há (Tractatus Logico-Philosophicus 5.5563).

Wittgenstein, Investigações filosóficas, 97

Esse é o contexto em que a pureza tem lugar e onde convém afastar-se da opacidade das coisas empíricas, abstrair-se de suas impurezas e distorções. Acontece que direta ou indiretamente esse contexto marca uma posição sobre um modelo de inteligência. Nessa posição está privilegiado o modelo de inteligência ligado à abstração, ao esvaziamento ou ao descarnamento (descarnação? não sei como dizer) da experiência em busca de regras de determinação do sentido cada vez mais gerais. Pra essa perspectiva, o exemplo só pode ser uma muleta, porque diz mais do que o necessário. Diz o contingente, diz o irrelevante. E ao dizer tanto introduz a vagueza, a pluralidade de sentidos, tudo aquilo que deve ser evitado para que a linguagem possa dizer o sentido claramente, de modo determinado.

(Minha leitura do parágrafo de Kant citado acima é enviesada, o próprio recorte é enviesado — leiam todo o contexto. Por isso o que eu disse é uma meia verdade, Kant não difere de Wittgenstein sobre o papel dos exemplos [dos casos], a diferença entre eles reside no fato de que a lei e a regra para a pragmática de Wittgenstein são determinadas pela constância da prática, enquanto que o problema da determinação [do seguir a regra] não estava nem mesmo posto no marco determinista do pensamento de Kant. Para Kant, a estruturação começa pelo mais geral [o vetor de determinação é a generalidade] e não há interesse lógico em uma genealogia como a de Wittgenstein ou a de Foucault.)

Quando o pensamento de Wittgenstein começa a mudar, muda também a sua relação com o caso, com o exemplo. A ênfase sobre o papel da ação — que o leva a valorizar tanto a etnologia — tira o exemplo da lata de lixo e em certo sentido o coloca no próprio centro da atividade de esclarecimento conceitual que é a filosofia. Isso abre espaço a um modo completamente diferente de pensar a inteligência. Um modo mais plural, mais generoso no seu olhar. Nosso olhar continua sendo arrogante, porque não conseguimos conceber inteligências dignas do nosso apreço se não possuirem, por exemplo, conceitos aritméticos. Mas o espaço está aberto para que o cinema — como desde sempre a literatura — possa nos instruir sobre o mundo fora das nossas bolhas. Assim, podemos forjar nós mesmos as medidas e os padrões de inteligência que usaremos de agora em diante — ao invés de nos fiar nesse elogio à abstração. Sobre esse mesmo tema um exemplo do cinema pode nos ajudar.

Uma boa imitação da inteligência humana? (Não há legendas porque o vídeo não é meu, peguei no Youtube, essa é uma cena clássica de Blade Runner.)

A flexibilização dos padrões de inteligência estimulada pela pragmática se dá quase ao mesmo tempo que a busca de Alan Turing por um modo de distinguir a inteligência humana da inteligência artificial. O que vale pra seres humanos e androides, vale também na relação dos humanos entre si e entre os humanos e os animais. Digo, podemos também nos perguntar pela expressão de diferentes formas de inteligência. Vamos deixar de lado a inteligência dos animais e a dos androides e ficar somente com os diferentes paradigmas de inteligência entre humanos. Depois de ter dado essa volta, fica fácil (ou menos difícil) ver porque a cultura pop pode trazer oxigênio à atmosfera do pensamento. Porque o exemplo, a concretude de casos particulares próximos ao maior número de pessoas, reduz o peso da abstração como critério de inteligência e permite que outras formas de inteligência se expressem ou possam ser vistas por nossos olhares, agora menos engessados. O pensamento precisa tanto da abstração como da imaginação e nem sempre a capacidade de abstrair e de imaginar coincidem. Podendo circular entre diversas expressões de inteligência, o pensamento — já como coisa sem dono — está livre para se manifestar nos mais variados cantos da cultura. (Virar um meme?)

Essa valorização da multiplicidade da inteligência produz um efeito cascata cujo alcance não podemos esgotar. Da perspectiva do indivíduo ela abre espaço à criação, à ruptura de paradigmas, na medida em que abranda a força normativa sedimentada em modos estáveis de avaliar a inteligência. Da perspectiva social, ela recoloca os atos inteligentes em contextos, isto é, em contextos históricos, explicita valores, e pouco a pouco a flexibilização pode construir a atmosfera para pensamentos novos, dirigidos por novos eixos. Como enxergar o mundo sob novas lentes, apoiado em novos eixos? Como dar espaço a novas perspectivas sem reavaliar também a própria medida de inteligência, sem flexibilizar seus próprios padrões? Como resistir à tendência à estabilidade encontrando uma boa justificação para não mudar?

Nossa obsessão por medidas é tão grande que, quando pensamos na Teoria da Relatividade como expressão inconteste da inteligência, e queremos identificar inteligências igualmente grandiosas fora desse marco teórico, tendemos a recorrer a medidas institucionalmente estabelecidas — e dizemos, por exemplo, que Shakespeare é um gênio fora das ciências. No entanto, o problema persiste porque a generalização dos padrões de inteligência tende a nos tornar meros aplicadores de normas, pessoas inclinadas a usar os critérios consensualmente reconhecidos, ao invés de criar nossas próprias medidas. A tendência a confiar nos quadros de organização de valor (quadros normativos) tem o mesmo pendor a engessar nossa capacidade de enxergar a inteligência que o apego à abstração. Isso sem falar no que pode haver de meramente performático na expressão da inteligência, como, por exemplo, a erudição. Não há melhor máscara para a estupidez.

Entre o caso e a regra estivemos sempre a buscar as regras e a leis mais gerais. Precisamos de outro olhar, um olhar que saiba também privilegiar o concreto, que saiba ver no concreto o manancial de novas generalidades, de novos abstratos.

O humor é uma das expressões mais interessantes da inteligência e, no contexto dessa discussão, a questão que se coloca pra mim uma e outra vez é: qual é a expressão máxima da inteligência no humor? Como identificá-la em sua particularidade, em sua singularidade? É uma obra? O humor é um trabalho não poucas vezes fragmentário, embora constante. Mas só podemos constatar sua grandiosidade contemplando uma obra inteira, uma seleção dos seus melhores momentos? Nenhum particular a revela? É a partir dos casos que alguém aprende a enxergar a regra, são os exemplos e as amostras (a constância delas) que determinam as dimensões gerais que depois vemos claramente nas leis e padrões que descrevem uma regularidade. Quando nos damos conta disso, descobrimos que há milhões de domínios recônditos onde a inteligência se manifesta sem testemunhas (e não apenas dentro da cultura popular). Embora minha tendência à didática do radicalismo me dirija à inteligência dos animais, das aranhas, por exemplo, o humor, essa marca tão própria ao humano, é um bom ponto de partida para o exercício do olhar.

Laerte e sua obra monumental
Linha do trem, recentemente redescoberto.
Molg H., um gênio incompreendido.

Nunca é demais lembrar que não se trata de abolir distinções de valor, como elas fossem inúteis ou inadequadas tal como são. Não podemos viver sem valor, mas podemos nos tornar melhores juízes, juízes mais criteriosos, autônomos, generosos, há muito o que melhorar e sem tornar flexíveis nossos padrões é quase impossível ver o que está fora das nossas lentes.