Espírito e dádiva

Certa feita ouvi o seguinte comentário ao final de uma palestra de Maria Rita Kehl que eu assisti no Youtube: “Ao expor suas ideias Maria Rita faz a gente se sentir mais inteligente”. Não lembro ao certo, foi alguma coisa assim. Desde então essa ideia volta constantemente, quase como o mapa da Hungria que alguém não pudesse tirar da cabeça (felizmente, ela não é a semente de um inferno possível — mas de algo bom). A ideia ficou na minha cabeça não apenas porque era verdadeira — um modo cuidadoso e bastante inteligente de apresentar uma característica marcante do modo de Maria Rita Kehl lidar com outras inteligências —, mas também porque é muito interessante.

Era como se ela pudesse dar sua inteligência. Não lembro o que então me fez pensar que dar inteligência era uma ideia boba. Na certa foi a impressão de que assim se desvalorizava inadvertidamente o papel dos componentes inatos que constituem o sistema cognitivo. A ideia de dar inteligência parece apresentar a inteligência como algo infinitamente plástico, universal e quase imaterial, como se não houvessem determinações biológicas, químicas, físicas, que fixassem limites pra aquilo que pode ser adquirido no ambiente. Não é um oba-oba. Mas essa é uma falsa impressão, dar inteligência não significa que todo mundo é potencialmente inteligente ou que todos partilham o mesmo espectro de inteligência. A inteligência é uma ideia elusiva, porque embora nós a padronizemos — usando, nos casos mais sofisticados, nossa própria inteligência como uma espécie de padrão — ela tem uma característica emergente, pois desestabiliza os próprios padrões. Pra quem pode apreciá-las, claro, pois se abrir a apreciação da inteligência tem um preço e é uma escolha. Desestabilizados os padrões, mudam também os resultados de nossas medições e estamos num novo mundo. Não é tão simples quanto eu apresento, mas o reconhecimento da inteligência (ser capaz de reconhecer seu caráter emergente, isto é, dispensar os padrões) nos leva a ter que aceitar a instabilidade que ela carrega, junto como o fogo de Prometeu.

Toda pretensão de medir exige uma certa regularidade no comportamento do que se mede, de outro modo a medição se torna impossível.

Apenas em casos normais o uso das palavras nos é claramente prescrito; não temos nenhuma dúvida, sabemos o que é preciso dizer neste ou naquele caso. Quanto mais o caso é anormal, tanto mais duvidoso torna-se o que devemos dizer. Se as coisas fossem inteiramente diferentes de como elas efetivamente são — não haveria, por exemplo, expressão característica da dor, do medo, da alegria. Fosse o que é exceção, regra e o que é regra, exceção; ou se ambas se tornassem fenômenos de frequência relativamente semelhante — com isso nossos jogos de linguagem normais perderiam o sentido (Witz). O procedimento de colocar um pedaço de queijo sobre uma balança e determinar o preço conforme uma escala perderia seu sentido se os pedaços com frequência crescessem ou diminuíssem repentinamente, sem causas óbvias.

Wittgenstein, Investigações filosóficas, § 142

A irregularidade do comportamento do que se deseja medir torna impossível que um padrão de medida siga em vigor, pois a irregularidade colapsa a condição de sua função normativa. Diante de novas situações, novos padrões devem ser forjados, novas normas. E daquilo que desestabiliza o uso dos padrões pode ser dito que tem um caráter emergente. A inteligência tem esse caráter emergente.

Tudo isso só pra dizer que não dá pra entender a inteligência pensando apenas em termos estritamente quantitativos, paramétricos e normativos. Não dá pra entender a inteligência com espectros. O caráter desestabilizador da inteligência é um ônus que acena a uma expressão familiar, a ideia de espírito.

O universo simbólico, que é o ambiente da inteligência, não se reduz a zeros ou uns. E é por isso que a palavra espírito recupera a riqueza simbólica dispensada pela pretensão de generalidade dos zeros e uns. No ambiente do espírito podemos retomar a consideração sobre a ideia de dar inteligência sem maiores restrições, porque a dádiva não é estranha ao espírito.

“Are you free and evil or blameless and helplessly enslaved?”
Aproveitam enquanto o Youtube não derruba vídeo, é a terceira temporada de Westworld.

A dádiva é uma atitude diante da inteligência do outro. A internet está cheia de exemplos de pessoas que são capazes de nos dar um pouco da sua inteligência. É claro que é mais didático mostrar isso em relação a temas que são interessantes, mas distantes do âmbito de competência da maior parte de nós, pobres mortais. Porque assim, pelo contraste, fica mais fácil ver o quanto se alarga nosso campo de visão, para usar uma analogia conveniente. Michael Nielsen imagina um exemplo que é uma verdadeira dádiva quando precisa explicar como funciona um perceptron, que é basicamente uma unidade numa rede de modelos de decisão (uma rede neuronal). Ele explica a construção dos modelos de decisão a partir do exemplo da decisão banal de ir ou não a um festival de queijo. Então ele monta o sistema com pesos diferentes atribuídos a três fatores determinantes para decidir se ir ou não ao festival: x1 Vai fazer bom tempo? x2 Seu namorado ou sua namorada vai te acompanhar? x3 Há algum transporte público até o local do festival (você não tem carro)? Um bom exemplo é uma dádiva de inteligência, assim como uma boa explicação.

O output é a decisão ponderada a partir do que foi determinado como peso de cada fator e do valor de cada input, 0 ou 1.

A dádiva torna possível que os outros, se quiserem, adentrem universos que pareciam inacessíveis. Não estou dizendo nada que ninguém não sabia, estou dizendo o óbvio. O difícil não é conceber que os espíritos têm o dom da dádiva e que a inteligência pode ser dada, duro é entender porque então, se nós sabemos disso, nem sempre aceitamos a inteligência que nos é oferecida? Não é simples responder a essa pergunta e eu acho que pra respondê-la de modo satisfatório seria preciso falar da relação entre poder e inteligência. Falar, por exemplo, sobre como o medo de ser idiota pode ter se tornado uma arma política tão importante e sintomática. Mas não quero falar sobre isso agora, então permitam que eu me atenha a uma certa reação quase natural que nós temos diante da inteligência. Um recuo, uma recusa é um reflexo quase instintivo diante da instabilidade que a inteligência carrega. Por isso a recusa é uma (decisão && escolha), se é que realmente podemos chamá-las assim. Há pessoas e situações que nos permitem acreditar no dizer da inteligência, como quem se permite ouvi um canto de sereia, mas quando somos confrontados com ela assim abruptamente, despreparados, recusamos prontamente seus convites. Recusamos a instabilidade que pressentimos.


A inteligência precisa oferecer algo de convidativo, precisa ser sentida como a cegueira que se segue a um forte clarão, para que olvidemos o chiado que emite a instabilidade que lhe acompanha (eu me pergunto se inteligência e instabilidade são duas coisas, ou uma só). Usei o exemplo de Maria Rita Kehl, da rede neuronal, mas há muitos outros. Outro bom caso é o desse camarada falando de Garota de Ipanema (e da ambiguidade da Bossa Nova). É notória sua formação técnica, sua competência no uso dos conceitos, mas, acima de tudo, a organicidade com que o domínio técnico se articula ao seu uso da linguagem natural. Ele está à vontade, pois sua inteligência é como que parte de seu próprio corpo. Isso potencializa enormemente sua capacidade de se comunicar, atrai e amplia inteligência alheia eclipsando o zumbido da instabilidade que a acompanha. Dá vontade de largar tudo e estudar música.

Quanto as Big Tech sabem sobre nós?

Katie Bouman e seu cluster de discos rígidos

Eu poderia aplicar um algoritmo de análise de sentimentos no meu perfil do Twitter. Uma análise simples, binária, positivo e negativo, só pra ter uma ideia do tipo de sentimentos que predomina nos meus tweets (eu sei qual!). Há milhões de tutoriais — pra todos os níveis — sobre como fazer isso, usando o Python, por exemplo. Você pula a matemática (se quiser), vai direto pro código, segue os passos e pronto, está apto a aplicar o algoritmo sobre seus próprios dados.

Algumas empresas avaliam em tempo real o impacto de suas marcas nas redes sociais, o efeito da exposição de figuras públicas associadas a ela. Avaliam se há um bom fluxo de interações, sentimentos positivos, se a figura vale o investimento. Paolla Oliveira certamente tem contrato com a Reebok, ela sempre fala da marca. Quando estava aprendendo sobre Data science Rafael Nadal era o exemplo, não lembro qual era a marca associada. A gente podia pensar em Neymar, Ronaldo and so on and so on (sic). Pra mim, não deixa de parecer brutal que possamos fazer avaliações de tendências assim, usando essas ferramentas, esses métodos, contando com tantos dados e em tempo real. Nem sempre as redes sociais tem representatividade sobre uma população, depende de que população nós estamos falando. Mas em qualquer caso eles tem uma boa amostra de nós, do quem nós somos. Nos países em que a internet chega a mais gente, o alcance é colossal. O que elas podem saber de nós avaliando os nossos dados? E qual é o limite?

As pessoas que trabalham nessas empresas são absurdamente capazes (não apenas qualificadas, certificados e titulações em computação podem não significar nada) — o melhor que o dinheiro pode comprar e o dinheiro pode comprar muito. São jovens que povoam as séries de tecnologia como Mr Robot e Halt and Catch Fire — um pouco menos rebeldes, na verdade, mais ajustados ao mundo das aparências. Então, em termos de complexificação, o céu é o limite. Pra entender o abismo que nos separa desse mundo tenhamos em conta algo: no mercado das tecnologias de ponta há circunstâncias em que poucas pessoas no mundo podem avaliar se uma ideia é uma aposta, um blefe ou algo sólido — por falta de qualificação técnica pra entender a novidade. Quanto nós sabemos sobre computação quântica pra avaliar se a vale a pena investir numa briga em que já estão a Google e a IBM? Quantas pessoas você acha que sabem sobre o tema de modo a ser capaz de entender o impacto dessa tecnologia? Isso dá uma ideia do nível de complexidade em que circulam as decisões sobre o que fazer com os nossos dados, ou sobre que tipo de software de análise aplicar, que algoritmos utilizar. Nesse campo, o sujeito pode simplesmente desenvolver seu próprio algoritmo, todo o entorno de trabalho (hardware e software pode ser desenvolvido dentro da empresa). A Google criou o TPU, um hardware desenhado para trabalhar com tensores.

Mas o que elas poderiam saber de nós? Bem, não sei muito sobre o que elas já sabem, mas o potencial é imenso.

Artigo da Slate sobre um experimento do Facebook

O que você faria se tivesse uma quantidade colossal de informações sobre quase todo o mundo e ela fosse sua, digo, sua propriedade e você não precisasse prestar contas a ninguém sobre o que faz com ela? Pois é, o Facebook faz a mesma coisa. O céu é o limite, é o que eu digo. A resposta mais didática e bem apresentada que encontrei sobre o que elas podem fazer com o que sabem sobre nós está no documentário Terms and Conditions May Apply.

https://www.youtube.com/watch?v=LIiLoT4Po-c
O documentário está inteiro aqui, mas sem legendas.

E como é que se acumula tanta informação sobre nós? Por exemplo, eu tenho pouco mais de 2 Gb de dados no meu email, que é recente, comecei a usá-lo em 2011. Meu antigo correio deve ser de quando o Gmail foi criado, em 2004 — deve ter mais informações e ocupar mais espaço. São muitos dados! Agora imagine uma pessoa que tem o Gmail desde o começo e que, além disso, usa sua conta Google no Android (no seu smartphone) e no Google Chrome, no computador. Isto é, alguém que dá o login no Chrome do seu computador para que o navegador sincronize suas informações entre todos os dispositivos conectados à conta do Google. Caramba! Geolocalização, históricos de pesquisa em todos os dispositivos, emails, chamadas, tudo centralizado nos data centers do Google — eles tem tudo e podem cruzar todas as informações. Imagine o que se pode saber de uma pessoa uma vez que saibamos por onde ela anda, com quem ela conversa e sobre o quê, que buscas faz no Google, que páginas acessa. Se você acha que elas não nos gravam, com que você acha que são treinados os algoritmos de reconhecimento de voz, com áudio de filmes da Disney? As empresas não apenas podem saber sobre nós, como indivíduos, mais do que nós mesmos sabemos, elas também podem saber sobre nós como coletivo, como massa (ou manada). Podem prever nossa conduta, simular nosso comportamento em determinadas circunstâncias. Eu já escrevi sobre a Cambridge Analytica por aqui. O caso da Cambridge Analytica é paradigmático sobre como podemos ser instrumentalizados por meio das informações coletadas pelas Big Tech, a ponto de nos levar a perguntar se somos mesmo livres, se ainda tem sentido falar em liberdade.

As empresas de tecnologia definem o padrão tecnológico, determinam a regra e dão a medida do que corresponde a um avanço tecnológico em suas áreas. Por isso toda a briga em torno da supramacia quântica. Isso significa que nenhum governo, nenhuma Universidade ou centro de pesquisa tem pleno entendimento do que elas podem fazer e do que elas efetivamente fazem. Isso dificulta qualquer tentativa de controle e compreensão. Dificulta qualquer regulação institucional, pois nada do que as empresas fazem é público e elas não são obrigadas a declarar o que fazem. E ainda que fossem, quem garantiria que cumprem o que declaram? Pelo que eu vejo não há nenhum mecanismo de controle que seja possível. Mesmo que auditores super-qualificados tivessem acesso local a toda infraestrutura das empresas e permissão completa para acessar a base de dados sobre pesquisas em desenvolvimento, ainda assim não seria suficiente. Nada mais fácil do que esconder alguma coisa usando computadores. Descobriríamos os abusos muito depois de nos tornarmos vítimas.

A quantidade de dados sobre apenas um usuário é gigantesca, mas o conjunto de dados de todos os usuários é inconcebivelmente grande. Quando se lida com muitos dados chega um ponto em que é preciso desenvolver as próprias ferramentas para processá-los. O Facebook deu início ao desenvolvimento do entorno Cassandra (agora capitaneado pela Apache), uma base de dados não relacional que lida com informações ao largo de uma infinidade de servidores. Trata-se de permitir que se processe esses dados de uma vez, como se todos estivessem num mesmo computador. Quem tem um cliente de email como o Outlook ou o Thunderbird sabe que, se guarda muitos emails — por exemplo, 10 ou 15 Gb de mensagens —, a aplicação começa a apresentar instabilidade porque carrega com muita informação de uma só vez. A base de dados facilmente se corrompe e estraga a semana do usuário, por isso em políticas de grupo corporativas costuma haver restrições sobre o número de mensagens disponíveis. Agora imagine o que significa processar não Gigabytes, mas Terabytes, Petabytes de dados.

Para processar dados em grande escala (Big Data) é preciso transformar a imensa rede de servidores nos quais os dados estão espalhados numa só máquina. Bem, como se fosse. Daí a necessidade de softwares como o Hadoop, que não faz mais do que criar um File System a partir dessa rede, que torna possível tratá-la como se fosse um único disco rígido. Uma vez configurado o sistema de arquivos, outras aplicações, como o Spark, podem processar os dados. É preciso então configurar essa rede de processadores como se fosse apenas um, e é isso que faz o Spark (entre outros). Portanto, são duas etapas, primeiro é preciso criar as condições para tratar o cluster de computadores como se fosse apenas um único disco rígido, depois é preciso criar as condições para tratar o cluster de computadores como se fosse apenas um único processador. Essas duas etapas representam uma parte significativa das tecnologias que envolvem o que se chama de Big Data, elas dão lugar a uma capacidade computacional sem precedentes. Já não são necessários hardwares caros, mainframes disponíveis apenas a grandes empresas ricas o bastante para pagar a fortuna que eles custam. Agora, qualquer empresa pode montar um cluster com significativa capacidade computacional colocando em série máquinas com configurações apenas razoáveis. É como se pudesse somar a capacidade computacional das máquinas, isso torna incrivelmente fácil e barato operar e escalar esses clusters. Apesar disso, esse é o reino onde a Amazon AWS domina, porque ela vende essa tecnologia nas nuvens, sem precisar montar a infraestrutura, para qualquer empresa ou pessoa que pagar pra utilizar a capacidade computacional de Big Data.

O processamento da primeira imagem de um buraco negro é um bom exemplo disso que se torna possível a partir do uso dessas tecnologias. Katie Bouman, a pesquisadora que aparece acima, na foto em destaque no post, está ao lado de um cluster de discos rígidos com mais de um petabytes de dados sobre o buraco negro. Nada disso seria possível se não existissem as tecnologias que permitem distribuir (paralelamente) o processamento das mesmas tarefas numa rede de computadores.

1 Petabyte equivale a 1000 discos rígidos de 1 Gygabyte

A medida que mais e mais dispositivos coletam informações sobre nós, as regularidades do nosso comportamento passam a estar disponíveis para serem determinadas por máquinas cada vez mais potentes. Máquinas que são capazes de identificar regularidades com precisão inconcebível por nossos limitados recursos biológicos — elas que são capazes de aprender a distinguir entre diferentes tipos de melanona, apesar da imensa pluralidade das amostras. A internet das coisas é uma perspectiva que tem nos feito sonhar com cidades inteligentes, prontas a responder aos nossos anseios antes mesmo que eles se manifestem. Será que de fato esse oceano de informação sobre nós, circulando nas mãos de atores tão poderosos, ajudará a converter a sociedade naquilo que desejamos?

Dado que também somos máquinas, condicionadas por variáveis determinísticas, a única coisa concreta que podemos divisar nesse mar de devaneios é a possibilidade de sermos manipulados como marionetes por empresas munidas de informações que nem mesmo suspeitamos. Todo resto é publicidade! Mas cada um acredita no que quiser.

Os iconoclastas, a vontade de seguir e a incapacidade de dizer

De onde vem a vontade de liderar? Alguém se pergunta honestamente sobre isso? Os líderes se perguntam? Uma resposta honesta pode ser o freio de mão de muitos impulsos. Everybody wants to rule the world, canta o Tears for fears. O desejo de liderar não é tão diferente do desejo de influenciar. Ele traz a marca do poder, desse poder que seduz porque alimenta egos sedentos pela confirmação de que são tudo que supõem ser.

Embora o desejo narcisista (e inconsciente) de liderar/influenciar seja como uma criança mimada que exige nossa atenção constantemente, há uma contraparte quase tão silenciosa quanto significativa. Dostoievski falava dela no Grande Inquisidor (em Irmãos Karamazov), das massas que a Igreja atraiu e recrutou oferecendo pão — enquanto Jesus oferecia o deserto e a fé. Sartre falava dela quando notava o fardo da liberdade, a paradoxal ânsia de libertação que ela inspira. Para cada tirano que gostaria de governar o mundo com mão de ferro há mil pessoas dispostas a segui-lo, sacrificando sua liberdade na fogueira do fanatismo.

Se cada um fosse capaz de dizer suas próprias verdades — ainda que ninguém as escutasse — talvez o mercado dos líderes e iconoclastas fosse mais enxuto. E talvez a gente pudesse se escutar melhor, com mais justiça. Mas o que predomina são a vergonha e as bolhas. A vergonha que nos impede de dizer e as bolhas onde é seguro se expressar. É verdade que de tempos em tempos os estúpidos perdem a vergonha, ressentidos por nunca serem escutados — e também porque o mundo não é regido pelas regras ridículas que eles creem que nos salvariam do caos —, mas os estúpidos jamais teriam a coragem de abrir a boca para se manifestar se não se sentissem amparados pelo respaldo de figuras públicas.

O mercado da iconoclastia é grande porque é grande a covardia, apesar da algazarra. Apesar dos gritos. Quando as pessoas veem outras dizendo o que elas creem ser verdadeiro logo também se animam a se expôr. Mas os iconoclastas profissionais não tem respeito pela inteligência dos outros, estão interessados apenas em conseguir os bens simbólicos (ou não) relativos à sua posição e em manipular as pessoas em prol dos seus interesses políticos e ideológicos. Não há nada de mais em ver as coisas segundo suas próprias lentes e valores, o problema é a falta de honestidade que acompanha o desrespeito pela inteligência de quem lhe presta atenção.

Os iconoclastas profissionais não respeitam a inteligência de ninguém, não consideram senão sua própria inteligência, e mesmo quando elogiam alguns de seus cúmplices não o fazem senão no interesse de aumentar seu próprio mercado e sua influência, em nome da expansão do seu território. No entanto, nem todo iconoclasta é um mercenário do mercado de ideias, nem todo iconoclasta é um farsante em busca de uma plateia. Alguns tem a marca dos que respeitam a inteligência dos outros, mais do que isso, alguns deles aspiram por aqueles que tem coragem de pensar suas próprias ideias.

Não é curioso que o cristianismo e o pensamento do iconoclasta Nietzsche tenham igualmente a tendência de atrair hipócritas? Gente que gosta de ter a carteirinha de cristão ou de espírito livre sem nunca ter praticado um ato sequer que esteja de acordo com esses conceitos, por pura covardia. Como se uma coisa fosse o conceito de cristão e outra coisa totalmente diferente fossem as ações de quem se diz cristão. Você pode apoiar tortura, a morte e a violência e ainda assim ser cristão. Pode qualquer coisa, né? O conceito sem força é a lei pra inglês ver. Quando escrevi a tese usei a expressão histórica “lei pra inglês ver” pra ilustrar uma regra ou lei sem força normativa, pra explicar a origem pragmática (e não puramente lógica) da normatividade da lei. A mesma coisa se pode dizer do conceito de cristão, é uma categoria que não categoriza nada, ou melhor, que categoriza qualquer coisa. Quais atos deveriam ser os atos dos cristãos? Aqueles que Freud diz serem quase impossíveis, amar o próximo a si mesmo e outras coisas mais. Talvez vocês saibam o quanto eu simpatizo com a abordagem freudiana das religiões, ainda assim não diria que é impossível, mas essa é uma longa conversa. De qualquer forma, é um enorme desafio amar os outros seres humanos como a nós mesmos, um desafio que só é capaz de aceitar quem verdadeiramente tem uma grande capacidade de amar. Se o cristianismo pregasse: “odiar os outros como a si mesmos”, aí sim eu diria que essas pessoas que se dizem cristãos são cristãos de fato. Mas não é o caso e eles são apenas hipócritas.

E o séquito de Nietzsche? Só há uma opção para quem respeita a inteligência de Nietzsche: abandoná-lo. Quem o segue o trai. Não abandoná-lo com desprezo ou ressentimento, como quem se afasta de algo indesejável ou sem valor. Abandoná-lo como quem, fugindo de um perigo que o persegue, abandona o cadáver de alguém amado. Ninguém pode sentir a força das próprias pernas sem antes haver abandonado muitos cadáveres de pessoas de valor e grandiosas. O espírito de Nietzsche é translúcido como o lago Walden, mas profundo como um abismo e pesado demais para carregar. Na verdade Zaratustra é mais severo do que eu:

Agora, meus discípulos, vou sozinho! Segui vós sozinhos também. Quero-o assim. De todo coração vos dou este conselho: Afastai-vos de mim e precavei-vos de Zaratustra! E melhor ainda: Envergonhai-vos dele! Talvez vos tenha enganado.

Nietzsche, assim falou zaratustra

Nietzsche tem muitos seguidores pra alguém que achava que devia ser visto com desconfiança. A maior aspiração do pensamento de Nietzsche é servir como uma escada — como a escada do Tractatus Logico-Philosophicus — que uma vez usada deveria ser imperativamente abandonada. Embora a escada seja útil, ela é apenas um meio e ninguém pode andar com desenvoltura carregando uma escada. Ninguém pode dançar segurando esse fardo.

Essa é uma curiosa forma de influência. A mais estimulante forma de influência sobre o pensamento humano é aquela que sabota sua própria força influente em favor da erupção de uma singularidade, em nome do nascimento de uma certa consciência. Como se dissesse: use isto enquanto for necessário, depois que estiver forte o bastante você deve fabricar suas próprias ferramentas e então abandonar as que lhe dei. Às vezes me envergonha usar uma linguagem quase utilitarista, mas é que é preciso lembrar que a linguagem não é nada mais que ferramenta (a matemática é uma ferramenta), pra que não nos transformemos em escravos da gramática — outra lição do pensamento nietzscheano.

A “razão” na linguagem: oh, que velha e enganadora senhora! Receio que não nos livraremos de Deus, pois ainda cremos na gramática…

Nietzsche, Crepúsculo dos ídolos, §6
(II. A “razão” na filosofia)

A influência narcisista e a manipulação dos iconoclastas profissionais tem efeitos irrisórios e insignificantes porque partem de pessoas que não acreditam realmente na inteligência dos outros, apenas encenam o teatro dessa crença — às vezes com bastante competência. A verdadeira crença na inteligência alheia acompanha um sentido profundo de justiça que avalia cada um com enorme cuidado, caso a caso. Os preconceitos tem lugar, já disse isso há mais de dez anos, mas como ferramentas provisórias e heurísticas na constituição de conceitos e ações regidas pela justiça. O respeito pela inteligência alheia tem uma enorme força porque transforma a todos nós na melhor forma de influência: no solo onde outras consciências sentem-se a vontade para medrar.

Essa é uma maneira interessantíssima de introduzir a ideia de conceito (e categoria) e uma valiosa explicação do seu impacto ético. O vídeo tem legendas em português em CC.

Esse texto faz parte das discussões da psicologia androide, da gênese da psicologia androide. Do nascimento da consciência, natural ou artificial, já que em certa medida o nascimento das diferentes formas de consciência coincide neste ponto: são ambas uma emancipação das regras de determinação do hardware.


Por acaso, há poucos dias topei com uma observação valiosa de Jung. Ele lembrava que Nietzsche era filho de pastor e que os sermões devem ter tido sobre ele uma enorme influência.

Poder-se-ia dizer que o próprio Nietzsche tinha um outro lado que necessitava uma linguagem forte, e todos os sermões dirigem-se principalmente a ele mesmo. Devem lembrar-se que ele era filho de um pastor e que presumivelmente houve alguma herança. Eu sei o que isto significa. (…) Ele necessitava uma linguagem forte para derrubar aquele homenzinho tão esmagado pela
tradição.

Carl Jung, Seminários sobre o zaratustra de Nietzsche

Quanto de verdade cada um pode aguentar?

Sem o pano de fundo de uma psicologia a verdade pode ser a simples peça de um quebra-cabeças, uma parte que ajuda a saturar um espaço lógico (do conhecimento). O fragmento de uma totalidade. Ainda que esse espaço lógico seja infinito, ele pode ser inteiramente determinado porque em certo sentido é um infinito atual e toda sua extensão está determinada conforme as leis naturais que o constituem. Bem, essa é somente uma perspectiva.

Mas quando trazemos a psicologia de volta — e pensamos a verdade — algo novo se acrescenta, algo que não podia estar presente aí onde a arbitrariedade não era permitida, a ideia de intensidade. A verdade então se transforma em um elemento a ser digerido pelas personalidades às quais ela se expõe e um dilema ético se apresenta. Hilda Hilst expressa de modo cristalino como essas dificuldades se colocam para o escritor.

LÉO GILSON RIBEIRO O que é uma grande abertura de intensidade?
HILDA HILST É difícil de definir, talvez fosse mais fácil sentir isso. É mostrar ao outro que ele pode desvendar o seu “eu” desconhecido; é proporcionar ao outro o “autoconhecimento”, uma compreensão definitiva de si mesmo, com suas potencialidades, falhas e virtudes.
 
LGB E isso não seria ampliar o outro, libertá-lo?
HH É justamente o que eu queria discutir com você: eticamente algum escritor, alguma pessoa, pode assumir a tremenda responsabilidade de romper os limites que o outro aceitou, ou porque lhe foram impostos de fora ou porque ele se arrumou diante dessa conciliação com a opressão externa e o condicionamento interno de que foi vítima? Revelar ao outro que ele pode ser muito mais e pode ser ele mesmo com uma liberdade total de qualquer tipo de repressão política, econômica, sexual, religiosa, psicológica etc., eu me pergunto, não pode levar uma pessoa à morte, à loucura sem retorno?
 
LGB Mas por que você pressupõe que as pessoas não queiram se libertar?
HH Talvez algumas queiram, mas poderão aguentar a sua nova condição? Que direito tenho eu de interferir na sua vida burguesa, arrumadinha, na qual, bem ou mal, ela sobrevive? E uma questão eminentemente ética!
 
LGB Você acha que seria uma onipotência ou uma presunção do autor ambicionar isso?
HH Sim, porque talvez depois de se conhecer a si mesma esse destinatário da minha mensagem de autolibertação não suporte a ruptura com o seu mundo anterior de tabus, de repressões, mas um mundo no qual ele pôde sobreviver. E se a descoberta plena de si mesmo for uma descoberta tão maior do que a sua capacidade? Se o levar a um nível de intensidade de autodescoberta que se revele intolerável para ele?

cristiano diniz (org.), Fico besta quando me entendem: entrevistas com hilda hilst

Na terceira temporada de The Sinner, uma situação apresenta o mesmo dilema. Um professor atordoado por seus próprios fantasmas e cansado de assistir impassível à infelicidade da sua aluna decide aconselhá-la. Ele decide lhe falar sobre o quanto a sociedade nos impele ao gregarismo e como é difícil escapar desse impulso, quer estimulá-la a emancipar-se do jugo dos pais tiranos (do pai, pra ser mais exato), sob pena de prolongar sua infelicidade indefinidamente. Mas como fazer isso sem ferir, sem exceder involuntariamente a quota que cada um pode suportar de verdade? Hilda Hilst tem boas razões pra pensar assim.

Invocações, encantamentos e entoações

Atado ao mastro do navio, Ulisses ouve o canto das sereias. Pintura de Herbert James Draper

Tudo que pode interferir na cadeia causal de fatos naturais tem que, em certo sentido, já estar nessa cadeia. A natureza não é mais que uma cadeia, uma série de eventos que se estendem do agora ao passado e ao futuro. Esses eventos estão indissociavelmente ligados, de tal sorte que qualquer mudança nos fatos que compõem a cadeia implica uma mudança em todo o sistema. É por isso que muitos não admitem a ideia de vontade, porque a vontade (livre) pode atuar sobre os fatos como se não estivesse constrangida por eles, daí a separação entre natureza e liberdade. A liberdade da vontade é a irredutível à determinação (de qualquer sorte). A ideia de uma subjetividade que não está completamente determinada pela regras que governam as cadeias causais e que por isso pode interferir no reino causal espontaneamente (ou quase) dá arrepios em muitos control freaks. O reino da liberdade tem suas próprias regras (moralidade). Kant sabiamente não via nenhum conflito entre as duas perspectivas:

Independente do conceito que se possa formar, com propósitos metafísicos, sobre a liberdade da vontade, as manifestações fenomênicas desta, as ações humanas, se encontram determinadas conforme leis universais da Natureza, como qualquer outro acontecimento natural.

Kant, Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita

É quase apavorante pensar que pode haver uma dimensão parcialmente excluída do que podemos conhecer e que, ainda assim, pode interferir nos fatos que conhecemos. (As leis da liberdade tem que ser instituídas). Se você deixar passar o boi da “vontade”, passa junto com ele toda a boiada da espiritualidade — tudo que pode interferir na causalidade sem estar na cadeia causal. E como não admiti-la?

Em “Eficácia simbólica”, Levi Strauss relata com detalhe o caso de um xamã que dá um sentido particular às dores de uma mulher que dá à luz, mitingando seu sofrimento, restituindo a experiência ao universo simbólico onde as coisas tem seu lugar.

A cura consistiria, portanto, em tornar pensável uma situação dada inicialmente em termos afetivos, e aceitáveis, pelo espírito, dores que o corpo se recusa a tolerar. O fato de a mitologia do xamã não corresponder a uma realidade objetiva não tem importância, pois que a paciente nela crê e é membro de uma sociedade que nela crê. Espíritos protetores e espíritos maléficos, monstros sobrenaturais e animais mágicos fazem parte de um sistema coerente que funda a concepção indígena do universo. A paciente os aceita ou, mais precisamente, jamais duvidou deles. O que ela não aceita são as dores incoerentes e arbitrárias que constituem um elemento estranho a seu sistema, mas que o xamã, recorrendo ao mito, irá inserir num sistema em que tudo se encaixa.

Claude Lévi-Strauss, “A eficácia simbólica”. Antropologia estrutural

A observação cuidadosa de Lévi-Strauss destaca um aspecto importante: se trata de um tipo particular de eficácia, uma eficácia simbólica. Não estou certo de que ele não empresta à expressão a mesma radicalidade que eu, isto é, que ele a veja como testemunho de algo que escapa à pretensão objetiva de nosso olhar científico. Mas pode ser que sim, repare em sua observação sobre a irredutibilidade da mitologia xamânica. Não pode haver nada do lado de fora do quadro de fatos que a ciência tenta determinar, não pode haver nada exterior à teia de relações definidas pelas leis naturais que governam a série causal. Talvez a mais geral expressão dessa pretensão totalizante seja um comentário de Wittgenstein sobre a lógica no Tractatus Logico-Philosophicus:

A lógica preenche o mundo; os limites do mundo são também seus limites.
Na lógica, portanto, não podemos dizer: há no mundo isso e isso, aquilo não.

Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus 5.61

A lógica preenche o mundo. E, no entanto, há algo do lado de fora, mesmo pro Tractatus. Há algo que mesmo uma linguagem inteiramente devotada a figurar fatos não pode representar*.

Apesar de não nos ensinarem a admitir a possibilidade de que exista algo fora da série causal capaz de intervir nos fatos que testemunhamos, a linguagem, entendida não como uma ferramenta técnica, mas como expressão aberta de nossa milenar relação com o mundo, conserva e multiplica as ocasiões em que constatamos o irredutível mistério do universo. Na tradição cabalística diz-se que uma certa leitura do Talmude poderia nos tornar capazes de criar vida, com uma pequena e decisiva diferença. Se pudéssemos interpretá-lo corretamente, confirme esses ensinamentos secretos, poderíamos criar vida, mas essa vida artificialmente criada, o golém, não teria algo que nós temos, a linguagem. Isso está em sintonia com as observações dos evangelhos, onde se lê:

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.
Ele estava no princípio com Deus.
Tudo foi feito por ele; e nada do que tem sido feito, foi feito sem ele.
Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens.

João 1:1-4

O verbo é algo que só Deus pode conceder, é um poder que nos escapa. Deus sopra em nossa boca o verbo e nos infunde o espírito. Participamos da força divina através da linguagem. Meu virulento ateísmo e minhas críticas à religiosidade me credenciam a falar de todas essas coisas sem reservas, como quem senta num bar e conversa com amigos. A linguagem é uma força cuja medida escapa aos estreitos limites da nossa pretensamente totalizante visão científica do mundo.

A linguagem comporta algo de irreal, mágico, sobrenatural, algo que muitas experiências espirituais se esforçaram por canalizar e integrar (não entender). Ainda que essa ideia pareça algo distante para nós, seres (humanos && urbanos) de um mundo desencantado, não é assim tão distante quanto parece. É apenas algo com o que não fomos ensinados a lidar — mas podemos aprender tudo. Como uma criança pode ser ensinada a acreditar em Deus. O cinema, como a arte em geral, é o que nos torna capazes de ver aquilo que não fomos ensinados a enxergar. Vejam esse fragmento de The ballad of Buster Scruggs:

Fragmento de “The Ballad Of Buster Scruggs”, dos irmãos Coen.

A expressão no rosto dos espectadores diante de um garoto sem braços nem pernas cuja força dramática se impõe de modo quase sobrenatural é desses detalhes cuidadosamente pensados pelos bons diretores. Mas ainda não é o suficiente. O que melhor manifesta essa ponte que eu quero estabelecer entre a linguagem como ferramenta prática e sua dimensão divina são suas invocações, seus usos aparentados a tudo que poderíamos designar como encantamento e feitiço. E mais uma vez o cinema nos ajuda a entender o que está tão profundamente segregado da experiência urbana da nossa vida cotidiana:


Infelizmente o vídeo não pode ser visto fora do Youtube, clique no link acima para assisti-lo

Certamente essa invocação a Netuno não nos soaria tão assustadora quanto soou ao personagem de Robert Pattinson, mas podemos entender o sentido do seu terror. Basta lembrar de suas circunstâncias: dois homens provavelmente no final do século XIX presos numa ilha atormentada por uma tempestade infindável, sem perspectiva de serem resgatados, quase sem recursos, bebendo toda sorte de derivados de petróleo (querosene, gasolina?) para se entorpecer — como os meninos de rua que cheiram cola de sapateiro para aliviar a dor e a fome. Duas pessoas acostumadas a olhar o mar não como objeto a ser analítica e descritivamente entendido, mas como uma força sem par que eles se sentem inclinados a respeitar quase com adoração. A invocação que nos apresenta Willem Defoe é mágica, ela manifesta a força esquecida da linguagem, a força sublinhada por Lévi-Strauss na atuação xamânica. A inteligência humana é a expressão de forças criadoras que a atravessam e das quais devemos participar como uma célula participa dos sistemas celulares — e o trabalho criativo dos atores é a maneira mais fácil de notar a interface entre o que é humano e aquilo que tentamos evocar ao usar a palavra divino.

Não posso terminar um post sobre a força esquecida da linguagem sem lembrar dos poetas. Sem lembrar que a devoção dos poetas à linguagem é a última trincheira na luta contra o estreitamento imposto pelo predomínio da visão instrumental da sociedade tecnológica. Vejam o que fala Paulo Leminski sobre a linguagem nesse fabuloso documentário, Ervilha da Fantasia:

Documentário para TV dirigido por Werner Schumann

Sem lembrar, además, do compromisso quase solipsista de Hilda Hilst à linguagem. Nada disso se afasta do entendimento da linguagem como entoação, como enunciação aos ouvidos, cujo poder conserva algo de inefável e insondável — mesmo quando o suporte é escrito. Nietzsche se queixava de que os alemães não escreviam com ritmo e que deixavam os ouvidos na gaveta ao escrever. Há uma continuidade inanalisável entre a fala, a música, feitiços e encantamentos. Todo uso da linguagem deve chegar aos nossos ouvidos como o canto das sereias chegou aos ouvidos de Ulisses, como a manifestação de algo irredutível às pretensões comezinhas do nosso medo e da nossa vontade de controle. Algo que não devemos controlar, mas do qual devemos voltar a participar quase com urgência.


* Tecnicamente, não há nada de fora, porque aquilo que deve existir (a ontologia) no Tractatus é determinada. A substância do mundo é um infinito atual, algo já dado que garante a determinação do sentido e toda a determinação do espaço lógico, mas quando digo que há algo do lado de fora, não estou usando o verbo haver tecnicamente.


Escrevi um ensaio sobre Liberdade e determinismo, pra quem se interessar pelo tema.

A teimosia como questão filosófica

Há algum tempo eu tenho insistido num ponto: eliminar a arbitrariedade, a vontade e qualquer coisa que escape à determinação causal da ciência corresponde à tarefa de um determinado projeto de racionalidade. Um projeto estreitamente vinculado a concepções filosóficas entretecidas à Matemática e à Lógica. De acordo com esse marco teórico, a distinção kantiana entre o reino da Liberdade e o reino da Natureza deve ser abandonada e assim ficaríamos apenas com a Natureza. Muitas perspectivas interessantes se derivam das ideias ligadas a esse projeto. No entanto, embora sua força e seus efeitos se vejam claramente em casos como a Cambridge Analytica, fenômenos comuns e decisivos do uso da linguagem escapam de sua pretensão generalista e determinista. Nas suas anotações Wittgenstein recorta uma frase de Schopenhauer que pode ser um bom ponto de partida para olhar desses fenômenos:

Se você se encontra perplexo tentando convencer alguém de algo sem ser capaz de sair do lugar, diga a si mesmo que é a vontade e não o intelecto o que você está enfrentando.

Como é possível conceber a mudança sem ter em conta a adesão que as pessoas tem às suas crenças e visão de mundo? Que estratégia podemos empregar para levá-las a crer naquilo que julgamos necessário se não consideramos a estabilidade que uma visão de mundo produz e a instabilidade gerada pelo seu abandono?

Sistemas de referências como estabilizadores lógicos e psicológicos formam um tema que me interessa muitíssimo e sobre o qual já escrevi aqui e em outros lugares, mas há ainda outro aspecto que anda lado a lado a essa discussão. O produto psicológico da certeza (lógica) é a convicção, e do sentimento de convicção se deriva, não poucas vezes, a confiança. A confiança é um elemento indispensável para que certas ideias possam produzir resultados que nos parecem naturais: um inventor, um cientista, um escritor, qualquer um quem que, dentro de um dado paradigma, tenha uma ideia dissonante precisa ter confiança suficiente para afirmar suas ideias, a despeito da recepção e das críticas. Entretanto, essa confiança não é a marca dos gênios e das pessoas verdadeiramente investidas de uma visão nova e transformadora. Em realidade, a confiança é mais comum do que parece e dela não se pode inferir nada sobre a qualidade e o valor das ideias de quem a possui.

A confiança não apenas estabiliza uma visão de mundo, ela tende a promover e projetar as crenças e ideias que a caracterizam. Disso resulta uma situação embaraçosa: se por um lado a confiança é imprescindível para que ideias novas possam projetar-se e produzir efeitos que só o novo pode nos trazer, por outro, o fato de que ela seja tão bem distribuída quanto o bom senso de que fala Descartes parece produzir o efeito de impedir que as pessoas mudem a forma como pensam.

O bom senso é a coisa mais bem distribuída do mundo: pois cada um pensa estar tão bem provido dele, que mesmo aqueles mais difíceis de se satisfazerem com qualquer outra coisa não costumam desejar mais bom senso do que têm.

Descartes, discurso do método

Disso tudo resultam dúvidas exasperantes: qual é a medida entre a convicção e a incerteza? Que relação deve haver entre o conhecimento e a ignorância? É possível passar toda a vida escrevendo sobre esse tema sem esgotá-lo, mas o que me interessa agora é salientar que, embora a questão se ramifique ou se entrelace a um sem número de outras (como a tendência a confirmação), uma palavra muito comum pode apresentar de modo simples o que está na raiz de toda essa discussão: teimosia. A teimosia dá conta dessa resistência da vontade, da face negativa, por assim dizer, da confiança e da estabilidade. Trata-se inegavelmente de um problema filosófico significativo: qual é o papel da resistência nos intercâmbios linguísticos e nos usos do discurso?

Há mais variáveis nessa discussão do que minha incipiente capacidade de sistematizar me permite gerenciar, portanto a seguir eu vou colocar três pontos torcendo para que lhes pareça claro o vínculo entre todas essas ideias.

Nietzsche tinha um modo curioso de conceber uma certa expressão da força de caráter:

A estreiteza de opiniões, transformada em instinto pelo hábito, leva ao que chamamos de força de caráter. Quando alguém age por poucos, mas sempre os mesmos motivos, seus atos adquirem grande energia; se esses atos harmonizarem com os princípios dos espíritos cativos, eles serão reconhecidos e também produzirão, naquele que os perfaz, o sentimento da boa consciência. Poucos motivos, ação enérgica e boa consciência constituem o que se chama força de caráter. Ao indivíduo de caráter forte falta o conhecimento das muitas possibilidades e direções da ação; seu intelecto é estreito, cativo, pois em certo caso talvez lhe mostre apenas duas possibilidades; entre essas duas ele tem de escolher necessariamente, conforme sua natureza, e o faz de maneira rápida e fácil, pois não tem cinqüenta possibilidades para escolher.

Nietzsche, humano, demasiado humano, § 228

É inevitável lembrar de um certo capitão reformado do Exército berrando, com enorme convicção, ante um apático jornalista: “através do voto cê não vai mudar nadaaaaa nesse país”. Não dá pra negar que a estreiteza confere muita força às palavras e às ações, e não sem razão as pessoas se sentem atraídas por discursos carregados de convicção.

Nesse mesmo contexto, ao examinar questão do gênio, Nietzsche destacou que é tortuoso e incerto o caminho pelo qual o gênio poderia conferir às suas próprias ações a mesma energia que uma pessoa estreita manifestava.

Comparado àquele que tem a tradição a seu lado e não precisa de razões para seus atos, o espírito livre é sempre débil, sobretudo na ação; pois ele conhece demasiados motivos e pontos de vista, e por isso tem a mão insegura, não exercitada. Que meios existem para torná-lo relativamente forte, de modo que ao menos se afirme e não pereça inutilmente?

Nietzsche, humano, demasiado humano, § 230

Nas últimas décadas essa a debilidade do gênio e a confiança dos estreitos, por assim dizer, tem atraído o interesse científico por causa de investigações psicológicas como as do chamado Efeito Dunning-Kruger. Esse efeito pretende explicar a inclinação das pessoas estreitas e obtusas a sobrevalorizar suas competências e, por outra parte, a tendência dos espíritos verdadeiramente fortes a menosprezar suas habilidades. Não é à toa que Nietzsche se considerava um psicólogo sem igual.

Por fim, em certa medida a teimosia, a confiança e a convicção são elementos indispensáveis, pois não parece nem possível nem desejável simplesmente eliminá-las. No entanto, mesmo no melhor dos casos, quando a convicção acompanha ideias geniais e transformadoras, há sempre o risco de que assim também se engesse uma visão de mundo. Talvez o aspecto que mais tardia e inadvertidamente tenha me chamado atenção no pensamento de Wittgenstein seja seu descompromisso com a estabilidade. Suas ideias eram reformadas numa velocidade que tornava quase impraticável acompanhá-las, essa era uma queixa conhecida entre alguns de seus amigos. O desapego à estabilidade pode bem denotar uma atitude valiosa a respeito da relação entre conhecimento e ignorância. Esse texto já está longo e coalhado de citações, mas permitam uma última:

Ao escrevermos, como evitar que escrevamos sobre aquilo que não sabemos ou que sabemos mal? É necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo a dizer. Só escrevemos na extremidade de nosso próprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber e nossa ignorância e que transforma um no outro. É só deste modo que somos determinados a escrever. Suprir a ignorância é transferir a escrita para depois ou, antes, torná-la impossível. Talvez tenhamos aí, entre a escrita e a ignorância, uma relação ainda mais ameaçadora que a relação geralmente apontada entre a escrita e a morte, entre a escrita e o silêncio.

Gilles deleuze, diferença e repetição (prólogo)

Eu acredito que as armadilhas da convicção só podem ser superadas quando nos parecer natural não apenas admitir alguma instabilidade em nossa visão de mundo mas também estar a vontade com a nossa própria ignorância. É difícil conceber a comunicação e o entendimento como ferramentas capazes de responder às exigências de transformação que teremos que levar a cabo nas próximas (décadas && séculos) sem incorporar esses dois elementos à nossa cultura e subjetividade. Toda a tradição determinista, aquela que eu mencionei no primeiro parágrafo, dá aos acordos um valor desmedido e por isso pouco ou nada tem a oferecer ante aos conflitos e desacordos que, camufladamente, abundam na vida humana. É o caráter desestabilizador dos conflitos e desacordos aquilo sobre o que deveríamos meditar. Quero num outro momento escrever sobre esses desacordos.


PS. Ao longo da história humana muita gente boa notou a convicção dos estúpidos e a sua contraparte, mas não dá pra deixar de lembrar de Yeats, em The Second Coming:

The best lack all conviction, while the worst
Are full of passionate intensity.