A dialética eurística de Schopenhauer

A

Schopenhauer escreveu uma dialética eurística, ou melhor, deixou inacabado esse projeto. Escreveu mas não o publicou por razões incertas. A arte de ter razão compila 38 estratagemas através dos quais se pode obter o assentimento do público ou do interlocutor sem ter razão. O Wikipedia cataloga e ilustra os artifícios.

Num artigo sobre o livro, intitulado O novíssimo Organon: a lógica e a dialética em Schopenhauer, Jarleen Salviano menciona uma citação bastante curiosa de uma obra de Oliver Goldsmith, O vigário de Wakefield, empregada por Schopenhauer para ilustrar o uso do estratagema 36 (discurso incompreensível). No fragmento abaixo, um Squire (membro da pequena aristocracia rural) tenta convencer Moses de que “mais vale uma bela jovem do que todo o clero do mundo”:

— Antes de tudo, você quer abordar o assunto analogicamente ou dialogicamente?— Acho que se deve abordá-lo racionalmente, respondeu Moses, feliz por lhe permitirem discutir.— Muito bem, disse o Squire, primeiro as primeiras coisas. Espero que você não negue que tudo aqui que é, é. Se você não concede isto logo de início, não posso prosseguir.— Acho que posso concedê-lo, para meu proveito.— Espero, retorquiu o outro, que você concorde também que uma parte é menor que o todo.— Concedo isso também, disse Moses. É coisa razoável.— Espero, disse o Squire, que você não negue que três ângulos de um triângulo sejam iguais a dois ângulos retos.— Nada pode ser mais certo, respondeu o outro, e olhou em torno com seu habitual ar de importância.— Muito bem, disse o Squire, falando muito rápido — as premissas tendo sido assim colocadas, prossigo, fazendo observar que a concatenação das auto-existências, procedendo numa duplicada razão recíproca, naturalmente produz um dialogismo problemático, que em certa medida prova que a essência da espiritualidade pode ser referida ao segundo predicável.— Pare! Pare! gritou o outro — Eu nego isso. Você pensa que posso me submeter assim docilmente a essas doutrinas heterodoxas?— Que?, replicou o Squire, como tomado de paixão. — Não se submeter? Responda-me a uma questão direta: Você acha que Aristóteles tinha razão ao dizer que os relativos estão relacionados?— Sem dúvida, replicou o outro.— Se é assim, então responda-me diretamente: Você julga a investigação analítica da primeira parte do meu entimema deficiente secundum quoad ou quoad minus? E dê-me suas razões, digo, diretamente!— Eu protesto! gritou Moses! Não compreendo direito a força do seu raciocínio, mas, se ele for reduzido a uma proposição simples, poderei ter uma resposta.— Oh, meu senhor!, respondeu o Squire. — sou seu humilde servidor, mas o senhor pretende que eu lhe forneça a argumentação e também a inteligência. Não, senhor; isso, eu protesto, é demais pra mim. Isto efetivamente despertou o riso contra o pobre Moses.

(Um parêntese: Schopenhauer usa o termo dialética em sentido outro que o de Aristóteles, por isso a expressão dialética eurística. Para Aristóteles dialética e eurística designam coisas diferentes. A dialética, embora seja diferente da lógica, busca o mesmo que ela: a verdade.)

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