O caso Matadero

2018 foi um ano estranho, mais de uma vez topei com pessoas que me pediam orientação — logo a mim? O caso Matadero foi apenas um desses casos e em certa medida ele está relacionado àquilo que eu insinuei no post anterior. Naquele dia nós decidimos passear pelo Matadero, um centro cultural com espaços de exposição, cinemateca, bares, que fica numa imensa área às margens do rio Manzanares. Foi quando nós estávamos parados na faixa de pedestres esperando que o sinal abrisse que um senhor me abordou perguntando em que direção ficava a Ronda de Valencia, ou coisa do tipo. Eu disse que não sabia, mas que olharia no smartphone e lhe diria em um minuto. Ele não queria me incomodar, mas eu lhe disse que não custava nada. A verdade é que meu smartphone então estava um pouco velho e respondia numa velocidade muito menor do que eu gostaria, o GPS demorava especialmente para identificar a localização. O sinal abriu e eu sugeri que fossemos pro outro lado. Chegando no outro lado, nós paramos e eu já estava quase identificando o local, tentando me situar em relação a ele (o que ainda hoje me custa), quando um homem se aproximou de nós e me pediu dinheiro. Eu tirei um ou dois euros que tinha no bolso e dei pro sujeito, ele seguiu e o senhor que me acompanhava disse: “Que buena persona eres!”, e eu continua buscando, estarrecido pelo comentário de um sujeito que mal sabia o sacana que eu sou.

Esse é exatamente o ponto onde o senhor me abordou.

Poucos segundos depois outro sujeito para diante de nós, com a aparência de quem estava drogado e de quem tinha apanhado, e me pergunta qual era a letra que aparecia na capa de um livro. Era visivelmente um M, razão porque a pergunta parecia ainda mais insólita. Eu respondi e ele continuou me perguntando pela letra, e outras coisas mais, e eu que até então tinha mantido a paciência lhe disse em tom sério que estávamos conversando e que não queríamos mais ser incomodados. Ele se foi. Daí eu finalmente me orientei e disse ao senhor a direção que ele deveria seguir. Nós demos mais alguns passos juntos, enquanto ele me agradecia como se eu lhe tivesse dado um rim, até que nos separamos.

O caso ficou na minha cabeça porque me pareceu inacreditável o espanto e a surpresa do senhor diante da minha simples solicitude. Eu não havia levado um morador de rua para morar comigo, nem qualquer uma das coisas sugeridas pelos bolsonaristas e outros que tais quando querem denunciar o evidente limite do compromisso entre seres humanos (e justificar assim sua atitude filha da puta); eu havia simplesmente me disposto a orientar uma pessoa usando esse dispositivo que hoje em dia todo mundo carrega no bolso. O que então me surpreendeu constatar, uma obviedade, é o quanto é verdadeiramente incomum e infrequente mesmo o menor dos cuidados. Eu pensei comigo mesmo, a vida é tão dura, estamos incontornavelmente expostos à tragédia e ao sofrimento, como é possível viver se não nos dispomos a nos ajudar nem mesmo nas menores coisas e se isso nos causa espanto? Quando atitudes tão insignificantes são sentidas como demonstração de bondade e não de senso comum (de coisas que deveriam ser começo de conversa), é sinal de que estamos muito distantes de virtudes que seriam um bálsamo, pelo menos no que diz respeito à dimensão social da vida. Fiquei um pouco triste por me dar conta do quanto temos naturalizado o egoísmo e o egocentrismo capitalista.

A gente também se fortalece

A gente também se fortalece.
A gente dá energia uns aos outros.
A gente encoraja, a gente nutre.

É difícil acreditar nesse conjunto de proposições. Quem pode olhar o mundo e dizer que nós nos fortalecemos, dizer que isso é verdade? Acho facilmente defensável a ideia contrária, de que nos enfraquecemos. Acho facilmente defensável a ideia de que nos apequenamos, nos humilhamos, amendrontamos uns aos outros. Somos um peso, um fardo uns pros outros. Nós nos enfraquecemos! — eu diria, definitivamente. (Qualquer pessoa que espere sempre o pior do ser humano tem a seu favor fartas razões.) No entanto, não é como se a constatação do fato de que nos enfraquecemos impedisse que a gente também pudesse se fortalecer. Temos também essa capacidade, ela só depende da atitude de cada um. Mas como podemos nos fortalecer? Há muitos modos de nos fortalecermos, eu falo aqui sobre apenas um desses modos, a hospitalidade.

A primeira vez que estive na Galícia nós chegamos em Marin quase onze horas da noite. Estávamos mortos de fome depois de 6h viajando de carro. Por sorte encontramos um mercadinho que fazia às vezes de bar, lá dentro havia o suficiente para gente preparar um jantar rápido. Entramos eu e Jana e topamos com um camarada careca que trabalhava lá, falando num sotaque que até então eu não conhecia. Parecia muito um amigo argentino que temos em Madrid e eu perguntei sem pensar: “você é argentino?” Um milésimo de segundo depois me dei conta de que não seria absurdo imaginar que alguém pudesse tomar essa pergunta como uma provocação. Eu confesso que sou uma pessoa demasiadamente maldosa, mas não gasto minhas palavras, o verbo que me foi soprado pelo próprio Deus, usando identidades nacionais como formas veladas de ofensa e provocação. Menos ainda a amada identidade argentina, à qual sinto tanto dever. (Dever não é bem a palavra, mas vamos ficar com ela de momento). Por sorte ele tampouco tomou minha pergunta como signo de outra coisa que não a mera curiosidade. Conversamos um pouco, ele foi muito gentil, nos falou sobre alguns produtos e, ao final, compramos uns bonitos dentes de alho e um chorizo galego. Nos despedimos e enquanto eu caminhava em direção à saída vi um queijo que parecia muito o queijo coalho, que comemos na Bahia — e eu morrendo de vontade de comer um queijo coalho. Perguntei a ele que queijo era aquele e expliquei a razão da minha pergunta. Depois de saber que não era o que eu esperava, me despedi mais uma vez e ele pediu que eu esperasse. Entrou por uma porta e logo voltou com um pedaço de papel alumínio, cortou um naco generoso do queijo e me deu. Eu fiquei embasbacado, agradeci como pude, me esforçando por demonstrar meu apreço pela sua ação, mas estava meio sem graça.

Uma pessoa não pode ser hospitaleira se praticou a hospitalidade apenas uma única vez na vida, como diria o velho Wittgenstein:

Seguir uma regra, fazer uma comunicação, dar uma ordem, jogar uma partida de xadrez são hábitos (costumes, instituições)

Wittgenstein, investigações filosóficas § 199

O que faz a hospitalidade é o hábito de acolher calorosamente. É certo que esse gesto foi apenas um entre tantos que certamente existiram no passado e existirão no futuro. Para esse bom camarada, não havia ali nada que fosse digno de ficar na memória, era apenas um dia qualquer da sua vida, como os outros dias. (Ele seria, nesse dia, quem ele sentia que devia ser todos os dias. Se ele fosse hospitaleiro como foi conosco, isso significa que boa parte do seu dia seria preenchido com essa atitude. Ele era moldado pela hospitalidade. O hábito do cachimbo deixa a boca torta. A gente também pode ser moldado pelo melhor. O cachimbo é apenas um instrumento que ilustra a força do hábito na formação intelectual humana.) Mas não era disso que eu estava falando, eu tava falando de como aquele gesto era para ele tão natural. Eu, por outro lado, naquele momento, senti como se fosse plantada uma semente no meu coração. Na certa porque eu sou ridículo e piegas — é verdade! — mas isso não tira a força simbólica do fato. Eu entendi a força da ideia, da hospitalidade. Da ideia não! — da prática da hospitalidade. Entendi o que ela tem de caloroso e justo, o que ela tem de forte. A hospitalidade é uma força ancestral que nos atravessa, que nos permite que nos reconheçamos uns nos outros. Que vejamos nossos longos, longuíssimos laços. Não dá pra esquecer o que disse Mandela sobre Ubuntu:

Talvez nunca pudesse reconhecer a força da hospitalidade se não tivesse me criado na cidade negra da Bahia e se essa semente não tivesse encontrado um solo em que medrar. Não tô dizendo que não existe em São Paulo pessoas hospitaleiras, eu sempre tive a sorte de encontrar em minha terra pessoas muito queridas. Seres humanos que são o melhor da nossa raça, se é que isso ainda significa alguma coisa. Tem significado muito pouco! Mas é que na Bahia as pessoas podem ser muito receptivas. Há muito de alegoria, muito de broma, mas há também muito de verdade na fantasia. A hospitalidade é uma tendência à amizade, ao entendimento de uma pluralidade, uma pluralidade que não se reduz a nenhuma identidade e que não pode ser instrumentalizada por o que ela tem de coeso, pela sua unidade. A hospitalidade é esse embaralhamento constante pela influência da diversidade, o saudável apagamento da identidade pela força da miscigenação. (É nesse sentido a anti-pureza.) A estabilidade da identidade, que nunca pode ser apagada, dá lugar a uma instabilidade constante (que não se estabiliza) que pode ser usada para compreender o diferente. Que pode ser usada para se tornar o diferente, pra mudar de pele. A estabilidade da identidade gera inevitavelmente uma resistência à mudança, dá lugar ao narcisismo das pequenas diferenças, mas sem a estabilidade da identidade nós tendemos à loucura — ao afastamento, à ruptura com a comunidade de acordos entre seres humanos. A tendência à amizade é a uma das melhores disposições humanas, ela é imensamente poderosa e nos fortalece. Na Bahia, a qualquer instante a gente pode conhecer novos amigos, ou virar instanteamente melhor amigo de alguém.

Eu acho que nós tendemos a acreditar que somente a dor se fixa na memória, como se tivéssemos sempre que nos valer disso. E por essa razão, hoje, parece tão importante lembrar do que nos fortalece e nutre.

Talvez nada exista de mais terrível e inquietante na pré-história do homem do que a sua mnemotécnica. “Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória” — eis um axioma da mais antiga (e infelizmente mais duradoura) psicologia da terra.

Nietzsche, Genealogia da moral §3

Como se as coisas só pudessem ser fixadas em nós por meio do medo e do fogo e só tivéssemos a nossa disposição uma pedagogia da dor. Também podemos integrar, absorver e aprender com o amor e a amizade, com a generosidade, com a hospitalidade, embora predomine o medo de parecer ingênuo ao acreditar nessas coisas. Acreditar que podemos nos fortalecer, dado que parece tão fácil constatar que nos enfraquecemos, é o tipo de mentalidade que condenamos justo porque aparentemente não oferece nenhum modelo prático de ação (política e ética). Mas como nos lembrou Mandela, como nos lembra Carlos Taibo, não há somente romantismo ingênuo em acreditar que podemos agir de outra maneira em relação aos outros. Essa atitude é também parte da nossa história, da história de tantos povos tão diferentes espalhados pelo mundo, e ela não pressupõe a crença tola na prevalência da bondade, mas aceita as recônditas reentrâncias da alma humana sem ilusão. Aceita porque reconhece em si mesmo as sombras dessa alma.

Eu queria saber escrever mais sobre a hospitalidade e sobre outros modos de fortalecer, já escrevi algumas coisas sobre a amizade e o amor, mas talvez convenha ler sobre a hospitalidade alguém que eu nunca li, Jacques Derrida (é uma pena que o texto esteja fechado, ele me inspirou a vontade de ler o que Derrida escreveu sobre hospitalidade). Um dia talvez eu possa voltar a esse tema com algo mais substancial a dizer, ele me merece nossa atenção.

Lições sobre carinho e consideração

Certas coisas se dizem não sem acanhamento, sem algo de vergonha de parecer piegas. Talvez por isso Fernando Pessoa tenha dito que todas as cartas de amor são ridículas. Entretanto, nesse tempos em que toda sorte de estupidez é dita sem constrangimento, parece necessário o esforço para superar a hesitação de falar de coisas aparentemente piegas.

Essa lição aprendi no terceiro ano, ou melhor, comecei a aprender ali. O aprendizado não é sempre um processo linear e definitivo, às vezes ele reverbera e se conclui só depois de longos anos. Então eu estudava no Colégio Estadual Ypiranga, em Salvador, era o segundo ano em que eu estudava num colégio público. Minha turma era muito legal, heterogênea, eu tinha uns poucos amigos que me haviam acompanhado no segundo ano e outros novos. Lembro de meu amigo Gilson, que morava em Candeias e vinha toda manhã estudar no centro da cidade, — o colégio ficava da região do 2 de julho. Ele estava quase sempre com tanto sono que mal podia acompanhar as aulas. Eu morava na Boca do Rio e entre minha casa e o colégio era quase uma hora de viagem, imagine então quanto tardava a viagem para quem morava em Candeias. Quase todo mundo trabalhava: eu tinha começado a estagiar na SAEB (Secretaria de Administração do Estado da Bahia) naquele ano — há 20 anos, em 1998 —, e lembro, por exemplo, de uma amiga que trabalhava numa loja em um shopping e também de um colega que trabalhava como camelô na região do Iguatemi. Tudo isso fazia com que ficasse muito evidente, para mim, a diferença entre o ensino público e o ensino particular, não apenas em termos da estrutura, das condições gerais, mas em termos pessoais, de como as pessoas encaravam a vida e suas dificuldades.

As dificuldades que enfrentávamos nos colégios públicos faziam com que a tarefa de ensinar fosse ainda mais difícil do que é. Não precisávamos de professores inclinados a despejar o que sabiam sobre nossas cabeças, conforme  o que Paulo Freire chamou de modelo bancário de ensino. (Quem precisa disso?) Precisávamos do que todos precisam, de alguém que reagisse ao que nós éramos, ajustasse seu modo de ensinar, ainda que inevitavelmente orientado a um currículo, ao nosso ritmo, a nossas dificuldades de formação e de vida. Remés, nosso professor de Química, tinha esse perfil. Ele era exigente, mas também tinha a preocupação de nos assistir, orientar, entender. No final do ano Remés sugeriu que fizéssemos uma festa de despedida. E assim combinamos uma festa na casa de um dos nossos amigos.

Com 17 anos eu já havia aprendido boa parte das lições do universo masculino. Eu sabia mostrar-me pouco amistoso, agir com hostilidade e não me faltava o que dizer se sentisse que era necessário me impor por qualquer razão. Em uma palavra, estava bem armado. No dia da festa eu cheguei pela primeira vez em São Caetano. Por razões sintomáticas, quem mora em certas regiões de Salvador não costuma frequentas algumas outras, é como se houvesse um abismo intransponível dentro da cidade. Apesar de gostar de meus amigos de classe, havia algo — e ainda há — que dificultava minha integração. Quero dizer, não me sentia inteiramente a vontade, embora fossem todos amigáveis e receptivos. De qualquer modo, a festa estava divertida e eu, como alguém que tinha estudado toda a minha vida no ensino particular, não deixava de notar as diferenças de tipos e de comportamento. Há algo que se conserva quase infantil mesmo nos anos mais avançados nas escolas particulares. Ali, entre meus amigos da escola pública, a relação era notoriamente diferente, pois havia uma espécie de comunhão e compreensão de outra ordem. Pouco antes do final da festa, Remés propôs uma atividade, dessas que me desconcertam ainda hoje. Nós sortearíamos nossos nomes e deveríamos escrever uma mensagem para a pessoa cujo nome nos fosse destinado. Não lembro o que escrevi, nem para quem, ainda hoje me falta o tipo de sensibilidade necessária para escrever algo a um só tempo genuíno e genérico. No entanto, quando chegou a hora de receber o bilhete de quem havia sorteado meu nome, fui surpreendido. Regina tirou meu nome e me entregou uma mensagem curta num papel esverdeado. Eu não conhecia Regina mais do que de vista, ela era uma dessas pessoas com as quais convivemos mas com quem nunca trocamos mais que uma palavra ou um olhar familiar. Na mensagem Regina lamentava carinhosamente o fato de não havermos nos conhecido, dizendo que eu parecia uma pessoa interessante e me desejava felicidade e outros votos. Bem, dito assim sobriamente a mensagem parece menos afetuosa do que era, mas a verdade é que eu estava preparado pra tudo, menos pr’aquilo. Nós só estamos preparados para os perigos que conhecemos, os riscos e experiências inéditas nos pegam desprevenidos. A mensagem de Regina desmontou minhas barreiras de proteção, me desarmou, e eu senti meus olhos marejarem. É bem verdade que a hostilidade masculina era mais uma estratégia de sobrevivência que uma característica genuína. De todo modo, aquela expressão autêntica de carinho, vinda de alguém com quem eu mal tinha trocado uma palavra, me pegou desprevenido, porque eu simplesmente não esperava. O que nós esperamos dos outros?

As lições que aprendemos quando somos jovens e devemos imitar o comportamento das pessoas mais velhas ou dos modelos que convém repetir moldam aquilo que esperamos dos outros. As experiências e visões de mundo das figuras imitadas involuntariamente dão forma a nossa própria visão das outras pessoas e das coisas que devemos esperadas delas. Se não desenvolvemos alguma autonomia, isto é, a capacidade de julgar e refletir segundo nossas próprias experiências tendemos a não conseguir enxergar mais do que aquilo que fomos treinados a ver. Pouco a pouco a máscara forjada para lidar com o mundo se confunde com nosso próprio ser, de sorte já não podemos distinguir quem nós somos daquilo que nos tornamos, daquilo que é feito de nós. Quando Regina me ensinou essa lição sobre carinho e consideração, outras lições ficaram claras para mim. Aprendi também, retrospectivamente, o que me havia ensinado aqueles dois últimos anos no Colégio Ypiranga. Não esperava mais que desapontamento e, secretamente, me envergonhava ter que passar meus dois últimos anos do ensino secundário numa escola pública. No Brasil a gente aprende desde cedo a ter vergonha de ser pobre, de ter dificuldades financeiras, (como se fossemos culpados por isso) e eu não era diferente de ninguém, especialmente tendo disfrutado a duras penas das vantagens do ensino particular. Mas a verdade é que eu havia me sentido bem nesses dois anos, ou melhor, havia me sentido menos desajustado, pois as dificuldades que todos ali enfrentavam eram semelhantes às minhas. E, apesar disso, não havia amargura nem animosidade entre nós, ao contrário, o carinho e a abertura que Regina havia registrado no bilhete eram a regra. Naqueles dois anos aprendi que as nossas dificuldades comuns determinavam também um modo diferente de enxergar a vida, digo, diferente daquele modo que ia se sedimentando enquanto eu havia estudado em colégios particulares. Às vezes me parece que é quase natural, se estamos em determinado contexto ou situação, enxergar o mundo exclusivamente segundo os parâmetros que ali circulam. Mesmo que nunca tenha sido rico e nem mesmo classe média em sentido estrito (sempre estive ali no espectro da classe media baixa, cuja tradução ampla e literal deve ser pobre), inevitavelmente desejava e via o mundo segundo os parâmetros de meus amigos do colégio particular. Quando comecei estudar no colégio público e logo depois a trabalhar, senti então que aqueles não eram os únicos modos de ser e os únicos parâmetros do que querer. Vi o que havia de estreito naquele mundo de classe média do qual fiz parte até ir ao Ypiranga. O que não significa, é preciso sublinhar, que essa circunstância determinasse que as pessoas ali fossem estreitas —  de forma alguma. Tive bons amigos e aprendi também valiosas lições enquanto estivesse em colégio particulares, mas é que a circunstância favorecia um encastelamento que não havia no Ypiranga. Ali nós conhecíamos por familiaridade toda a crueza da vida, não havia postergações nem adornos, de maneira que entre nós havia algo que poderíamos chamar de solidariedade, ou algo do gênero — naturalmente não havia porque existir algo assim num colégio particular, onde os desafios e problemas eram outros.

As coisas foram se assentando em minha cabeça pouco a pouco, um entendimento ainda precariamente articulado de tudo isso e, no último dia, aquele em eu teria que voltar ao colégio para saber o resultado final, voltei com uma tristeza transbordante. Já não havia ninguém no colégio, as pessoas passavam a consultar o resultado no horário que lhes convinha, de sorte que não havia encontros. Peguei meu resultado e voltei pra estação da Lapa choroso, envergonhado pelos olhos vermelhos, evitando qualquer olhar. Apesar desse luto, da tendência juvenil à melancolia, ao menos estava feliz, agora posso dizer, por ter passado aqueles dois anos no Ypiranga e ter sido capaz de aprender as lições que estavam ali para serem aprendidas. Amigos e professores me ensinaram coisas que são parte de mim, que determinaram parte do que sou, e apesar da tendência a me envergonhar sempre que é preciso falar de algo como carinho, ternura ou respeito — pelo que parece haver de bobo ou ingênuo em tudo isso —, essa tendência é hoje deliberadamente combatida pelo meu esforço de transpor barreiras fixadas pelo mero hábito e para enfatizar o quanto aquilo que esperamos do Outro é determinado por certas circunstâncias, pela força do mero condicionamento ou pela influência daqueles que nós imitamos (consciente ou inconscientemente). Numa sociedade perigosamente atomizada, na qual o culto ao ego é um lugar comum, a ternura pode ser um componente importante para determinar uma atitude diferente diante de pessoas que não fazem parte do nosso mundo. E talvez seja esse um dos catalisadores de uma transformação que necessitamos.

PS. Lembrei desse episódio depois de ler uma entrevista de Vitor Heringer (escritor morto recentemente e que eu não conhecia) na qual ele se declarava corajosamente a favor da ternura e do afeto. Não tenha dúvida de que é preciso coragem para assumir posições como essa.

Viagens de ônibus e banhos de mar

É lugar-comum dizer que os europeus experimentam o clima e a natureza de uma maneira muito particular. E é natural que seja assim. Quando o sol sai, eles se esticam em qualquer lugar por onde se estendam seus raios e é verdadeiramente uma benção. Pensando nisso, esses dias lembrei o quanto nós mesmos às vezes não damos conta da nossa relação com o mundo natural. (Pra não deixar de falar de Wittgenstein, como convém, não posso esquecer quantas vezes ele afirmou que o é mais importante em geral escapa à nossa percepção justamente porque está diante dos nossos olhos o tempo inteiro). Há muito tempo eu fiz cursinho pré-vestibular num curso no Relógio de São Pedro. E à noite. As aulas terminavam mais de 22h e eu tinha que ir à estação da Lapa pra voltar pra casa. Não raras vezes o ônibus demorava mais de uma hora pra chegar. Não havia smartphones, apenas as baratas e ratos da estação da Lapa e eventualmente algum providencial livro emprestado na biblioteca. De resto, sobravam somente o tédio e a monotonia com as quais qualquer passageiro de ônibus de Salvador estava acostumado. Mas não era só isso. A verdade é que apesar dessa espera rotineira, cansativa e da qual naturalmente eu me queixava, havia algo mais. Algo que, depois de tanto tempo, eu posso dizer: foi o que ficou. Vir da Lapa até a Boca do Rio, de noite, numa Salvador anterior à lamentável explosão de crescimento dos carros (pré-2007) era uma experiência diária de prazer e deslumbramento. O ônibus descia a Avenida Centenário e a partir do Shopping Barra vinha todo o percurso pela orla. Não havia engarrafamentos, nem muitos passageiros. Não apenas porque eram bons e saudosos tempos, mas também pelo horário. Às vezes circulávamos pra lá das 23h. Eu elegia o melhor assento — na janela, claro — e passava a viagem inteira sendo bombardeado pela brisa da orla acelerada pelo movimento do ônibus. Eu lhes digo isso como alguém que sabe, hoje, mais do que nunca, o prazer que pode ser fruir de uma simples nesga de sol. E eram assim todos os dias. O aburrimiento (como dizem os espanhóis: me veio na cabeça assim e eu deixo assim) das aulas, o cansaço da espera e do dia eram simplesmente apagados por aquele cheiro do mar que invadia meu peito com a violência do vento que corria forte, porque o motorista andava rápido pelas ruas vazias. O vento não era frio, tampouco era quente. Nenhuma das duas palavras encaixa. Ele era apenas agradável, reconfortante e tranquilizador. Sabe-se lá quantos pensamentos loucos passaram na minha cabeça nesse trajeto. Quantos planos, quantas ideias e aspirações. O caso é que ali, sentado na janela do ônibus que vinha até a Boca do Rio eu me perdia em pensamentos embalado deliciosamente por aquela temperatura agradável e por aquele vento quase familiar.

Pensando nisso eu lembrei também de algo similar. Da nossa (ou da minha, se for o caso) relação com o mar. Bem, a universalidade das nossas pretensões (políticas, sociais, racionais) muito frequentemente apaga a constelação de diferenças que existem mesmo entre pessoas imensamente afins. Digo isso porque a nossa relação com a natureza marca um universo inteiro de experiências e relações que muita gente em outras partes do mundo não conhece ou não entende. Eu mesmo, durante bons anos (vá lá, talvez meses, a essa altura nada é preciso na minha memória), tive o costume de ir andar ou correr na praia. Ora pela manhã ou início da tarde, ora pela noite. E lembro que, às vezes, quando o dia estava muito quente, andar, correr ou se exercitar na praia e em seguida tomar um banho no mar era uma experiência ressignificadora. Eu lhes digo: eu me sentia outra pessoa, com outra disposição. É claro que o sol é a fonte principal de vitamina D — e a ausência dela no organismo pode causar indisposição até psicológica, mas não se trata de encontrar explicações. O fato é que aquele banho que cortava um calor forte, mas perfeitamente suportável quando se gozava do privilégio de estar perto do mar e poder frequentá-lo me tornava outra pessoa. Do mesmo modo eu me sentia quando, anos depois, morando já no Garcia, nós íamos ao final da tarde tomar banho na água quente no Porto da Barra. A água quente, o sol se pondo — eu até escrevi sobre o melhor evento que eu já presenciei em Salvador, lá no Porto, o Espicha Verão — são elementos e testemunhas de que a natureza, para quem não se fecha nos artifícios do concreto, tem papel formativo na cabeça das pessoas. Ainda que só hoje eu possa dizer, reconhecer e expressar a dimensão dessas experiências em minha vida, dar-lhes o tamanho devido, já então elas tinham intuitivamente toda a importância que agora eu comunico. As viagens de ônibus e os banhos de mar me ensinaram mais do que a maioria dos livros que eu tive que ler. É incrível a quantidade de coisas que a gente pode aprender longe das fontes oficiais de aprendizado, quando estamos prestando atenção.

PS. Escrevi pelo menos mais dois outros posts sobre viagens de ônibus. Um perfeitamente legível e até recomendável, e outro que pode ser lido depois de um esforço para superar os primeiros parágrafos, mas que talvez tenha suas compensações.

A dialética eurística de Schopenhauer

Schopenhauer escreveu uma dialética eurística, ou melhor, deixou inacabado esse projeto. Escreveu mas não o publicou por razões incertas. A arte de ter razão compila 38 estratagemas através dos quais se pode obter o assentimento do público ou do interlocutor sem ter razão. O Wikipedia cataloga e ilustra os artifícios.

Num artigo sobre o livro, intitulado O novíssimo Organon: a lógica e a dialética em Schopenhauer, Jarleen Salviano menciona uma citação bastante curiosa de uma obra de Oliver Goldsmith, O vigário de Wakefield, empregada por Schopenhauer para ilustrar o uso do estratagema 36 (discurso incompreensível). No fragmento abaixo, um Squire (membro da pequena aristocracia rural) tenta convencer Moses de que “mais vale uma bela jovem do que todo o clero do mundo”:

— Antes de tudo, você quer abordar o assunto analogicamente ou dialogicamente?— Acho que se deve abordá-lo racionalmente, respondeu Moses, feliz por lhe permitirem discutir.— Muito bem, disse o Squire, primeiro as primeiras coisas. Espero que você não negue que tudo aqui que é, é. Se você não concede isto logo de início, não posso prosseguir.— Acho que posso concedê-lo, para meu proveito.— Espero, retorquiu o outro, que você concorde também que uma parte é menor que o todo.— Concedo isso também, disse Moses. É coisa razoável.— Espero, disse o Squire, que você não negue que três ângulos de um triângulo sejam iguais a dois ângulos retos.— Nada pode ser mais certo, respondeu o outro, e olhou em torno com seu habitual ar de importância.— Muito bem, disse o Squire, falando muito rápido — as premissas tendo sido assim colocadas, prossigo, fazendo observar que a concatenação das auto-existências, procedendo numa duplicada razão recíproca, naturalmente produz um dialogismo problemático, que em certa medida prova que a essência da espiritualidade pode ser referida ao segundo predicável.— Pare! Pare! gritou o outro — Eu nego isso. Você pensa que posso me submeter assim docilmente a essas doutrinas heterodoxas?— Que?, replicou o Squire, como tomado de paixão. — Não se submeter? Responda-me a uma questão direta: Você acha que Aristóteles tinha razão ao dizer que os relativos estão relacionados?— Sem dúvida, replicou o outro.— Se é assim, então responda-me diretamente: Você julga a investigação analítica da primeira parte do meu entimema deficiente secundum quoad ou quoad minus? E dê-me suas razões, digo, diretamente!— Eu protesto! gritou Moses! Não compreendo direito a força do seu raciocínio, mas, se ele for reduzido a uma proposição simples, poderei ter uma resposta.— Oh, meu senhor!, respondeu o Squire. — sou seu humilde servidor, mas o senhor pretende que eu lhe forneça a argumentação e também a inteligência. Não, senhor; isso, eu protesto, é demais pra mim. Isto efetivamente despertou o riso contra o pobre Moses.

(Um parêntese: Schopenhauer usa o termo dialética em sentido outro que o de Aristóteles, por isso a expressão dialética eurística. Para Aristóteles dialética e eurística designam coisas diferentes. A dialética, embora seja diferente da lógica, busca o mesmo que ela: a verdade.)

Fábula infantil

Minha namorada contou o caso testemunhado enquanto ela esperava na fila de uma loja de departamento. Dois meninos brincava até que um deles, vestido com a camisa do Vitória, ouviu do outro:

— Eu sou Bahia, disse constrangido um dos meninos.
— Eu sou Vitória, respondeu o outro, igualmente incomodado.
Pensaram um pouco e disso seguiu-se o seguinte:
— Mas eu sou Brasil! exultou o primeiro.
— Eu também! respondeu eufórico seu colega.
E voltaram a brincar tranquilos.

Nós não deveríamos nunca abandonar esse espírito infantil que nos faz buscar as semelhanças apesar das diferenças e que legitima a convivência harmônica contra todas as ficções que engendram obstáculos a partir das diferenças.