Um encontro inesperado e Before Sunset

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É um triunfo para quem vive às turras com a memória recordar do que se passou há tempos. Lembrei um caso acontecido há muitos anos enquanto assistia a um filme que eu gosto muito, Before Sunset (Antes do pôr-do-sol, é o título em português).

O acontecido não inspira propriamente orgulho; no contexto das coisas que lhe dizem respeito, o que eu preciso dizer é que para alguns eu sofro de uma lerdeza setorizada: sou dos últimos a perceber que uma mulher me dá mole e custo a notar oportunidades. Sim, os anos mitigaram tais características, mas devo vergonhosamente admitir que alguns resquícios perseveram. Bem, vocês entenderão. O fato aconteceu há 10 anos ou mais, era Carnaval ou, salvo engano, Farol Folia. Eu e um grupo de amigos não exatamente filiados à facção dos carnavalescos e admiradores da música baiana estávamos ali corrompidos pela possibilidade de beber irresponsavelmente e, sobretudo, por alguns rabos de saia. E daí vocês sabem: a presença do carnaval dispara em todo folião o registro de um contador que anota as vezes em que se conseguiu vencer a resistência de alguma criatura incauta e lhe roubar um beijo. Pois bem, a madrugada já ia alta e nós estavamos prostrados pelo resultado medíocre da empreitada: de um grupo de quatro ou cinco, apenas eu e um outro amigo havíamos conseguido pontuar e estávamos há algum tempo estagnados num vergonhoso 1 a 1. Resolvemos então descansar num trecho menos movimentado do circuito, ao final do mundialmente conhecido “Beco do Caesar Towers” (que nem é mais do Caesar Towers, a propósito).

Nunca fui ali durante o dia, mas com frequência costumávamos ir descansar naquela região enquanto durava o carnaval. Assim, chegamos lá e, com a naturalidade dos bêbados, nos espojamos pela calçada sem cerimônia. Enquanto meus amigos conversavam, eu notei uma garota sentada à esquerda de onde eu estava. Ao lado dela, um candidato à extrema unção despejava na rua o caldo malcheiroso que lhe saia das vísceras. Entre a solicitude e a má intenção espontânea, eu encetei uma conversa sobre os efeitos benéficos da glicose para um sujeito naquelas condições. Ela disse que ele já havia comido chocolates e me contou que trabalhava com enfermagem ou coisa do gênero. Eu não tenho pudor em criar imagens antecipadas sobre as pessoas — não acredito que seja possível viver sem prejuízos (sic) — mas as descarto sem embaraço diante de qualquer indício contrário. Por alguma razão minha imagem inicial dessa garota era pouco favorável, não sei se pelo seu modo falar ou pela circunstância em que nos conhecemos. Não lembro. O caso é que desse pretexto, começamos uma conversa. Para minha surpresa a coisa foi caminhando favoravelmente. Em pouco tempo nos sentíamos à vontade para comentar assuntos relativos a diferenças com os nossos pais, futuro, estudos, planos, crenças. Enfim, num espaço de algumas horas, sentados na calçada, em pleno carnaval, a imagem inicial se desfez e foi substituída por uma estranha familiaridade que nos credenciava a fazer confissões e a conversar sobre questões antes restritas aos mais íntimos. A essa altura estávamos bem próximos, um ao lado do outro, com os pés voltados para a pista e sentados na calçada. Segundo a cartilha masculina aquela era uma oportunidade única. A proximidade física e “espiritual” oferecia uma ocasião singular. Talvez seja essa a razão do meu desconforto em falar sobre o caso. Mas é provável que as mulheres condenem meus pensamentos, “como é possível pensar as coisas assim tão mecanicamente”, diriam elas. O fato é que eu estava ali numa espécie de torpor. Se meus predicados pouco ajudavam, a circunstância inesperada acabou por afastar momentaneamente qualquer pensamento que não fosse relativo à conversa que desenvolvíamos de forma tão surpreendente. Foi quando ela disse que precisava ir embora. Aí sim eu lamentei minha letargia. De caráter forte e personalidade intempestiva, em pouco tempo ela acordou o defunto ao seu lado e disse que estava hospedada na casa de parentes ali perto. Em seguida nos despedimos laconicamente e ela foi embora sem ouvir protesto algum. Lastimo até hoje não ter pedido ao menos seu telefone. Meus amigos, é claro, seguindo a cartilha — e não sem alguma razão — fizeram zombarias da minha inoperância. Eu só me ressenti de ter perdido a oportunidade de conhecer melhor alguém que em tão pouco tempo me pareceu tão familiar. Talvez, eu penso hoje, aquele temperamento intempestivo ao final não fosse outra coisa além da impaciência pelo meu animus arrastandi. Mas talvez não fosse isso.

Essa foi a lembrança que voltou durante o filme. O que há de comum entre as duas coisas é aquilo que marca o caráter terapêutico do cinema e da literatura e que provoca algum atrativo. É o traço riscado sob um acontecimento singular. A ênfase, o recorte preciso que destaca dos escombros do cotidiano o inesperado. Curioso que as pessoas esperem ansiosamente pelo inesperado. Não me levem a mal, mas é engraçado que o caráter burocrático e repetitivo da vida tenha sobrecarregado o espaço amoroso de expectativas de redenção. Em outros áreas também se anseia pelo inesperado, mas o amor é seu terreno privilegiado. Talvez pela sensação comum de que por ali não reina nenhuma regra. A anarquia geral do amor faz os amantes (e românticos) consagrarem ao acaso a felicidade que buscam. Daí o encanto que filmes como Before Sunset produzem. Filmes que celebram o encontro inteiramente casual entre pessoas que se enlaçam por elos invisíveis, que narram o sucesso numa empresa incontrolada por completo. De algum modo esse inesperado nos nivela na condição de meros expectadores, como se de alguma forma tudo o que restasse às pessoas fosse rezar para um dia, quem sabe, sentar ao lado de alguém com quem pudessem conversar sem reservas durantes horas, dias a fio. Andava descrente até ter novamente assistido o filme.


Notável que tenhamos atingido a condição ambígua de ter quase reduzido o que há de mais próprio à vida ao espaço das relações amorosas. Mais interessante ainda é que tenhamos produzido, já dentro do quadro controlado e organizado das coisas humanas, os meios pelos quais restituímos o lugar do selvagem, do inesperado, do inapreensível. Mas a essa altura eu já não espero estar sendo compreendido.

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