A gente também se fortalece

A gente também se fortalece.
A gente dá energia uns aos outros.
A gente encoraja, a gente nutre.

É difícil acreditar nesse conjunto de proposições. Quem pode olhar o mundo e dizer que nós nos fortalecemos, dizer que isso é verdade? Acho facilmente defensável a ideia contrária, de que nos enfraquecemos. Acho facilmente defensável a ideia de que nos apequenamos, nos humilhamos, amendrontamos uns aos outros. Somos um peso, um fardo uns pros outros. Nós nos enfraquecemos! — eu diria, definitivamente. (Qualquer pessoa que espere sempre o pior do ser humano tem a seu favor fartas razões.) No entanto, não é como se a constatação do fato de que nos enfraquecemos impedisse que a gente também pudesse se fortalecer. Temos também essa capacidade, ela só depende da atitude de cada um. Mas como podemos nos fortalecer? Há muitos modos de nos fortalecermos, eu falo aqui sobre apenas um desses modos, a hospitalidade.

A primeira vez que estive na Galícia nós chegamos em Marin quase onze horas da noite. Estávamos mortos de fome depois de 6h viajando de carro. Por sorte encontramos um mercadinho que fazia às vezes de bar, lá dentro havia o suficiente para gente preparar um jantar rápido. Entramos eu e Jana e topamos com um camarada careca que trabalhava lá, falando num sotaque que até então eu não conhecia. Parecia muito um amigo argentino que temos em Madrid e eu perguntei sem pensar: “você é argentino?” Um milésimo de segundo depois me dei conta de que não seria absurdo imaginar que alguém pudesse tomar essa pergunta como uma provocação. Eu confesso que sou uma pessoa demasiadamente maldosa, mas não gasto minhas palavras, o verbo que me foi soprado pelo próprio Deus, usando identidades nacionais como formas veladas de ofensa e provocação. Menos ainda a amada identidade argentina, à qual sinto tanto dever. (Dever não é bem a palavra, mas vamos ficar com ela de momento). Por sorte ele tampouco tomou minha pergunta como signo de outra coisa que não a mera curiosidade. Conversamos um pouco, ele foi muito gentil, nos falou sobre alguns produtos e, ao final, compramos uns bonitos dentes de alho e um chorizo galego. Nos despedimos e enquanto eu caminhava em direção à saída vi um queijo que parecia muito o queijo coalho, que comemos na Bahia — e eu morrendo de vontade de comer um queijo coalho. Perguntei a ele que queijo era aquele e expliquei a razão da minha pergunta. Depois de saber que não era o que eu esperava, me despedi mais uma vez e ele pediu que eu esperasse. Entrou por uma porta e logo voltou com um pedaço de papel alumínio, cortou um naco generoso do queijo e me deu. Eu fiquei embasbacado, agradeci como pude, me esforçando por demonstrar meu apreço pela sua ação, mas estava meio sem graça.

Uma pessoa não pode ser hospitaleira se praticou a hospitalidade apenas uma única vez na vida, como diria o velho Wittgenstein:

Seguir uma regra, fazer uma comunicação, dar uma ordem, jogar uma partida de xadrez são hábitos (costumes, instituições)

Wittgenstein, investigações filosóficas § 199

O que faz a hospitalidade é o hábito de acolher calorosamente. É certo que esse gesto foi apenas um entre tantos que certamente existiram no passado e existirão no futuro. Para esse bom camarada, não havia ali nada que fosse digno de ficar na memória, era apenas um dia qualquer da sua vida, como os outros dias. (Ele seria, nesse dia, quem ele sentia que devia ser todos os dias. Se ele fosse hospitaleiro como foi conosco, isso significa que boa parte do seu dia seria preenchido com essa atitude. Ele era moldado pela hospitalidade. O hábito do cachimbo deixa a boca torta. A gente também pode ser moldado pelo melhor. O cachimbo é apenas um instrumento que ilustra a força do hábito na formação intelectual humana.) Mas não era disso que eu estava falando, eu tava falando de como aquele gesto era para ele tão natural. Eu, por outro lado, naquele momento, senti como se fosse plantada uma semente no meu coração. Na certa porque eu sou ridículo e piegas — é verdade! — mas isso não tira a força simbólica do fato. Eu entendi a força da ideia, da hospitalidade. Da ideia não! — da prática da hospitalidade. Entendi o que ela tem de caloroso e justo, o que ela tem de forte. A hospitalidade é uma força ancestral que nos atravessa, que nos permite que nos reconheçamos uns nos outros. Que vejamos nossos longos, longuíssimos laços. Não dá pra esquecer o que disse Mandela sobre Ubuntu:

Talvez nunca pudesse reconhecer a força da hospitalidade se não tivesse me criado na cidade negra da Bahia e se essa semente não tivesse encontrado um solo em que medrar. Não tô dizendo que não existe em São Paulo pessoas hospitaleiras, eu sempre tive a sorte de encontrar em minha terra pessoas muito queridas. Seres humanos que são o melhor da nossa raça, se é que isso ainda significa alguma coisa. Tem significado muito pouco! Mas é que na Bahia as pessoas podem ser muito receptivas. Há muito de alegoria, muito de broma, mas há também muito de verdade na fantasia. A hospitalidade é uma tendência à amizade, ao entendimento de uma pluralidade, uma pluralidade que não se reduz a nenhuma identidade e que não pode ser instrumentalizada por o que ela tem de coeso, pela sua unidade. A hospitalidade é esse embaralhamento constante pela influência da diversidade, o saudável apagamento da identidade pela força da miscigenação. (É nesse sentido a anti-pureza.) A estabilidade da identidade, que nunca pode ser apagada, dá lugar a uma instabilidade constante (que não se estabiliza) que pode ser usada para compreender o diferente. Que pode ser usada para se tornar o diferente, pra mudar de pele. A estabilidade da identidade gera inevitavelmente uma resistência à mudança, dá lugar ao narcisismo das pequenas diferenças, mas sem a estabilidade da identidade nós tendemos à loucura — ao afastamento, à ruptura com a comunidade de acordos entre seres humanos. A tendência à amizade é a uma das melhores disposições humanas, ela é imensamente poderosa e nos fortalece. Na Bahia, a qualquer instante a gente pode conhecer novos amigos, ou virar instanteamente melhor amigo de alguém.

Eu acho que nós tendemos a acreditar que somente a dor se fixa na memória, como se tivéssemos sempre que nos valer disso. E por essa razão, hoje, parece tão importante lembrar do que nos fortalece e nutre.

Talvez nada exista de mais terrível e inquietante na pré-história do homem do que a sua mnemotécnica. “Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória” — eis um axioma da mais antiga (e infelizmente mais duradoura) psicologia da terra.

Nietzsche, Genealogia da moral §3

Como se as coisas só pudessem ser fixadas em nós por meio do medo e do fogo e só tivéssemos a nossa disposição uma pedagogia da dor. Também podemos integrar, absorver e aprender com o amor e a amizade, com a generosidade, com a hospitalidade, embora predomine o medo de parecer ingênuo ao acreditar nessas coisas. Acreditar que podemos nos fortalecer, dado que parece tão fácil constatar que nos enfraquecemos, é o tipo de mentalidade que condenamos justo porque aparentemente não oferece nenhum modelo prático de ação (política e ética). Mas como nos lembrou Mandela, como nos lembra Carlos Taibo, não há somente romantismo ingênuo em acreditar que podemos agir de outra maneira em relação aos outros. Essa atitude é também parte da nossa história, da história de tantos povos tão diferentes espalhados pelo mundo, e ela não pressupõe a crença tola na prevalência da bondade, mas aceita as recônditas reentrâncias da alma humana sem ilusão. Aceita porque reconhece em si mesmo as sombras dessa alma.

Eu queria saber escrever mais sobre a hospitalidade e sobre outros modos de fortalecer, já escrevi algumas coisas sobre a amizade e o amor, mas talvez convenha ler sobre a hospitalidade alguém que eu nunca li, Jacques Derrida (é uma pena que o texto esteja fechado, ele me inspirou a vontade de ler o que Derrida escreveu sobre hospitalidade). Um dia talvez eu possa voltar a esse tema com algo mais substancial a dizer, ele me merece nossa atenção.

Ter a alma intacta

You got your soul intact, oh, and that’s a fact

A inferioridade atribuída aos negros ao longo de séculos tem um efeito nefasto sobre a auto-estima e o valor que as pessoas atribuem a si mesmas. Para remediar esse efeito a cultura negra criou sabiamente meios de estimular o amor dos negros por si mesmos e, no caso particular da cultura norte-americana, esse esforço deu lugar a uma tradição que chega até os nossos dias. A tradição de lembrar do próprio valor e de não deixar que preconceitos impeçam alguém de shine your light on the world. Espíritos iluminados com o de Aretha Franklin, ou Nina Simone, cantam e estimulam jovens a enfrentar com coragem o desafio de encontrar seu próprio valor numa sociedade que insiste em repetir, nas mais variadas circunstâncias, que eles não tem qualquer valor. Há poucos desafios mais difíceis do que o de acreditar no seu próprio valor quando tudo ao seu redor parece afirmar o contrário.

Shine Your Light on the World: Sonic Visionaries in African American Music

É comovente a tentativa de fazer as pessoas se emanciparem de um dos efeitos mais profundamente arraigados da escravidão, a servidão mental aos valores e ideias dos senhores de escravos. É verdade que a escravidão mental de que fala Bob Marley não é mera consequência da escravidão, mas sintoma do desprestígio da reflexão e do pensamento, ideias precursoras de muito do que há de mais valioso na cultura ocidental. Mas isso é especialmente difícil para aqueles que são lembrados continuamente de que devem permanecer nos seus lugares e de não podem ansiar nada além do que é adequado e condizente com sua condição inferior.

A disposição para infundir coragem e ânimo (lembremos que ânimo vem de anima) nos outros é marca dos espíritos fortes, daqueles que não se sentem ameaçados pela força e inteligência dos outros. Dos que não se empobrecem ao conceder, dos que tem uma outra ideia de força. É preciso ter a alma intacta para emancipar-se das próprias dificuldades e da tendência ego-centralizadora da mentalidade capitalista e se dispor a ajudar os outros a encontrar sua própria força.

A mais bonita cena de BlacKkKlansman, de Spike Lee, é quando Kwame Ture se dirige aos estudantes universitários num discurso contundente e cheio de espírito. Um novo pensamento exige que assumamos a tarefa de determinar novas regras e novos valores, e de suportar com determinação a resistência e a hostilidade que toda novidade deve enfrentar para provar sua força. E o final é apoteótico: all power to all the people.

Servir e ser servido

Jean-Baptiste Debret, Um jantar brasileiro

A sociedade brasileira é profunda e violentamente desigual. Contudo, tanto ricos quanto pobres participam dos jogos simbólicos de ostentação e status. Pode parecer surpreendente que os pobres também se envolvam nesses jogos que ratificam valores e medidas que os subestimam, mas é difícil escapar a esse destino. Nos EUA, onde a cultura africana foi dizimada pela crueldade puritana, fenômenos semelhantes ilustram o modo como certas ideias se impõem quase inevitavelmente à mentalidade daqueles que por séculos foram submetidos a toda sorte de constrangimento e coerção. O passing (as white) é um desses fenômenos no qual constatamos dolorosamente o efeito nefasto da escravidão. Negros e mestiços espontaneamente se fazem passar por brancos para usufruir dos seus privilégios, não poucas vezes às custas da proximidade com seus familiares. Michael Jackson talvez seja o maior símbolo desse fenômeno, o triste e trágico paroxismo das consequências subjetivas da escravidão.

No Brasil, em bares, restaurantes, camarotes e espaços VIP, pessoas que anseiam fervorosamente distinguir-se e ser reconhecidas como superiores — como elite — esperam ser servidas com presteza e alegria, como se atender seus caprichos vulgares fosse um privilégio. A soi-disant elite brasileira é obtusa a ponto de nem sequer conseguir se emancipar dos padrões coloniais, se restringindo a macaquear as pretensões de seus ancestrais. No entanto, a profundidade da obra da escravidão é suficiente para contaminar toda a sociedade, isto é, para fazer com que seus anseios sejam também padrões aspirados por grande parte da população. Daí que circula por toda a sociedade esse desejo de ser servido, como se ele funcionasse como uma espécie de selo do valor próprio. Dois tipos bem marcados se derivam dessa contaminação, o boçal que nem mesmo se digna a olhar as pessoas que o servem nos estabelecimentos que frequenta, como se temesse se contaminar com a suposta inferioridade alheia, e o próprio servente, dócil e servil, apequenado pela crença repetidamente imposta de sua própria inferioridade. Não é à toa que a pergunta “Sabe com quem você está falando?” é tão frequentemente repetida em nosso país.

O atendimento em Salvador é um dos mais sofríveis do país e, embora isso certamente provoque incômodo, não deixa também de despertar, pelo menos em mim, alguma simpatia. Ninguém é obrigado a mostrar-se satisfeito ganhando uma porcaria e sendo sistematicamente desrespeitado por aqueles a quem serve. Essa rebeldia é uma amostra de dignidade que me satisfaz. Em São Paulo, por outro lado, tenho a frequente impressão de que as pessoas estão de tal modo acostumadas a serem importunadas por boçais que parece reinar um servilismo desconcertante e preventivamente calculado. Como se elas se colocassem deliberadamente numa posição servil apenas para não ter que adicionar à carga de seus infortúnios diários o fardo de ter que lidar com alguém incomodado porque elas se apresentam como iguais. A verdade é que a igualdade e a dignidade no Brasil ofendem os que se creem no direito de sentir-se superiores a todo mundo. E muita gente joga esse jogo.

A prevalência do fetiche colonial pelo serviçalismo impede que possamos desfrutar do prazer de servir. Servir não é apenas um jogo social de gente pedante e deslumbrada, é também um gesto de cuidado e amor. A disposição a prestar atenção à necessidade dos outros e a satisfazê-la pode dar lugar a uma nova dinâmica intersubjetiva. É um efeito cascata, a inclinação a sair de si e prestar atenção aos outros não raras vezes provoca efeitos inesperados e, pouco a pouco, o sentimento provocado por tais contingências nos parece mais interessante e promissor que a garantida satisfação dos nossos próprios anseios. Não é isso o que nos ensina o amor e a amizade? Aprendemos com eles que a satisfação dos outros é também a nossa e, assim, que somos também esses outros que satisfazemos. É quando a alegria de servir se enraiza profundamente em nós que certas transformações tem lugar e a mim me parece que parte significativa da importância que tantos pensadores atribuem à amizade (Aristóteles e Nietzsche, para ficar em dois figurões) se deve em grande medida às mudanças provocadas por esse sentimento.

A desigualdade, a estúpida adesão aos valores, padrões e heranças coloniais, são fatores que impedem que nossa sociedade se oriente a certas mudanças necessárias. Estes fatores conservam as pessoas separadas, isoladas em seus espaços de estabilidade, evitando assim que a espontaneidade da interação entre pessoas diferentes possa romper e fazer penetrar na bolha que as cerca a semente de uma mudança. Não há dúvida que uma nova atitude diante do servir é imprescindível para que possamos fazer medrar algo diferente no Brasil, mas é difícil deter hábitos e modos de ver sedimentados ao longo de séculos.

PS. A vontade de ser servido como um símbolo de status é uma das expressões da ideia que os fracos e impotentes fazem do poder, de modo semelhante ao comentário de Deleuze sobre uma certa ideia da vontade de potência.

PPS. Mudei o blog do Blogger (da Google, que sucateou o serviço por anos a fio) pro WordPress com um servidor dedicado e por isso o link do feed (RSS) mudou para: https://brausen.com.br/feed/

A amplitude do espectro

O sem sentido do sofrimento é uma das coisas mais difíceis de se aceitar na vida. Por isso é quase inevitável buscar algo que dê sentido à infelicidade e às dificuldades que experimentamos, algo que pareça justificá-las (esse era o lugar da religião pra Nietzsche). Embora essa busca seja quase inevitável, ela soa como trapaça, subterfúgio, artifício e engodo fabricados para que evitemos enfrentar a face mais crua da existência. Mas a verdade é que toda a cultura é um artifício, de modo que parece descabida a censura à fabricação de qualquer artifício em especial. Não temos obrigação de enfrentar a vida de mãos vazias, sem nossos recursos, simbólicos ou de outra sorte (que não deixarão de ser, também, simbólicos).

De qualquer modo, alguns autores parecem oferecer se não uma compensação para o sofrimento, ao menos uma perspectiva na qual as flutuações da vida ganham outro sentido. Nos sentimos tão inevitavelmente compelidos a buscar o prazer e evitar o sofrimento que esquecemos como o próprio sofrimento afeta (a possibilidade de) as experiências de prazer e felicidade. Eu chamo de amplitude do espectro esse efeito recíproco de aspectos opostos. Quanto mais amplo o espectro, mais potencialmente forte é a possibilidade da experiência contrária. Embora eu tenha notado essa ideia pela primeira vez em Nietzsche, encontrei em Jose Luis Sampedro uma expressão que a mi me gusta muchísimo:

Se em algum sentido a vida é absolutamente justa é no fato de que cada homem e mulher só é capaz de gozar até o limite em que é capaz de sofrer… O resultado é uma justiça estranha e incompreensível, porque a vida nunca deixa de produzir sofrimento e, por outro lado, nem sempre oferece gozos. Mas é absolutamente justo que seja assim. Embora não faça mais que sofrer, sem uma só alegria, no mero fato de ter amplitude (talla) o bastante para sofrer assim já está dada a compensação e feita a justiça.

Jose Luis Sampedro, Congresso en Estocolmo
fala do personagem Miguel Espejo

É verdadeiramente difícil aceitar essa estranha forma de justiça, mas faz todo o sentido. Em certa medida Nietzsche já havia apontado para esse efeito quando falou do custo das  sublimes pretensões humanas:

Por que você se assusta? O que acontece para a árvore, acontece também para o homem. Quanto mais deseja elevar-se para as alturas e para a luz, mais vigorosamente enterra suas raízes para baixo, para o horrendo e profundo: para o mal.

Nietzsche, Assim falou Zaratustra

Como tirar proveito dessa amplitude? É difícil responder, mas essa questão deveria estar presente em nossas mentes sempre que consideramos e experimentamos as muitas agruras do sofrimento. Só assim, me parece, podemos vislumbrar o enorme potencial da nossa felicidade.


Mas isso é muito óbvio, embora pareça surpreendente (eu mesmo me surpreendi ao me dar conta disso). Tudo que há de mais vigoroso e vital na cultura brasileira se alimenta dessa sabedoria, entranhada em muitas das nossas expressões artísticas, especialmente na música, claro.

Sinais

Nem todo tema pode ser abordado em filosofia. A filosofia é coisa muito séria para se ocupar com devaneios e quimeras, é muito adulta. A literatura não sofre desses problemas, daí sua superioridade. Absolutamente tudo pode aparecer na literatura de Haruki Murakami, por exemplo. Não há tabus. Sinais é um desses temas sobre os quais eu mesmo hesito em escrever, embora não possa evitar. Tenho mais vergonha de absorver e refletir certos tipos de estreiteza.

Certa feita estávamos eu e minha esposa indo passear no Paseo de la Castellana quando me lembrei de uma história de Jane Eyre (livro de Charlotte Brönte) que havia me impactado muito. Apesar do impacto, não tenho ideia do porque eu lembrei da história nesse momento. A história é a seguinte: em certa passagem do livro, Jane está transtornada por um evento (que não convém mencionar) e decide irrefletidamente fugir da casa onde trabalha, na zona rural do norte da Inglaterra em pleno século XVIII. Ela reune alguns trocados, deixa praticamente todo o dinheiro que havia ganhado e sai de casa disposta a pagar para que alguém a leve o mais longe possível dali. Logo encontra um homem numa carruagem que aceita levá-la até certo ponto, pelos trocados que ela tinha. Nesse lugar, Jane decide buscar algum povoado em que possa procurar emprego, mas não sem antes pernoitar no bosque, pois já se fazia noite. O plano de Jane parece absurdo mesmo no século XXI, imagine então naquela época. Jane acorda na manhã seguinte bem cedo e põe em prática seu plano, encontra um povoado e saí batendo de porta em porta oferecendo seus serviços. Não encontra nenhuma oportunidade. Não apenas não encontra, como enfrenta olhares desconfiados. Cada vez mais exigente, a fome aperta e não lhe restam muitas alternativas, a decisão intempestiva lhe havia colocado numa situação incortonável. Ela vai até uma pequena capela e oferece seus serviços ao pároco, que também os recusa. A esta altura Jane está desesperada, tonta de fome e cansaço. Não lembro precisamente dos detalhes, mas essa situação dramática mexeu comigo. Num último gesto de desespero, já extenuada, Jane decide pedir comida numa casa e é recebida quase com hostilidade pela empregada. Exausta, ela cai desmaiada diante da porta fechada. Não preciso dizer que não é assim que termina a história da personagem principal, mas essa é a história de que eu lembrei enquanto íamos passear.

É certo que eu estava envolvido na trama, sensivelmente apresentada, da órfã Jane Eyre, mas há algo de universal nesse episódio. A literatura resgata e põe diante do nosso espírito aquilo que o Manual de Sobrevivência nos faz esquecer, a fome e os dramas humanos ligados à subsistência e ao desamparo. Era isso o que havia me desconcertado profundamente e me feito relembrar a história naquele instante. O drama de um ser humano a ponto de morrer de fome e fraqueza porque sua condição já não afetava nem interessava a nenhum outro ser humano. As bolhas que nos protegem tratam de nos manter a uma distância segura da realidade contundente de tantas pessoas no mundo. E quando essa realidade insiste em emergir a nossa frente tratamos de ignorá-la como convém, conforme as instruções do Manual. De outro modo, se tomamos nos ombros os fardos dos outros, inevitavelmente sucumbimos sob o peso do mundo. Alguns segundos depois de terminar de contar a história a minha esposa cruzei com um senhor idoso que me estendeu a mão pedindo dinheiro. Eu fiz o que rezava a cartilha, não o ajudei — não o ignorei por completo, fingindo que ele nem sequer existia, como talvez ordenasse o pragmatismo de algum sobrevivente —, mas ignorei seu pedido. Alguns passos depois eu me dei conta do que havia acontecido, aquilo parecia um sinal, e voltei. Um sinal de quê?

Um sinal sempre nos parece um sinal de algo, um significante cujo significado pode ser encontrado em algum lugar. Um acontecimento cujo sentido depende de uma articulação tramada por algo diferente de nós mesmos e cujo entendimento supõe o empenho de decifrar um significado oculto. É insondável tudo que pode estar oculto sob manto da nossa ignorância, a pretensão de explicar cada aspecto da vida é uma desmesura própria ao nosso tempo. Assim, os sinais não são circunstâncias insaturadas que exigem uma explicação e que apontam a um significado transcendente que devemos tentar alcançar com toda a força. São estímulos sem fechamento, oportunidades para refletir e para construir uma atitude diante do que não tem explicação. E um sentido.

O sentido tolo e ingênuo que eu construi quando voltei pra dar um trocado ao senhor que me havia me pedido foi que não queria que Jane Eyre morresse de fome. Eu voltei com o coração mole (que expressão fabulosa é essa, não?). Quando li o livro, era como se eu fosse ela. (Me angustiou profundamente os dramas similares pelos quais passou Philip em A servidão humana, era como se nós dois fossemos um). Eu tenho horror à ideia de soar bobo ou ingênuo, mas pensando bem eu acho que tenho mais medo de me tornar o tipo de pessoa amarga e cínica que se deixa pouco a pouco envenenar pela crença, rememorada em cada circunstância em que os problemas humanos se reapresentam, de que os gestos humanos parecem ter pouco significado em relação à dimensão dos dramas da humanidade. Como se nada adiantasse. Isso nos distancia imensamente uns dos outros. Quantas Jane Eyre morrem todos os dias?

Às vezes eu penso se não ando deixando escapar muitos sinais.

Com quem aprendemos? O que nos ensina?

Os professores são os primeiros que vem a nossa mente quando consideramos a pergunta “com quem aprendemos?”, mas a verdade é aprendemos muito antes que eles façam parte da nossa vida. Aprendemos com nossos pais, irmãos e irmãs, amigas e amigos, namoradas e namorados e assim por diante. Aprender não é necessariamente uma questão sobre quem nos ensina o quê, pois pode ser também uma questão de atitude, um estar atento ao que se pode aprender em determinada situação. Por exemplo, uma criança aprende com a mãe e com o pai porque naturalmente está atenta ao que eles fazem — ela precisa estar atenta.

No Livro do Desassosego, de Fernando Pessoa (ou melhor, de Bernardo Soares), encontrei esse comentário precioso:

Regra é da vida que podemos, e devemos, aprender com toda a gente. Há coisas da seriedade da vida que podemos aprender com charlatães e bandidos, há filosofias que nos ministram os estúpidos, há lições de firmeza e de lei que vêm no acaso e nos que são do acaso. Tudo está em tudo.

É isso, está tudo dito aí. No entanto, não deixamos de sentir algum estranhamento diante desse comentário. Para nós, aprender tem um sentido quase técnico. Isto é, aprender parece se restringir a determinado currículo, parece se limitar a determinados conteúdos ministrados por uma autoridade legitimamente constituída para transmiti-los. Em linhas gerais esse é o modelo de tudo que compreendemos como um aprendizado legítimo. Portanto, talvez o estranhamento venha disso: como pode que alguém nos ensine algo que não sabe? Como é possível que mendigos, charlatães e bandidos possam ser a fonte de qualquer aprendizado?

Em alguma medida, a institucionalização do aprendizado pode embotar a capacidade natural de aprender. A institucionalização do aprendizado consiste no afunilamento do amplo espectro da aprendizagem em direção a instituições de educação (escolas, universidades, etc.) e seus responsáveis (professores, diretores, etc.). Este processo de institucionalização canaliza o aprendizado por certas vias e, naturalmente, desidrata as vias alteranativas, além de atrofiar o próprio olhar que, em outras circunstâncias, estaria mais atento ao que pode aprender. Quanto mais os canais oficiais se articulam à dinâmica da sociedade, menos importante se torna qualquer via não institucional de aprendizado. A crítica de Ivan Illich às escolas (em seu livro, A sociedade sem escolas) se deve a este profundo enraizamento da educação no âmbito da economia. O aprendizado, segundo Illich, se orienta então a partir das necessidades de mercado, de tal sorte que a certificação se transforma numa das principais características de todo o processo educacional. Isto é, o processo de emissão de títulos e diplomas se converte num dos eixos principais de toda dinâmica educacional, pois eles funcionam como critérios e medidas para distintos processos sociais todos orientados, ao fim e ao cabo, a um propósito mercadológico e às engrenagens do processo produtivo. Assim, a educação e o aprendizado se reduzem a dois processos mutuamente relacionados: a formação e a capacitação técnica e a certificação que atesta este dominio técnico segundo a necessidade logística do mercado. Desse modo, a multiplicidade do espectro educacional não diz respeito à variedade dos interesses humanos, mas reflete antes a variedade de conhecimentos aglutinados em disciplinas técnicas e a multiplicidade dos propósitos produtivos. Não por outra razão o modelo de educação aspirado por Illich — se é que podemos caracterizá-lo como modelo — gira em torno da ideia de autonomia, visa desenvolver, para cada indivíduo, o conjunto de capacidades relativas aos seus próprios interesses e aptidões. Trata-se de encontrar a lei interna do aprendizado própria a todo indivíduo e não meramente ajustá-lo a um conjunto já organizado de questões e técnicas. Não é pouco espinhosa a tarefa de criticar os modelos massivos de educação porque logo nos deparamos com uma crítica difícil: como produzir uma educação tão particularizada? A educação em massa, como o próprio processo de produção em massa, tem vantagens em termos operacionais que são difíceis de ser conservadas ou substituídas (e tendemos a querer conservá-las). Mas não me interessa, aqui, debater essa questão, o que importa é ter em vista esse afunilamento próprio à institucionalização, o modo como ela fecha ou, pelo menos, tende a nos fazer ter menos respeito por fontes de aprendizado não mediados pelas vias ou autoridades institucionais.

Minha esposa, que é uma excelente professora, sempre me sugeriu a ideia de que deveríamos dissolver a distinção entre professores e alunos. Senão dissolver ao menos flexibilizá-la, de tal sorte que possamos ver o outro sempre como uma fonte potencial de aprendizado. Às vezes quando nos interessamos honestamente pelo que certas pessoas fazem com cuidado, podemos ser surpreendidos não apenas por uma capacidade inata para ensinar por parte dessas pessoas, como também aparece, pela singularidade da circunstância, esmero e atenção que parecem fundamentais para que qualquer coisa possa ser ensinada. Esses dias estávamos na Galicia e, encantados pela hospitalidade, nos interessamos pela fantástica culinária galega. De repente, diante do nosso fascínio, vimos surgir por todos os lados professores atentos e dedicados a nos ensinar os segredos da culinária galega. É um exemplo trivial mas ilustrativo de como todos podem ser potenciais professores.

Ainda que as pessoas nem sempre se disponham a ensinar o que sabem, a serem professores, o mais fundamental em relação ao aprendizado é que nunca deixemos de ser alunos, isto é, que nunca abandonemos a atitude de alguém que pode potencialmente aprender — com o que quer que seja, com quem quer que seja. É essa uma das lições desse comentário do Livro do Desassossego. A medida que o tempo passa e nos tornamos mais velhos parece natural que o acúmulo de ideias, verdades, certezas, nos torne impermeáveis a qualquer visão alternativa, a qualquer revisão de nossa imagem de mundo. Esse desprendimento tampouco é uma atitude estimulada no modelo curricular das nossas instituições de ensinos, orientadas àquilo que Kuhn denominou como ciência normal. Nenhuma instituição ensina revoluções e transformações de paradigmas. A tendência à confirmação que aparece na base das nossas visões de mundo não é uma deficiência, mas uma característica própria a todos nós, e se devemos mitigar seus efeitos em nome de uma posição mais dialógica com respeito a diferenças é preciso que não nos deixemos encantar pelas autoridades e normas que construímos para lidar com o mundo. Precisamos alimentar e conservar a atitude de alguém que está pronto a aprender e renovar as lentes por meio das quais vê o mundo.

PS. Os cursos universitários que ensinam a ser feliz não parecem justamente uma tentativa de dar um tratamento “técnico” àquilo que não pode ser ensinado como técnica? Àquilo que só pode ser aprendido por cada um à sua maneira. Nesse sentido, eles são sintoma de parte do que falei acima. O velho Freud disse uma vez que não há regra de ouro para a felicidade.. mais uma razão que estejamos sempre atentos, pois nunca sabemos quando, onde ou quem pode nos ensinar a ser feliz.