Por que soa ingênuo falar de amor?

Essa imagem é uma comédia!

Não há quem possa negar a capacidade mobilizadora do ódio, especialmente na triste circunstância em que nos encontramos, cercados por bolsonaristas. No entanto, mesmo entre soi-disant cristãos, falar de amor parece ingênuo, pois é como se estivéssemos convidando alguém a tomar parte do universo dos ursinhos carinhosos. A crítica da ingenuidade é parte fundamental das tarefas dos homens (do patriarcado), pois cabe às princesas o sonho e a fantasia (a utopia). Aos homens cabe ter medo, mas como homens não devem ter medo (pois assim reza a cartilha), esse medo é devidamente mascarado de tal modo que a desconfiança e malícia dos espertos são os únicos elementos que se veem da superfície. Por cierto, outra coisa que nos faz lembrar o bolsonarismo é que há de caricato (e nefasto) na identidade masculina.

O amor de Jesus é, ou deveria ser, um instrumento revolucionário, mas foi devidamente esterilizado pela hipocrisia capitalista e transformado num discurso vazio, completamente isolado das práticas e ações. Não por outra razão os evangélicos são apoiadores de primeira hora de Bolsonaro e são comuns imagens patéticas de pastores em comunhão com um defensor da tortura e do estupro. A parte que mais concretamente concerne ao capitalismo na esterilização do amor diz respeito à sua transformação num produto, num modelo que pode ser convertido em imagem/totem a ser vendido no mercado. O que se vende no mercado capitalista não são apenas produtos, todos sabem disso, mas também ideias, paradigmas, modos de ser e até de amar. Tudo que é replicável, reprodutível, repetível está à venda. Embora o prazer seja o principal produto do mercado subjetivo capitalista, no mercado intersubjetivo o amor reina. O amor romântico é vendido como experiência partilhada de bem-estar, alegria e felicidade, experiência perfeitamente ajustável ao padrão instagramável de visibilidade. Exposto e vendido como produto, nesse amor se repetem padrões fabricados ou absorvidos pelo mercado com a finalidade de fazer com que qualquer pessoa possa reconhecê-lo como inegável manifestação de sucesso, êxito e realização — de tudo que é pública e consensualmente desejável. No mercado, onde estão todos competindo para serem melhores que os outros, a realização do amor romântico é uma meta das mais valiosas, pois dá prestígio e respeitabilidade a quem a alcança, lhe dá poder simbólico.


A expansão dos serviços que a internet a um só tempo escoa e estimula faz com que o papel das empresas como agentes publicitários seja suplementados pelas próprias pessoas. A capacidade de persuasão (quase coerção) que antes parecia restrita às empresas capazes de bancar gordos orçamentos publicitários agora está também ramificado e expandido no trabalho do influencer, que é uma espécie de terceirização da publicidade. E a vontade de influenciar vai diluindo no nosso sangue mais um pouco do veneno da vaidade capitalista, até que pareça seguro afirmar, e que não nos reste dúvida, de que já nenhuma dimensão da vida humana que está livre da lógica mercantil capitalista.

Enquanto eu escrevia, ou melhor, enquanto eu buscava o artigo de Pierre Dardot e Christian Laval (o artigo citado no link anterior), achei por completo acaso um artigo não lido de Edward Bernays chamado The Engineering of Consent, no meu tablet, onde eu lia os artigos pro doutorado. Vai aqui o trecho inicial sem tradução, por pura preguiça (tá aqui uma tradução boa feita por algoritmos):

Freedom of speech and its democratic corollary, a free press, have tacitly expanded our Bill of Rights to include the right of persuasion. This development was an inevitable result of the expansion of the media of free speech and persuasion, defined in other articles in this volume. All these media provide open doors to the public mind. Any one of us through these media may influence the attitudes and actions of our fellow citizens. The tremendous expansion of communications in the United States has given this Nation the world’s most penetrating and effective apparatus for the transmission of ideas.

Edward bernays, The Engineering of Consent (grifo meu)

Edward Bernays foi o personagem sobre quem a BBC fez o documentário The century of Self. Coincidência? Sinais?

Tudo isso me lembra o Cântico Negro, de José Régio, esse com uma vibe anti-influencer:

“Vem por aqui” – dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

José Régio, Cântico negro

O amor, eu já disse aqui uma vez, é uma experiência real e print('singular ' * 10000) de conexão entre seres humanos. O amor romântico em si não tem nada de censurável, nem mesmo sua artificialidade pode ser condenada, o problema é seu agenciamento pelo mercado capitalista, é a sua transformação em algo não singular, mas repetível — e numa meta almejada por um público em torno do qual distintos mercados florescem, como, por exemplo, o mercado turístico.

Para encaixá-lo no modelo de reprodução capitalista, a simplificação aplaina e transforma o amor em algo insosso. As arestas são mascaradas, porque não são comercializáveis. Talvez poucos o comprassem se soubessem dos custos implicados, se conhecessem suas feições reais. Quem não conhece tais feições pode contemplá-las como a arte as apresenta, por exemplo, nessa preciosa cena de Gênio Indomável, ou como elemento fundamental de A chegada. Aliás, A chegada é um filme nietzscheano, ele encena a forma mais bonita do amor, o Amor Fati, o amar todas as coisas como se elas fossem necessárias, o dizer sim! — se transformar em alguém capaz de dizer sim, um Jasagender.

O amor revela o melhor de nós, mas também nos expõe e nos abre à possibilidade de ser vulnerados. E assim o medo predomina, silencioso e ubíquo, mascarado pela exibição contínua da hostilidade (projeção teatral de uma coragem ausente). Sentimos vergonha do medo que sentimos, da ameaça real e concreta que o ser humano representa para outro ser humano (homo homini lupus) e assim nos envergonhamos também de acreditar em outra coisa, pois isso poderia parecer fraqueza. E o maquiamento (edição) das aparências, central para uma sociedade orientada ao espetáculo e dependente do fomento do egoísmo, cala ainda mais fundo a ânsia de manifestar o amor, pois quem teme a vulnerabilidade do amor teme também parecer ridículo aos olhos dos outros. Nesse cenário, a coragem e a abertura necessárias para assumir os riscos de amar e de acreditar no amor alcançam níveis irreais e tornam quase proibitiva sua experiência e sua expressão.

O medo que atravessa a nossa sociedade, como um fantasma, irreal e indizível, não pode ser combatido instrumentalmente, com ferramentas forjadas em bases epistêmicas, pois como eu insisto em dizer todo o medo está sempre justificado. Só a promessa de algo profundamente desejável pode nos fazer encarar os espinhos e os fantasmas que cercam o amor, só a experiência concreta e singular do amor nos faz acreditar naquilo que disso pode vir a ser. A experiência real da conexão entre seres humanos é o único elemento que pode dissipar a bruma de desconfiança que nos cerca.

Recortei esse depoimento duro e precioso sobre diferentes lições do amor do documentário Humans.

Manual de sobrevivência

Às vezes períodos difíceis da nossa vida, desses que a gente atravessa com perturbação e desassossego, desvanecem na memória e no passado quase como se não tivessem existido, enquanto em outros momentos coisas aparentemente incompreensíveis perduram na lembrança. Eu não esqueço quando pulei uma pessoa numa escada rolante na estação da Lapa. Me senti mal por ter feito aquilo, embora soubesse que era a única coisa a se fazer. O que mais eu poderia fazer? Parar e perguntar, “Cara, cê tá bem?”, pra um bêbado adormecido (ou desmaiado) na entrada da escada rolante de um terminal de ônibus? — Que tipo de idiota tem essa atitude? Vai levar pra casa todos os bêbados, malucos, moradores de rua, todas as pessoas perdidas, todas as solitárias, todas as se fingem de forte para dissimular sua dor? Quem você está querendo salvar agindo assim: ele ou você? Ele não era eu, era um outro, um desconhecido.

Em certo ponto da vida, geralmente quando somos crianças, nos apresentam ao Manual de Sobrevivência. Não somos apresentados formalmente, mas pouco a pouco nos damos conta da sua existência. É certo que as crianças tem uma enorme predisposição sádica, mas elas tem também curiosidade e interesse autêntico. Não raras vezes lhes espanta ver pessoas morando na rua, deitadas ou dormindo no chão onde os outros passam. O que lhes dizemos nessas ocasiões quando elas nos perguntam espantadas? Desconversamos, talvez. Como abordar um tema tão complexo com uma criança? Talvez nem mesmo os adultos a quem as crianças perguntam saibam explicar porque aquelas pessoas estão ali. É muito provável — dado a triste circunstância em que se meteu a sociedade brasileira — que seja dito às crianças que se tratam de vagabundos! Muitos se referem desse modo às pessoas que vivem na rua, como se a vida fosse algo muito simples e bastasse seguir uma série bem definida de regras. E aqueles que não fossem capazes de segui-las à risca seriam não apenas os únicos responsáveis pelo seu “fracasso”, mas pessoas desprezíveis e sem valor. Vagabundos! Assim alguns seres humanos se eximem de qualquer responsabilidade pelos outros e estão livres para pensar somente em si mesmos. A culpa é verdadeiramente terrível, mas não deixa de ser incrível o quão longe as pessoas podem ir para esquivar-se de responsabilidades que ninguém lhes atribue, mas que elas sentem como fardo invisível. Temos importado tanto da metrópole norte-americana que a distinção entre winners and losers já não parece uma ideia fora de lugar, mas algo que está em sintonia com o que há de pior em nós.

O caso é que as crianças são pouco a pouco desencorajadas a se ocupar com as pessoas na rua, a se importar com elas. São adestradas, como bons animais que são, a ter uma atitude “pragmática”, compatível com a vida cotidiana — são ensinadas a ignorá-las! Não dá pra salvar todo mundo. Há um ditado, muito realista, que me encanta: “A morte de uma pessoa é uma tragédia, a morte de um milhão é estatística”. É natural ver o mundo com impessoalidade, pois é francamente compreensível a tendência a evitar a sobrecarga que cada pessoa representa se lhe concedemos a atenção que exige a justiça, se nos colocamos o dever de ser justos ao avaliar a sua história, como se ela fosse uma singularidade (particular) — e não um dos casos de uma regra (geral). É um fardo, a justiça é fardo, é um exercício que pesa (em termos quase computacionais, de recursos de memória). Que as pessoas queiram evitar esse fardo me parece inteiramente compreensível. Além do que, como lembrava Freud, o amor é o sinal de nossa distinção, há sempre algo de incontornavelmente tendencioso nos nossos julgamentos — e por isso o relativismo não representa o perigo que lhe atribuem. Estamos sempre em perspectivas e não há um lado de fora, um real que não seja perspectiva, mas objetividade.

O que é tão difícil de entender pode ser expresso assim. Enquanto permanecermos na província dos jogos de verdadeiro e falso, uma mudança na gramática só pode nos levar de um desses jogos para outro, e nunca de algo verdadeiro a algo falso.

Wittgenstein, gramática filosófica

Mas não é hora de falar disso, o que importa é que existe algo que nos inclina a uma misantropia, a uma insociabilidade, a uma privacidade, a um querer estar longe. Eu não posso dizer que não compreendo quem honestamente se confessa misantropo. Há boas razões para odiar as pessoas em geral. É claro que, se a impessoalidade prevalece e nos distanciamos desses seres odiosos que são os outros seres humanos, nós perdemos a capacidade de senti-los. E assim perdemos a ginga perto deles.

Deixamos de ser capaz de sentir o que é dito por Nai Palm, sobre sua orfandade e sua relação com a natureza.

Deixar de ser capaz de sentir os outros humanos não é uma perda qualquer, muito se perde com isso. Quem já esteve num estádio cheio, no carnaval, num show de música, teve pelo menos ocasião de sentir a força e a beleza da conexão entre seres humanos. No carnaval, quantas vezes a alegria da música nos fez sentir como se nos dissolvêssemos na ressonância desse sentimento coletivo, como se experimentar a alegria como indivíduo não fosse nada perto da experiência de senti-la na rua, com pessoas queridas e os outros desconhecidos. E como se a alegria não pertencesse a nenhum de nós, mas fosse de todos, e por isso mesmo fosse muito maior do que qualquer coisa que pudéssemos experimentar sozinhos. Não ser capaz de sentir isso é uma grande perda.

Nossa dor é que balança o chão da praça!” Chame gente talvez traduza melhor o espírito do carnaval, mas é difícil achar uma versão que espelhe seu caráter incendiário na avenida.

O que quero dizer é: embora afastar-se dos outros (ou manter em relação a eles uma distância impessoal) possa parecer a opção segura, prática e razoável, ela não nos afasta realmente deles, pois nunca deixamos de ser afetados pelas vidas dos outros, por mais esforço que façamos para viver em nossas bolhas. O covid19 talvez tenha nos feito lembrar disso, ou pelo menos esse fantástico texto me fez. Somos animais sociais e a rede que nos une tem laços profundos e tramas que nem mesmo suspeitamos. O que eu ia dizendo antes de começar essa longa digressão é que as crianças são encorajadas a ignorar as pessoas na rua, a fingir que não as veem deitadas nas calçadas, como se adquirissem assim uma espécie de virtude, uma habilidade que lhes torna aptas a viver no mundo. E quem pode negar a dura verdade dessa perspectiva?

O Manual da Sobrevivência, esse compêndio de regras para quem não quer ser esmagado pelo peso do social, não deixa de lembrar a sabedoria do verme, que se encolhe ao ser pisado para diminuir as chances de um novo pisão. Ainda que essa astúcia primitiva seja inegavelmente vantajosa, que tipo de seres humanos ela nutre?

Ser justo não é uma virtude que se ensina às crianças, mas nos parece imprescindível que, cedo ou tarde, os jovens aprendam a lidar com a ingenuidade codificada em sua programação padrão, de modo a evitar que sejam enganados, ludibriados, manipulados, etc. Deve-se substituir a ingenuidade por certo grau de esperteza e de malícia, com o objetivo de nos tornar menos sujeito à maldade humana em geral e à sua propensão parasítica em particular. Longe de mim fazer ressalvas a este aprendizado tão louvado e útil à sobrevivência dos seres humanos nas sociedades capitalistas, mas será que inibir uma propensão quase natural de importar-se com os outros não tem maiores efeitos? É verdade que as pessoas ingênuas chegam a ser irritantes, mas nada se compara àqueles que sentem prazer em confirmar (eles sempre se confirmam) a falibilidade do humano, como se dissessem: “Tá vendo, é por isso que estamos perdidos!”. Tratar todo impulso benéfico como a expressão de uma fraqueza a ser inibida tem nos custado muito.

É simplesmente impossível viver quando tudo nos afeta ou se não nos diferenciamos dos Outros — desde cedo aprendemos estas lições. No entanto, é verdade também que o esforço deliberado para responsabilizar o indivíduo por tudo que lhe acontece cria as condições ideias para o egoísmo e a indiferença. Não creio que devemos reagir a este esforço sistemático com o objetivo de evitar o egoísmo, há algo de inevitável no egoísmo e na egocentricidade. Mas é certo que poderíamos resgatar uma experiência entre seres humanos que se perdeu desde que temos estado sob a sombra dos dogmas liberais da competição e da individualidade atomizante. Talvez essa experiência seja o que se expresse natural e ingenuamente na atitude das crianças, em seu espontâneo interesse pelos outros seres humanos, um interesse não mediado pelos ardis dos sobreviventes e pelo amargor que inevitavelmente contamina suas lições de vida.


O sobrevivente é, acima de tudo, um ressentido e isso inevitavelmente me lembra esse deboche de Chico.

Debochando do cínico

Quanto de verdade cada um pode aguentar?

Sem o pano de fundo de uma psicologia a verdade pode ser a simples peça de um quebra-cabeças, uma parte que ajuda a saturar um espaço lógico (do conhecimento). O fragmento de uma totalidade. Ainda que esse espaço lógico seja infinito, ele pode ser inteiramente determinado porque em certo sentido é um infinito atual e toda sua extensão está determinada conforme as leis naturais que o constituem. Bem, essa é somente uma perspectiva.

Mas quando trazemos a psicologia de volta — e pensamos a verdade — algo novo se acrescenta, algo que não podia estar presente aí onde a arbitrariedade não era permitida, a ideia de intensidade. A verdade então se transforma em um elemento a ser digerido pelas personalidades às quais ela se expõe e um dilema ético se apresenta. Hilda Hilst expressa de modo cristalino como essas dificuldades se colocam para o escritor.

LÉO GILSON RIBEIRO O que é uma grande abertura de intensidade?
HILDA HILST É difícil de definir, talvez fosse mais fácil sentir isso. É mostrar ao outro que ele pode desvendar o seu “eu” desconhecido; é proporcionar ao outro o “autoconhecimento”, uma compreensão definitiva de si mesmo, com suas potencialidades, falhas e virtudes.
 
LGB E isso não seria ampliar o outro, libertá-lo?
HH É justamente o que eu queria discutir com você: eticamente algum escritor, alguma pessoa, pode assumir a tremenda responsabilidade de romper os limites que o outro aceitou, ou porque lhe foram impostos de fora ou porque ele se arrumou diante dessa conciliação com a opressão externa e o condicionamento interno de que foi vítima? Revelar ao outro que ele pode ser muito mais e pode ser ele mesmo com uma liberdade total de qualquer tipo de repressão política, econômica, sexual, religiosa, psicológica etc., eu me pergunto, não pode levar uma pessoa à morte, à loucura sem retorno?
 
LGB Mas por que você pressupõe que as pessoas não queiram se libertar?
HH Talvez algumas queiram, mas poderão aguentar a sua nova condição? Que direito tenho eu de interferir na sua vida burguesa, arrumadinha, na qual, bem ou mal, ela sobrevive? E uma questão eminentemente ética!
 
LGB Você acha que seria uma onipotência ou uma presunção do autor ambicionar isso?
HH Sim, porque talvez depois de se conhecer a si mesma esse destinatário da minha mensagem de autolibertação não suporte a ruptura com o seu mundo anterior de tabus, de repressões, mas um mundo no qual ele pôde sobreviver. E se a descoberta plena de si mesmo for uma descoberta tão maior do que a sua capacidade? Se o levar a um nível de intensidade de autodescoberta que se revele intolerável para ele?

cristiano diniz (org.), Fico besta quando me entendem: entrevistas com hilda hilst

Na terceira temporada de The Sinner, uma situação apresenta o mesmo dilema. Um professor atordoado por seus próprios fantasmas e cansado de assistir impassível à infelicidade da sua aluna decide aconselhá-la. Ele decide lhe falar sobre o quanto a sociedade nos impele ao gregarismo e como é difícil escapar desse impulso, quer estimulá-la a emancipar-se do jugo dos pais tiranos (do pai, pra ser mais exato), sob pena de prolongar sua infelicidade indefinidamente. Mas como fazer isso sem ferir, sem exceder involuntariamente a quota que cada um pode suportar de verdade? Hilda Hilst tem boas razões pra pensar assim.

A gente também se fortalece

A gente também se fortalece.
A gente dá energia uns aos outros.
A gente encoraja, a gente nutre.

É difícil acreditar nesse conjunto de proposições. Quem pode olhar o mundo e dizer que nós nos fortalecemos, dizer que isso é verdade? Acho facilmente defensável a ideia contrária, de que nos enfraquecemos. Acho facilmente defensável a ideia de que nos apequenamos, nos humilhamos, amendrontamos uns aos outros. Somos um peso, um fardo uns pros outros. Nós nos enfraquecemos! — eu diria, definitivamente. (Qualquer pessoa que espere sempre o pior do ser humano tem a seu favor fartas razões.) No entanto, não é como se a constatação do fato de que nos enfraquecemos impedisse que a gente também pudesse se fortalecer. Temos também essa capacidade, ela só depende da atitude de cada um. Mas como podemos nos fortalecer? Há muitos modos de nos fortalecermos, eu falo aqui sobre apenas um desses modos, a hospitalidade.

A primeira vez que estive na Galícia nós chegamos em Marin quase onze horas da noite. Estávamos mortos de fome depois de 6h viajando de carro. Por sorte encontramos um mercadinho que fazia às vezes de bar, lá dentro havia o suficiente para gente preparar um jantar rápido. Entramos eu e Jana e topamos com um camarada careca que trabalhava lá, falando num sotaque que até então eu não conhecia. Parecia muito um amigo argentino que temos em Madrid e eu perguntei sem pensar: “você é argentino?” Um milésimo de segundo depois me dei conta de que não seria absurdo imaginar que alguém pudesse tomar essa pergunta como uma provocação. Eu confesso que sou uma pessoa demasiadamente maldosa, mas não gasto minhas palavras, o verbo que me foi soprado pelo próprio Deus, usando identidades nacionais como formas veladas de ofensa e provocação. Menos ainda a amada identidade argentina, à qual sinto tanto dever. (Dever não é bem a palavra, mas vamos ficar com ela de momento). Por sorte ele tampouco tomou minha pergunta como signo de outra coisa que não a mera curiosidade. Conversamos um pouco, ele foi muito gentil, nos falou sobre alguns produtos e, ao final, compramos uns bonitos dentes de alho e um chorizo galego. Nos despedimos e enquanto eu caminhava em direção à saída vi um queijo que parecia muito o queijo coalho, que comemos na Bahia — e eu morrendo de vontade de comer um queijo coalho. Perguntei a ele que queijo era aquele e expliquei a razão da minha pergunta. Depois de saber que não era o que eu esperava, me despedi mais uma vez e ele pediu que eu esperasse. Entrou por uma porta e logo voltou com um pedaço de papel alumínio, cortou um naco generoso do queijo e me deu. Eu fiquei embasbacado, agradeci como pude, me esforçando por demonstrar meu apreço pela sua ação, mas estava meio sem graça.

Uma pessoa não pode ser hospitaleira se praticou a hospitalidade apenas uma única vez na vida, como diria o velho Wittgenstein:

Seguir uma regra, fazer uma comunicação, dar uma ordem, jogar uma partida de xadrez são hábitos (costumes, instituições)

Wittgenstein, investigações filosóficas § 199

O que faz a hospitalidade é o hábito de acolher calorosamente. É certo que esse gesto foi apenas um entre tantos que certamente existiram no passado e existirão no futuro. Para esse bom camarada, não havia ali nada que fosse digno de ficar na memória, era apenas um dia qualquer da sua vida, como os outros dias. (Ele seria, nesse dia, quem ele sentia que devia ser todos os dias. Se ele fosse hospitaleiro como foi conosco, isso significa que boa parte do seu dia seria preenchido com essa atitude. Ele era moldado pela hospitalidade. O hábito do cachimbo deixa a boca torta. A gente também pode ser moldado pelo melhor. O cachimbo é apenas um instrumento que ilustra a força do hábito na formação intelectual humana.) Mas não era disso que eu estava falando, eu tava falando de como aquele gesto era para ele tão natural. Eu, por outro lado, naquele momento, senti como se fosse plantada uma semente no meu coração. Na certa porque eu sou ridículo e piegas — é verdade! — mas isso não tira a força simbólica do fato. Eu entendi a força da ideia, da hospitalidade. Da ideia não! — da prática da hospitalidade. Entendi o que ela tem de caloroso e justo, o que ela tem de forte. A hospitalidade é uma força ancestral que nos atravessa, que nos permite que nos reconheçamos uns nos outros. Que vejamos nossos longos, longuíssimos laços. Não dá pra esquecer o que disse Mandela sobre Ubuntu:

Talvez nunca pudesse reconhecer a força da hospitalidade se não tivesse me criado na cidade negra da Bahia e se essa semente não tivesse encontrado um solo em que medrar. Não tô dizendo que não existe em São Paulo pessoas hospitaleiras, eu sempre tive a sorte de encontrar em minha terra pessoas muito queridas. Seres humanos que são o melhor da nossa raça, se é que isso ainda significa alguma coisa. Tem significado muito pouco! Mas é que na Bahia as pessoas podem ser muito receptivas. Há muito de alegoria, muito de broma, mas há também muito de verdade na fantasia. A hospitalidade é uma tendência à amizade, ao entendimento de uma pluralidade, uma pluralidade que não se reduz a nenhuma identidade e que não pode ser instrumentalizada por o que ela tem de coeso, pela sua unidade. A hospitalidade é esse embaralhamento constante pela influência da diversidade, o saudável apagamento da identidade pela força da miscigenação. (É nesse sentido a anti-pureza.) A estabilidade da identidade, que nunca pode ser apagada, dá lugar a uma instabilidade constante (que não se estabiliza) que pode ser usada para compreender o diferente. Que pode ser usada para se tornar o diferente, pra mudar de pele. A estabilidade da identidade gera inevitavelmente uma resistência à mudança, dá lugar ao narcisismo das pequenas diferenças, mas sem a estabilidade da identidade nós tendemos à loucura — ao afastamento, à ruptura com a comunidade de acordos entre seres humanos. A tendência à amizade é a uma das melhores disposições humanas, ela é imensamente poderosa e nos fortalece. Na Bahia, a qualquer instante a gente pode conhecer novos amigos, ou virar instanteamente melhor amigo de alguém.

Eu acho que nós tendemos a acreditar que somente a dor se fixa na memória, como se tivéssemos sempre que nos valer disso. E por essa razão, hoje, parece tão importante lembrar do que nos fortalece e nutre.

Talvez nada exista de mais terrível e inquietante na pré-história do homem do que a sua mnemotécnica. “Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória” — eis um axioma da mais antiga (e infelizmente mais duradoura) psicologia da terra.

Nietzsche, Genealogia da moral §3

Como se as coisas só pudessem ser fixadas em nós por meio do medo e do fogo e só tivéssemos a nossa disposição uma pedagogia da dor. Também podemos integrar, absorver e aprender com o amor e a amizade, com a generosidade, com a hospitalidade, embora predomine o medo de parecer ingênuo ao acreditar nessas coisas. Acreditar que podemos nos fortalecer, dado que parece tão fácil constatar que nos enfraquecemos, é o tipo de mentalidade que condenamos justo porque aparentemente não oferece nenhum modelo prático de ação (política e ética). Mas como nos lembrou Mandela, como nos lembra Carlos Taibo, não há somente romantismo ingênuo em acreditar que podemos agir de outra maneira em relação aos outros. Essa atitude é também parte da nossa história, da história de tantos povos tão diferentes espalhados pelo mundo, e ela não pressupõe a crença tola na prevalência da bondade, mas aceita as recônditas reentrâncias da alma humana sem ilusão. Aceita porque reconhece em si mesmo as sombras dessa alma.

Eu queria saber escrever mais sobre a hospitalidade e sobre outros modos de fortalecer, já escrevi algumas coisas sobre a amizade e o amor, mas talvez convenha ler sobre a hospitalidade alguém que eu nunca li, Jacques Derrida (é uma pena que o texto esteja fechado, ele me inspirou a vontade de ler o que Derrida escreveu sobre hospitalidade). Um dia talvez eu possa voltar a esse tema com algo mais substancial a dizer, ele me merece nossa atenção.

Sinais

Nem todo tema pode ser abordado em filosofia. A filosofia é coisa muito séria para se ocupar com devaneios e quimeras, é muito adulta. A literatura não sofre desses problemas, daí sua superioridade. Absolutamente tudo pode aparecer na literatura de Haruki Murakami, por exemplo. Não há tabus. Sinais é um desses temas sobre os quais eu mesmo hesito em escrever, embora não possa evitar. Tenho mais vergonha de absorver e refletir certos tipos de estreiteza.

Certa feita estávamos eu e minha esposa indo passear no Paseo de la Castellana quando me lembrei de uma história de Jane Eyre (livro de Charlotte Brönte) que havia me impactado muito. Apesar do impacto, não tenho ideia do porque eu lembrei da história nesse momento. A história é a seguinte: em certa passagem do livro, Jane está transtornada por um evento (que não convém mencionar) e decide irrefletidamente fugir da casa onde trabalha, na zona rural do norte da Inglaterra em pleno século XVIII. Ela reune alguns trocados, deixa praticamente todo o dinheiro que havia ganhado e sai de casa disposta a pagar para que alguém a leve o mais longe possível dali. Logo encontra um homem numa carruagem que aceita levá-la até certo ponto, pelos trocados que ela tinha. Nesse lugar, Jane decide buscar algum povoado em que possa procurar emprego, mas não sem antes pernoitar no bosque, pois já se fazia noite. O plano de Jane parece absurdo mesmo no século XXI, imagine então naquela época. Jane acorda na manhã seguinte bem cedo e põe em prática seu plano, encontra um povoado e saí batendo de porta em porta oferecendo seus serviços. Não encontra nenhuma oportunidade. Não apenas não encontra, como enfrenta olhares desconfiados. Cada vez mais exigente, a fome aperta e não lhe restam muitas alternativas, a decisão intempestiva lhe havia colocado numa situação incortonável. Ela vai até uma pequena capela e oferece seus serviços ao pároco, que também os recusa. A esta altura Jane está desesperada, tonta de fome e cansaço. Não lembro precisamente dos detalhes, mas essa situação dramática mexeu comigo. Num último gesto de desespero, já extenuada, Jane decide pedir comida numa casa e é recebida quase com hostilidade pela empregada. Exausta, ela cai desmaiada diante da porta fechada. Não preciso dizer que não é assim que termina a história da personagem principal, mas essa é a história de que eu lembrei enquanto íamos passear.

É certo que eu estava envolvido na trama, sensivelmente apresentada, da órfã Jane Eyre, mas há algo de universal nesse episódio. A literatura resgata e põe diante do nosso espírito aquilo que o Manual de Sobrevivência nos faz esquecer, a fome e os dramas humanos ligados à subsistência e ao desamparo. Era isso o que havia me desconcertado profundamente e me feito relembrar a história naquele instante. O drama de um ser humano a ponto de morrer de fome e fraqueza porque sua condição já não afetava nem interessava a nenhum outro ser humano. As bolhas que nos protegem tratam de nos manter a uma distância segura da realidade contundente de tantas pessoas no mundo. E quando essa realidade insiste em emergir a nossa frente tratamos de ignorá-la como convém, conforme as instruções do Manual. De outro modo, se tomamos nos ombros os fardos dos outros, inevitavelmente sucumbimos sob o peso do mundo. Alguns segundos depois de terminar de contar a história a minha esposa cruzei com um senhor idoso que me estendeu a mão pedindo dinheiro. Eu fiz o que rezava a cartilha, não o ajudei — não o ignorei por completo, fingindo que ele nem sequer existia, como talvez ordenasse o pragmatismo de algum sobrevivente —, mas ignorei seu pedido. Alguns passos depois eu me dei conta do que havia acontecido, aquilo parecia um sinal, e voltei. Um sinal de quê?

Um sinal sempre nos parece um sinal de algo, um significante cujo significado pode ser encontrado em algum lugar. Um acontecimento cujo sentido depende de uma articulação tramada por algo diferente de nós mesmos e cujo entendimento supõe o empenho de decifrar um significado oculto. É insondável tudo que pode estar oculto sob manto da nossa ignorância, a pretensão de explicar cada aspecto da vida é uma desmesura própria ao nosso tempo. Assim, os sinais não são circunstâncias insaturadas que exigem uma explicação e que apontam a um significado transcendente que devemos tentar alcançar com toda a força. São estímulos sem fechamento, oportunidades para refletir e para construir uma atitude diante do que não tem explicação. E um sentido.

O sentido tolo e ingênuo que eu construi quando voltei pra dar um trocado ao senhor que me havia me pedido foi que não queria que Jane Eyre morresse de fome. Eu voltei com o coração mole (que expressão fabulosa é essa, não?). Quando li o livro, era como se eu fosse ela. (Me angustiou profundamente os dramas similares pelos quais passou Philip em A servidão humana, era como se nós dois fossemos um). Eu tenho horror à ideia de soar bobo ou ingênuo, mas pensando bem eu acho que tenho mais medo de me tornar o tipo de pessoa amarga e cínica que se deixa pouco a pouco envenenar pela crença, rememorada em cada circunstância em que os problemas humanos se reapresentam, de que os gestos humanos parecem ter pouco significado em relação à dimensão dos dramas da humanidade. Como se nada adiantasse. Isso nos distancia imensamente uns dos outros. Quantas Jane Eyre morrem todos os dias?

Às vezes eu penso se não ando deixando escapar muitos sinais.

Um encontro inesperado e Before Sunset

Poster do filme Before Sunset

É um triunfo para quem vive às turras com a memória recordar do que se passou há tempos. Lembrei um caso acontecido há muitos anos enquanto assistia a um filme que eu gosto muito, Before Sunset (Antes do pôr-do-sol, é o título em português).

O acontecido não inspira propriamente orgulho; no contexto das coisas que lhe dizem respeito, o que eu preciso dizer é que para alguns eu sofro de uma lerdeza setorizada: sou dos últimos a perceber que uma mulher me dá mole e custo a notar oportunidades. Sim, os anos mitigaram tais características, mas devo vergonhosamente admitir que alguns resquícios perseveram. Bem, vocês entenderão. O fato aconteceu há 10 anos ou mais, era Carnaval ou, salvo engano, Farol Folia. Eu e um grupo de amigos não exatamente filiados à facção dos carnavalescos e admiradores da música baiana estávamos ali corrompidos pela possibilidade de beber irresponsavelmente e, sobretudo, por alguns rabos de saia. E daí vocês sabem: a presença do carnaval dispara em todo folião o registro de um contador que anota as vezes em que se conseguiu vencer a resistência de alguma criatura incauta e lhe roubar um beijo. Pois bem, a madrugada já ia alta e nós estavamos prostrados pelo resultado medíocre da empreitada: de um grupo de quatro ou cinco, apenas eu e um outro amigo havíamos conseguido pontuar e estávamos há algum tempo estagnados num vergonhoso 1 a 1. Resolvemos então descansar num trecho menos movimentado do circuito, ao final do mundialmente conhecido “Beco do Caesar Towers” (que nem é mais do Caesar Towers, a propósito).

Nunca fui ali durante o dia, mas com frequência costumávamos ir descansar naquela região enquanto durava o carnaval. Assim, chegamos lá e, com a naturalidade dos bêbados, nos espojamos pela calçada sem cerimônia. Enquanto meus amigos conversavam, eu notei uma garota sentada à esquerda de onde eu estava. Ao lado dela, um candidato à extrema unção despejava na rua o caldo malcheiroso que lhe saia das vísceras. Entre a solicitude e a má intenção espontânea, eu encetei uma conversa sobre os efeitos benéficos da glicose para um sujeito naquelas condições. Ela disse que ele já havia comido chocolates e me contou que trabalhava com enfermagem ou coisa do gênero. Eu não tenho pudor em criar imagens antecipadas sobre as pessoas — não acredito que seja possível viver sem prejuízos (sic) — mas as descarto sem embaraço diante de qualquer indício contrário. Por alguma razão minha imagem inicial dessa garota era pouco favorável, não sei se pelo seu modo falar ou pela circunstância em que nos conhecemos. Não lembro. O caso é que desse pretexto, começamos uma conversa. Para minha surpresa a coisa foi caminhando favoravelmente. Em pouco tempo nos sentíamos à vontade para comentar assuntos relativos a diferenças com os nossos pais, futuro, estudos, planos, crenças. Enfim, num espaço de algumas horas, sentados na calçada, em pleno carnaval, a imagem inicial se desfez e foi substituída por uma estranha familiaridade que nos credenciava a fazer confissões e a conversar sobre questões antes restritas aos mais íntimos. A essa altura estávamos bem próximos, um ao lado do outro, com os pés voltados para a pista e sentados na calçada. Segundo a cartilha masculina aquela era uma oportunidade única. A proximidade física e “espiritual” oferecia uma ocasião singular. Talvez seja essa a razão do meu desconforto em falar sobre o caso. Mas é provável que as mulheres condenem meus pensamentos, “como é possível pensar as coisas assim tão mecanicamente”, diriam elas. O fato é que eu estava ali numa espécie de torpor. Se meus predicados pouco ajudavam, a circunstância inesperada acabou por afastar momentaneamente qualquer pensamento que não fosse relativo à conversa que desenvolvíamos de forma tão surpreendente. Foi quando ela disse que precisava ir embora. Aí sim eu lamentei minha letargia. De caráter forte e personalidade intempestiva, em pouco tempo ela acordou o defunto ao seu lado e disse que estava hospedada na casa de parentes ali perto. Em seguida nos despedimos laconicamente e ela foi embora sem ouvir protesto algum. Lastimo até hoje não ter pedido ao menos seu telefone. Meus amigos, é claro, seguindo a cartilha — e não sem alguma razão — fizeram zombarias da minha inoperância. Eu só me ressenti de ter perdido a oportunidade de conhecer melhor alguém que em tão pouco tempo me pareceu tão familiar. Talvez, eu penso hoje, aquele temperamento intempestivo ao final não fosse outra coisa além da impaciência pelo meu animus arrastandi. Mas talvez não fosse isso.

Essa foi a lembrança que voltou durante o filme. O que há de comum entre as duas coisas é aquilo que marca o caráter terapêutico do cinema e da literatura e que provoca algum atrativo. É o traço riscado sob um acontecimento singular. A ênfase, o recorte preciso que destaca dos escombros do cotidiano o inesperado. Curioso que as pessoas esperem ansiosamente pelo inesperado. Não me levem a mal, mas é engraçado que o caráter burocrático e repetitivo da vida tenha sobrecarregado o espaço amoroso de expectativas de redenção. Em outros áreas também se anseia pelo inesperado, mas o amor é seu terreno privilegiado. Talvez pela sensação comum de que por ali não reina nenhuma regra. A anarquia geral do amor faz os amantes (e românticos) consagrarem ao acaso a felicidade que buscam. Daí o encanto que filmes como Before Sunset produzem. Filmes que celebram o encontro inteiramente casual entre pessoas que se enlaçam por elos invisíveis, que narram o sucesso numa empresa incontrolada por completo. De algum modo esse inesperado nos nivela na condição de meros expectadores, como se de alguma forma tudo o que restasse às pessoas fosse rezar para um dia, quem sabe, sentar ao lado de alguém com quem pudessem conversar sem reservas durantes horas, dias a fio. Andava descrente até ter novamente assistido o filme.


Notável que tenhamos atingido a condição ambígua de ter quase reduzido o que há de mais próprio à vida ao espaço das relações amorosas. Mais interessante ainda é que tenhamos produzido, já dentro do quadro controlado e organizado das coisas humanas, os meios pelos quais restituímos o lugar do selvagem, do inesperado, do inapreensível. Mas a essa altura eu já não espero estar sendo compreendido.