Passarinho: Anderson Bernardes Carneiro (Birdie)

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Eu e o cinema nos reconciliamos. Por causas desconhecidas eu andei algum tempo sem poder assistir filmes. Simplesmente não conseguia. Talvez vocês saibam que tenho uma categoria sobre cinema aqui no blog e já confessei que filmes me ajudam quando é preciso falar de filosofia.

Hoje eu quero comentar uma espécie de documentário, um curta. Nem mesmo sei se deveria denominá-lo cinema, pois eu o conheci já na web e não sei se o formato cinema se aplica também a formatos dirigidos diretamente a web (e nem sei se este é o caso). Portanto, saltemos as indecisões e imprecisões e vamos direto ao filme. Recomendo que vocês o assistam antes de continuar a leitura.


Birdie me impressionou imensamente. Anderson Bernardes Carneiro me impressionou imensamente. Ele me pareceu alguém radicalmente capaz de viver, apto a isso. E assim como há uma longa tradição literária e filosófica consagrada a denunciar que a linguagem é insuficiente para dizer a realidade, há também uma sólida tradição artística dedicada a dar voz aos desajustados. Imediatamente me vem a cabeça, como exemplo ilustrativo, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, de Clarice Lispector. Mas poderia citar também Fernando Pessoa — e embora me faltem recursos para seguir ilustrando casos, acredito que vocês já tenham entendido meu ponto. De modo nenhum quero reduzir a expressão desses pensamentos à confissão de um desajuste e de uma incapacidade para a vida, mas, ainda que involuntariamente, estes elementos ganham centralidade quando nos referimos a alguns escritores, pensadores e artistas. Birdie é o inverso disso.

Anderson, o Passarinho, parece alguém capaz de viver e aprender a viver. E ser capaz de aprender viver não é o mesmo que ser incapaz de cometer erros. Anderson cita alguns de seus erros e as consequências deles resultantes. A ideia de erro supõe a vigência de uma norma a partir da qual podemos determinar erro e também acerto. Sem norma não há erro. Mas alguns erros podem fazer ruir a norma. Façamos uma consideração mais concreta. Há muitas maneiras de ser feliz. Freud fez uma breve lista das fontes de felicidade para em seguida concluir que elas são incontáveis (e que lhe convinha então listar as fontes de infelicidade). No entanto, há alguns roteiros que funcionam quase como normas. A ideia de felicidade está quase inevitavelmente associada à realização profissional, ao estabelecimento de relações afetivas estáveis, à aquisição de certos bens, etc, etc. Essa lista é um enorme clichê do qual nos distanciamos apenas ocasionalmente, como se a própria vida social nos conduzisse a isso. Fracassar em todos esses setores parece o mesmo que fracassar na vida, ainda que nem sempre tenhamos controle sobre as condições necessárias para prosperar. E estamos tão imensamente absorvidos por este roteiro — e alguns em condições mais favoráveis — que não nos ocorre estabelecer novos padrões e normas. No entanto, quantas pessoas realizadas em todas as dimensões da vida costumeiramente escrutinadas pelos olhar alheio não se jogam literalmente pela janela, quem sabe, todos os dias?

Anderson parece alguém capaz de corrigir sua rota. Uma capacidade incrivelmente rara.

Eu posso querer ser um ator reconhecido, e fracassar em todos os meus intentos — ainda que falhe de novo e falhe melhor, como dizem que Beckett havia nos recomendado. Mas a plasticidade e diversidade dos meus esforços parecem contrastar com a rigidez do meu desejo e do meu propósito, congelados talvez pelas condições supostamente favoráveis. Desejo que talvez não consiga desejar senão isso, por falta de imaginação ou de coragem. Por outro lado, no mundo de pessoas invisíveis — que é o mundo da maioria das pessoas do planeta — mesmo o sonho de ter o que comer todos os dias parece muito, parece demais. E a capacidade que se lhes exige é maior do que a mera capacidade de falhar melhor, pois às vezes o que se lhes exige é um completo ajuste de rota (pensem em como vivem os refugiados sírios em países europeus e quantos refugiados há no mundo). E é isso o que Anderson faz de modo quase comovente. Ele não deixa de ter ambições, de querer ser e até ter mais do que é e tem, mas isso não o limita. Sua lucidez é muito maior do que eu espero ter um dia e mesmo sua articulação verbal e conceitual impressiona. Mas este espanto talvez seja apenas a expressão do meu pertencimento (involuntário, devo dizer em minha defesa, embora bravamente combatido) a este mundo que se orienta a partir de um quadro variável, apesar de estável, de normas. Quadro que cria não apenas o preconceito mas também a invisibilidade. (Lembro de ter lido coisas interessantes a respeito de estudos sociológicos e psicológicos sobre invisibilidade social). Do executivo (CEO, para não parecer antiquado) de uma grande empresa esperamos articulação verbal e clareza, moradores de rua nós mal os enxergamos, de sorte que nos espanta que se expressam numa linguagem clara, limpa e profundamente significativa. (Ademais, minha vivência indireta com o ambiente de CEOs e que tais tem me ensinado empiricamente que tudo isso é lenda).

Anderson desafiou o universo normativo que o relegou ao lugar de ninguém. “As pessoas não me veem, elas dizem que sou mendigo, eu não ligo”, ele diz. Quem não tem casa, carro, um plano de vida razoavelmente estável e dorme na rua é ninguém, é invisível. Mas Anderson não é ninguém. Aliás, ninguém é um lugar neste quadro normativo. Ser ninguém é se reconhecer na condição de despossuído do que se deve possuir — ou de não ser o que se deve ser. Anderson é alguém que, sem ter tudo que costumeiramente desejamos, não age nem reage como ninguém. Sua presença é muito maior que força esmagadora que nos compele a ser este alguém dentro de um plano normativo. Quantas pessoas hoje não se sentem esmagadas pelo simples fato de ser mãe ou pai, quando no fundo talvez não quisessem sê-lo.

Há muitas razões para querer ser muitas coisas: rico, bonita, famoso, escritora, mãe, escafandrista, etc., mas há pouca clareza sobre as razões pelas quais somos quem somos. Passarinho tem a serenidade dos que tem clareza sobre o seu lugar — e ele diz isso, “onde quer que eu esteja, encontrarei o meu lugar”. A imagem do carrinho de frutas conduzido entre os carros é ilustrativa. Pelo seu tamanho, o carrinho impede que os carros dividam com ele a faixa ou que o ultrapassem. Os motoristas passam visivelmente irritados pela lentidão de Passarinho. Qualquer pessoa pode testemunhar a impaciência de um motorista que espera o sinal abrir ou de um motorista impedido de trafegar na velocidade que lhe parece conveniente. Neste cenário, Anderson passa de algo invisível a um simples estorvo. Uma passagem abrupta. Nem mesmo chega a se constituir como gente. A tentação da qual foge é a de retornar ao fluxo (representado simbolicamente pelo fluxo de carros) que consiste no adequamento à ordem normativa que nos prescreve o que ser e desejar. Passarinho mantem-se rebelde, no sentido mais forte do termo: dorme na rua, diz ter o que precisa, embora isso não signifique resignação. Aprecia o pouco que tem com mais honestidade que muitos milionários.

((Não há espaço nem mesmo para revolta. O tema do desamparo e da perdição, que tem me fascinado nos últimos tempos, explica até mesmo a violência da revolta. A pobreza condiciona não apenas as circunstâncias materiais da vida das pessoas, mas também sua condição subjetiva. Num mundo cada vez mais marcado pela ostentação e pelo imperativo do gozo, a carência não poucas vezes enseja a revolta e a violência. E a pobreza significa quase sempre também uma restrição do que James Baldwin chama de narrativas de possibilidades. Presos a uma condição desfavorável, sem ter o que se deve ter e sem nem mesmo perspectivas de consegui-lo, o crime parece uma opção razoável — e as compensações superam os riscos. A revolta contra os que tem é quase tão certa quanto a vontade de ter e ser tudo que não se tem e é [desculpa a linguagem quase heideggeriana]. Até nisso Passarinho surpreende.

Nada mais comum do que uma pessoa perdida. Por isso é fascinante encontrar Passarinho, alguém que, desassistido, foi capaz encontrar-se e de reestabelecer-se.))

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