Um animal de outro tipo

Uma nova espécie, o chimpanzé elefante.

Meu corpo me responde, como uma máquina. Eu não tenho muita energia, mas tenho um corpo saudável e responsive. Se eu voltasse a malhar em pouco tempo estaria em forma. Tanto quanto pode estar alguém que pesa ao redor de 100 Kg, bebe e fuma (ainda que moderadamente) por mais de 20 anos. Mas é aquela coisa: tem gente que não bebe e está morrendo. E porque meu corpo me responde e tenho saúde eu sinto vergonha de me queixar dos meus problemas e dificuldades mentais, das dificuldades que enfrenta meu espírito. São tantas as pessoas que, além de ter as dificuldades do espírito, tem também dificuldades com o corpo. Sem falar do reflexo de um no outro (eu não creio em determinação unívoca de nenhum tipo), do corpo na alma, da alma no corpo. A gente nunca valoriza apropriadamente (com justiça) o que tem com constância. E eu sinto isso, que não valorizo tanto meu corpo e minha saúde porque os tenho constantemente, como variáveis com as que não preciso me preocupar. Não se valoriza o que não se nota, o que funciona bem não notamos a menos que a gente dirija a nossa atenção a isso deliberadamente. A saúde quando falta nós logo sentimos, sentimos sua ausência. Isso é ainda mais fácil de notar numa pandemia.

Clique em CC, dentro do vídeo, para ativar as legendas. Wim Wenders representa (ou apresenta?) anjos que desejam ter um corpo e serem finitos, mortais. Eu não tenho a relação com o meu corpo que teria um anjo, pois os anjos invejam nosso corpo como quem quer o que não pode ter. Um anjo quer sentir o cheiro do café, o gosto do cigarro. Um anjo sabe dar valor a um bom cigarro. Asas do Desejo (Der Himmel über Berlin, 1987)

Assim, eu escrevo pra me lembrar do meu corpo. Pra reconhecer minha própria força e vitalidade apesar do esmagamento a que meu espírito está constantemente submetido. Durante um bom tempo eu frequentei (sempre preguiçosamente) a academia, conheço o fascínio do corpo e da força física. Não sou dessas pessoas com histórico de atleta, mas conheço o que há de aditivo e viciante em correr. O corpo é um poder, todos sabem. Infelizmente, minhas convicções biriteiras limitavam a expansão do meu interesse esportivo até que finalmente a conveniência do dia a dia, aliada à preguiça, escantearam meu interesse pelas atividades físicas numa gaveta, em algum lugar desconhecido. Às vezes flerto com a ideia de voltar à natação, mas a verdade é que como animal, ainda que forte e saudável, eu sou uma mosca (ou uma formiga) perto de qualquer chimpanzé.

A alopecia de um chimpanzé revela seus músculos e sua força.

Na sociedade, a prevalência da mente foi setorizando o lugar do corpo, limitando-o ao esporte. O corpo não tem nenhum lugar central nessa sociedade — senão como suporte, como ghost ou shell, a depender de como se olhe, que em breve vamos substituir por algo mais apropriado à nossa aspiração à imortalidade —, porque nela tudo gira em torno do nosso espírito, ou como gostam de chamar os que rejeitam o animismo, da inteligência. Claro que as expressões não são sinônimas, elas têm apenas uma relação de família, mas essa familiaridade serve ao meu propósito. Naturalmente, a prevalência da mente tem impacto sobre o corpo. É o que eu gosto na Tradeoff Hypothesis, uma hipótese que eu já mencionei aqui uma vez. É como se nós tivéssemos trocado a extraordinária memória de curto prazo dos chimpanzés pela expansão da habilidade para usar nossa memória de longo prazo. Isso é o que nos permite criar, compor a partir das memórias. Criar ficções, sentido, fantasias, teorias, hipóteses… beleza!

Não nós somos apenas animais que figuram fatos, em certo sentido os chimpanzés figuram fatos melhor que nós. Nosso forte é criar, é usar o oceânico manancial de nossas memórias para criar sentido do nada. O reservatório da memória nunca é nada — é muita coisa, pra ser preciso —, mas as possibilidades da criação não são as mesmas da representação. Embora o mundo da ciência, o nosso mundo, e os próprios cientistas ainda vivam no sonho do conhecimento como espelho da natureza, as possibilidades da criação são muito mais amplas e audaciosas, porque são a possibilidade da beleza. Somos animais artísticos, a beleza não é um fato, mas fascina como a luz do sol deve ter fascinado Ícaro. Fascina não com universalidade que gostaríamos de emprestar ao nosso conhecimento, mas com uma força desconhecida que parece afetar a quase tudo que é capaz de sentir.

Não é o quantitativo o que nos dá o que temos de mais sublime, e creio que essa ênfase sobre o papel da arte marca certa perspectiva importante do pensamento de Wittgenstein, é uma das suas lições esquecidas — como sublinha seu biógrafo, Ray Monk.

Nos nossos dias as pessoas pensam que os cientistas existem para instruí-las, poetas, músicos, etc., para entretê-las. A ideia de que estes tenham alguma coisa que lhes ensinar, isso não lhes passa pela cabeça.

Wittgenstein, cultura e valor

E é nesse sentido que vai também as ideias de Richard Rorty (creio muito pretensiosamente) sobre a cultura literária, em seu precioso artigo: O declínio da verdade redentora e a ascensão da cultura literária, um artigo que eu vou passar a vida tentando terminar de traduzir:

A questão “você acredita que a verdade existe?” é uma abreviação para algo como “você acredita que há um fim natural da investigação científica (inquiry), um modo como as coisas realmente são, e que entender o modo como as coisas são vai nos dizer o que fazer de nós mesmos?”.

Aqueles que, como eu, são acusados de frivolidade posmodernista não pensam que há um tal fim. Nós acreditamos que a investigação é apenas outro nome para a resolução de problemas e não podemos imaginar chegando a um fim a investigação sobre como seres humanos devem viver, sobre o que nós devemos fazer com nós mesmo. Pois soluções para velhos problemas produzirão novos problemas e assim eternamente. Assim como para o indivíduo, também para a espécie e a sociedade: cada estágio de maturação superará antigos dilemas para em seguida criar novos.

richard Rorty, The Decline Of Redemptive Truth And The Rise Of A Literary Culture

É isso que nós somos, animais artísticos, capazes de cantar e contar histórias, inventar mundos, por isso a arte também deve nos ensinar. Precisamos dela mais do que nunca para imaginar coisas muito diferentes. Bem, esse só pode ser o começo de uma longa conversa, porque disso tudo sai muita coisa, mas essa conversa fica pra outro dia.


Depois de escrever o texto, por coincidência topei com essa entrevista do Yamandu Costa. Nunca tinha ouvido o Yamandu falando sério! Nas entrevistas que eu vi ele sempre estava brincando, mesmo que falasse sério, com a música e os amigos. Essa entrevista aqui tá bem diferente, uma lindeza! Ele falando da morte, de arte, de amizade, tá de quebrar o vidro dos olhos.

Somos muito pouco

A sábia visão do futuro de PoolyDrawnLines

Não me leve a mal, eu não sou dos que gostam de identidades. Nem identidade nacional, nem identidade de espécie, nada. O que não significa que não tenha as minhas, sou corinthiano, por exemplo. Corinthiano, mas nunca deixei de torcer por outro time porque não devia. Como não torcer pelo São Paulo de Telê Santana no Mundial em 92 e 93? Em alguma medida isso reflete minha relação com as identidades. Mas o que eu queria dizer era que apesar de não gostar muito de identidade, eu penso com frequência na identidade humana. Não como humanista, mas como alguém que se pergunta: isso que nós somos como coletivo é algo apreciável? Tem valor?

Não importa que as pessoas se sintam apenas indivíduos, ou que no máximo formem um agregado de indivíduos atomizados e amarrados frouxamente entre si por identidades que os igualam a poucos, enquanto sobre os outros, os diferentes, a maioria, recai sua agressividade — como lembrava Freud. Essas pessoas que nós encontramos apenas acidentalmente no mercado, na feira, na rua, nas vias de transporte, são para boa parte dos outros animais criaturas a serem evitadas. Se os animais tivessem nossa capacidade para o preconceito, não escutaríamos nem mesmo o arrulhar das pombas. O mero vislumbre da silhueta de um humano inspiraria o nojo e a repulsa em todos os outros animais. Mas como não têm nossa enorme capacidade para o mal, os animais ainda se aproximam de nós, como se não fossemos, para eles, o mal a ser evitado. Se considerarmos essa insólita ficção que eu inventei, em que os animais nos identificam como humanos a partir de tudo que nós fizemos com eles, nós poderíamos condenar esses animais, esses reminiscentes de outras milhares de espécies que extinguimos, por ter nojo de nós? Quero dizer, ainda que a gente se sinta tão individual? É isso o que eu me pergunto quanto à identidade humana.

E por que nós haveríamos de cuidar dessa identidade, se somos apenas indivíduos? Se somos, quando muito, um nacional, um cidadão que pertence a um país, ou a algum continente (ou parte de continente) a que atribuímos importância em nosso próprio proveito. Os outros humanos são nossos únicos adversários, os únicos cuja opinião importa. Não temos Deus, não respeitamos os animais a ponto de nos afetar o que eles poderiam pensar de nós (eles não pensam!), e não nos importa o que eles possam sentir. O que então nos faria valorizar o humano e zelar por essa identidade? Um competidor externo, certamente. Assim, sonhamos com extraterrestres. Sonhamos com androides (e os androides sonham com ovelhas elétricas?). Em nossos sonhos nós projetamos a superioridade que não podemos enxergar em nós mesmos e que precisa ser projetada porque nós não podemos assumi-la. A quem mais seríamos superiores, aos animais? — Grande merda! Eles são estúpidos! Os sádicos podem até sentir prazer torturando a quem a eles julgam inferior, mas não superioridade. A superioridade é o triunfo sobre um inimigo que se respeita e estima, não é o caso. Não, nós só respeitamos as inteligências com que sonhamos. Diante delas, o cinema e a literatura nos contam, podemos às vezes até vislumbrar o melhor de nós, como se todas as criaturas inteligentes do universo fossem um derivado, feitas a partir da nossa costela. No entanto, isso significa que aquilo que nos é superior já não pode ser humano — deve necessariamente ser outra coisa.

Nem todos os filmes de Ridley Scott são bons, ou pelo menos tão bons como Blade Runner, mas é difícil dizer que alguém refletiu e imaginou melhor que ele as inteligências artificiais, os androides — mesmo contando com Philip Dick, Isaac Azimov e Ewan McGregor, recentemente. Mesmo Alien Covenant, que é um filme bem meia boca, tem insights incríveis.

Por medo de ser rebanho, aceitamos ser meros indivíduos, não com resignação, mas como se nos fosse dada a maior das virtudes. A singularidade do indivíduo — é verdade — é a fonte de todas as virtudes (ainda que elas tenham começado nos povos). E o que nos tornamos? Rebanho! Ou não somos? Quem ainda é otimista diante dos rebanhos é porque ainda crê nos sonhos que sonha, mesmo que o sonhador seja cientista. Aliás, principalmente se for. Os cientistas já não tem a mesma imaginação para sonhar novos sonhos.

A cooperação foi o que nos trouxe até aqui, ainda que alguns digam que foi a competição¹, mas isso que nos tornamos ainda me parece muito pouco. Observemos os estorninhos no céu, como é incrível o que eles fazem juntos. — Eles são apenas animais, tudo que eles fazem é simples comparado à complexidade do nosso pensamento, não temos nada que aprender deles.

Há muitos vídeos da dança dos estorninhos, mas eu gosto especialmente desse vídeo porque dá pra ouvir (apesar da música) a reação e o som das asas dos pássaros.

Nós também já fizemos coisas incríveis juntos, ao nosso modo, claro. Eu sou apaixonado pelo Linux, pra ficar num exemplo de um projeto cooperativo do nosso tempo. Mas tudo que fizemos até aqui ainda é muito pouco, dada nossa inteligência. Às vezes eu penso se poderíamos agir como uma rede de computadores, como uma botnet. A mente não é um software, é verdade, embora essa analogia seja muitas vezes útil. Ainda assim poderíamos nos coordenar de modo análogo. A botnet não é a melhor das imagens, porque é um sistema centralizado e determinado pela lógica master/slaves. As máquinas são nada mais que zombies dirigidos para realizar uma mesma operação computacional². Precisaríamos formar um sistema descentralizado e a única tecnologia que me vem a cabeça é o blockchain. Mas como é possível coordenar ações sem um sistema centralizado de execução, sem um master? — alguém me perguntaria. Bem, eu só estou relatando uma sandice que às vezes me passa pela cabeça, não sugerindo uma panaceia. A coordenação dos pensamentos, no entanto, talvez seja o que basta para que saibamos (juntos) o que fazer (tenhamos o poder executivo de um master).

O certo é que ainda somos muito pouco porque como indivíduos somos egoístas e como membros da sociedade, gregários. E acreditamos que devemos escolher entre ser indivíduos ou ser parte do rebanho. A individualidade impede a coordenação social e a sociabilidade ameaça estrangular a singularidade do indivíduo. Sem dúvida, os nossos conceitos nos enfeitiçam.

Talvez um dia alguma nave espacial desça na Terra e nos mostre uma superioridade que não poderemos reconhecer como tal, uma superioridade diferente daquela que aparece em nossos sonhos (ou pesadelos).


¹ Isso mostra que não convém deixar que uma verdade determine qual é a realidade onde um valor deveria ser o elemento determinador. Nada impede que prevaleça um valor inferior, por assim dizer, indesejável, injusto, cruel até. Sim, nada impede. Mas pelo menos estamos sem máscaras e subterfúgios, sabemos o que escolhemos. A verdade exclui e logo se desinteressa pelo que foi excluído como falso (ela finge que não existe história e que tudo é progresso linear, não há circularidades). Se depois de tanto tempo no mercado nós ainda acreditamos que os valores da sociedade de mercado devem ser os elementos axiais da sociedade, assim deve ser, mas não por convicção democrática ou coisa parecida. Cada vida, como cada espécie, tem seu tempo e seu potencial, se os humanos aceitarem que isso é o melhor que podemos ser, nada pode mudar isso. Aliás, estava me referindo Hayek quando falei de competição, aos liberais e ultraliberais.

² Os dois únicos usos que conheço em que uma rede coordena computadores para trabalhar juntos (além das aplicações de Big Data e do paralelismo computacional) em algum objetivo comum são o ataque de Negação de Serviço (Denial of Service Attack, DoS) e as tentativas de minerar bitcoins. Entretanto, nenhum dos dois usos tem uma conotação positiva, de tal sorte que valem mais como uma analogia das potencialidades.


Em Filosofia da Consciência algumas ideias têm sido resgatadas para falar Panpsiquismo, isso me parece muito estimulante.


Atualização: por coincidência, encontrei poucos dias depois essa matéria sobre o novo livro de Miguel Nicolelis. Ele usa o termo Brainet:

Tudo indica que a “Brainet” não é mera metáfora. O trabalho do brasileiro na Universidade Duke (EUA), bem como o de outros neurocientistas, está mostrando que a atividade cerebral de indivíduos diferentes engajados na mesma tarefa de fato acaba ficando sincronizada, podendo até ser usada para controlar avatares virtuais ou aparatos robóticos de forma conjunta.

Tenho enormes diferenças com Nicolelis, mas esse pensamento é muito estimulante e tem tanta gente pensando isso em áreas tão diferentes hoje em dia que é curioso constatar essa coincidência.

Somos animais!

Somos animais, não há muito mais o que dizer. Somos macacos. Macacos metidos a besta, é verdade, mas ainda assim, macacos. Dentre as muitas coisas que se pode amar na internet está uma oferta quase inesgotável de conhecimento. Por exemplo, aqui você pode assistir sem dificuldades a uma playlist com 12 vídeos nos quais o paleontólogo Walter Neves explica um pouco sobre a macroevolução humana. Não é nada demais que uma Universidade publique vídeos de seus melhores pesquisadores no seu canal de Youtube. Em certo sentido isso é até banal, mas é uma banalidade que está entre nós há muito, muito pouco tempo. No início dos anos 80 ninguém tinha acesso a esse conhecimento que hoje a gente pode se dar ao luxo de considerar trivial.

Outra coisa, a formação de Walter Neves, diversificada como convém à sua área de estudo, só se sedimenta ao longo de muitas décadas de investigação. E ele se esforça para traduzir a complexidade de suas pesquisas em termos acessíveis até mesmo pra pessoas como eu, que não tem formação adequada para entender certos aspectos da biologia. Lembro claramente do gancho que me fisgou ao pensamento de Richard Feynman, foi a ideia de que quem não sabe explicar algo em termos simples e acessíveis não compreende verdadeiramente sobre o que fala. Por isso, eu louvo os que se empenham no uso da linguagem e isso significa um compromisso com a comunicação, mas também um compromisso com algo mais do que comunicação. São louváveis todos os que acreditam na inteligência das outras pessoas.

Mas antes que eu me perca falando de outras coisas, é melhor voltar ao que eu queria dizer. Somos animais. Macacos. Nas cidades deste mundo civilizado, que redimirá toda a humanidade de sua ignorância, o macaco virou símbolo do primitivo. Quando os civilizados querem ofender os Outros (essa categoria), eles lançam bananas contra atletas em partidas pelas quais pagam os olhos da cara. Ninguém deveria prestar muita atenção ao “pensamento” desses civilizados, aí não há nada de bom. Prestemos atenção aos pressupostos deste pensamento. Um ideal de pureza está presente nessa visão de mundo — e também uma identidade. O sonho dos que querem separar os homens entre si e manter a marra de uma identidade humana afastada da identidade animal é o sonho da pureza. O anseio de pureza quer incessantemente separar mais, segregar mais, formar grupos com membros cada vez mais iguais, mais puros. A pureza é o certificado da igualdade dos que se creem superiores. E este sonho é também o sonho de provar a objetividade de uma distinção conceitual; de justificar uma separação conceitual por meio da qual se pode marcar o que está dentro ou fora de uma extensão, de uma classe — sem vagueza. Por isso a eugenia, a frenologia, todas essas tentativas de provar cientificamente uma superioridade racial. Geralmente seus defensores não sabem do que falam quando sustentam a possibilidade de justificação, porque não entendem o complexo papel da justificação no pensamento científico nem os muitos problemas que ela enfrenta. A ciência está inteiramente contaminada pelas noções matemáticas de demonstração e prova, e isso alimenta as fantasias de justificação tipicamente científicas. Ainda que na matemática essas ideias tenham um uso tão preciso que não pode ser transposto a nenhuma disciplina das ciências naturais sem enormes ressalvas que não costumam ser sequer conhecidas, as fantasias crescem como erva daninha. Ciência é política e poder. E é porque muita gente acredita dogmaticamente nessa sandice que há tantos esforços para provar quadros de valores (como se fatos e valores fossem a mesma coisa), para justificar tais valores. Como se não tivéssemos que escolhê-los e como se eles fossem a expressão de uma necessidade natural (Naturnotwendigkeit, a expressão é do velho Wittgenstein) que todos lutam por descobrir usando a ciência. O que é uma necessidade natural? A ciência caminha para um realismo porque ela só consegue conceber a natureza como realidade a ser espelhada na linguagem. Não consegue conceber um mundo apresentado, pois tem fixação pelo modelo de representação. E por essa realidade anseiam tantos bons quanto maus cientistas*.

Mas isso não importa agora! Longe das fantasias de pureza dos que creem cegamente na definição, no conceito e na determinação, eu acredito na miscigenação, na mestiçagem, na antipureza. Não me ilude nenhum dos jogos em que se tenta provar e extrair consequência da pureza do pertencimento a classes superiores, nenhuma expressão desses jogos. Em minha cabeça, essa desconfiança prevalece em razão da presença constante da Filosofia e da Antropologia. Ela se deve à crença na antropologia e na etnologia, como únicas formas de reconhecer e identificar a objetividade sem se enfeitiçar (e se corromper) pelo subliminar poder político do realismo.

Se usarmos uma abordagem etnológica isso significa que estamos dizendo que a filosofia é uma etnologia? Não, isso só quer dizer que estamos tomando um certo distanciamento a fim de ver as coisas mais objetivamente.

Wittgenstein, cultura e valor

A perspectiva antropológica lança um olhar muito diferente à dita realidade. Não há pretensão de esgotar. Se a gente olha assim a experiência da mistura no Brasil, nem é preciso o background biológico de uma perspectiva que vê a variação genética como melhoramento, basta constatar os fatos da nossa história. Por exemplo, sem discutir o quanto de influência cabe a cada matriz formadora — sem discutir a importância da tradição filarmônica europeia na formação do chorinho, da bossa nova e, em certa medida, até do samba — já dá para constatar que em nossa cultura se misturaram elementos bem diversos para formar algo que é, no mínimo, muito interessante. E, no máximo, divino. Quero dizer, como força criativa. E tudo isso apesar da Madame!

O supremo Altamiro Carrilho executando o divino Pixinguinha

A essa altura, talvez seja uma batalha perdida tentar explicitar e nos reconectar ao tema dos animais. Eu sempre espero que as pessoas vejam (e entendam) para onde estou indo, mas é difícil mostrar as transições sem dizer muito, sem dizer demais. Nossos conceitos (a linguagem) tem um papel formador tão fundamental na constituição das lentes que usamos para ver o mundo/realidade que a briga para justificar o conceito de ser humano, ser animal, ser inteligente, ganha uma importância absolutamente insuspeita. E uma dimensão ética igualmente impactante. E é fácil notar, embora não seja simples explicar, como essa pretensa superioridade, que se observa na própria relação entre homens, contamina também nossa relação com os outros animais, com a natureza. (Não é preciso uma pandemia para que possamos notar esse efeito, embora nem mesmo ela seja capaz de nos fazer ver o que não queremos.) Diane Fossey, Jane Goodall, Pierre Clastres, Peter Winch, Lévi-Strauss e tantos outros se empenharam em nos mostrar o impacto da húbris humana.

Começou-se por cortar o homem da natureza e constituí-lo como um reino supremo. Supunha-se apagar desse modo seu caráter mais irrecusável, qual seja, ele é primeiro um ser vivo. E permanecendo cegos a essa propriedade comum, deixou-se o campo livre para todos os abusos. Nunca antes do termo destes últimos quatro séculos de sua história, o homem ocidental percebeu tão bem que, ao arrogar-se o direito de separar radicalmente a humanidade da animalidade, concedendo a uma tudo o que tirava da outra, abria um ciclo maldito. E que a mesma fronteira, constantemente empurrada, serviria para separar homens de outros homens, e reivindicar em prol de minorias cada vez mais restritas o privilégio de um humanismo, corrompido de nascença por ter feito do amor-próprio seu princípio e noção.

Pierre Lévi-strauss. “Jean-Jacques Rousseau, fundador das ciências do homem”. Antropologia Estrutural dois

A antropologia é a mais importante das ciências. É ainda uma aposta no logos, mas é de um tipo diferente. É meio vergonhoso — é verdade — ter que colocar as coisas dessa forma. Como se a(s) lógica(s), a matemática, a física, as rainhas do nosso coração científico, fossem desimportantes. Não é o caso, mas é também o caso. É e não é — e não digo mais. Meu apreço por elas é enorme, mas o que há de mais fraco na nossa alma se apossou do poder dessas ideias para nos escravizar ao medo e à vontade de controle que nos afastam de tudo e de todos. Não vejo como essa ânsia tecnológica nos encaminha de volta aos outros e ao reino ecológico. Por isso me sinto inclinado a lembrar de Lévi-Strauss e de todos os que fazem questão de sublinhar, somos animais. Somos macacos. Não podemos esquecer disso, de outro modo não aprenderemos a superar o desafio posto por uma sociedade dogmaticamente aferrada ao crescimento econômico ilimitado, num mundo de recursos naturais limitados. Sem respeitar os animais, sem aprender com eles bem como com as sociedades arcaicas, as sociedades tradicionais — não primitivas! —, não há como imaginar uma saída dessa cilada em que nos metemos.


O colapso do projeto de encontrar uma forma lógica universal — uma mesma forma de julgar e pensar — põe fim ao sonho da pureza no campo teórico, transforma a questão da formalidade numa mera questão técnica a ser explorada pelas diferentes lógicas, além de consolidar a pragmática e todas as vias que conduzem à antropologia, bem como à primatologia (como vias genéticas não meramente lógico-normativas). Mas há ainda outra perspectiva pela qual poderíamos encarar todo esse cenário e tenho muita vontade de um dia, quem sabe, abordar essa questão em vídeo. Trata-se de uma mudança de paradigma ainda não inteiramente consolidada e levada à cabo por Alan Turing. Quando Turing quase inocentemente, já na primeira página do seu Computing machinery and Inteligence, dispensa a definição e abraça a imitação (o comportamento) como critério de inteligência, ele reconstrói a realidade em outros termos. Essa questão, no entanto, é um universo à parte.

* A justificação é um dos temas mais interessantes discutidos por Karl Popper em sua Lógica da descoberta científica, especialmente o chamado trilema de Fries. Aqui está o pedaço do livro em que a questão é mais profundamente considerada.

Invocações, encantamentos e entoações

Atado ao mastro do navio, Ulisses ouve o canto das sereias. Pintura de Herbert James Draper

Tudo que pode interferir na cadeia causal de fatos naturais tem que, em certo sentido, já estar nessa cadeia. A natureza não é mais que uma cadeia, uma série de eventos que se estendem do agora ao passado e ao futuro. Esses eventos estão indissociavelmente ligados, de tal sorte que qualquer mudança nos fatos que compõem a cadeia implica uma mudança em todo o sistema. É por isso que muitos não admitem a ideia de vontade, porque a vontade (livre) pode atuar sobre os fatos como se não estivesse constrangida por eles, daí a separação entre natureza e liberdade. A liberdade da vontade é a irredutível à determinação (de qualquer sorte). A ideia de uma subjetividade que não está completamente determinada pela regras que governam as cadeias causais e que por isso pode interferir no reino causal espontaneamente (ou quase) dá arrepios em muitos control freaks. O reino da liberdade tem suas próprias regras (moralidade). Kant sabiamente não via nenhum conflito entre as duas perspectivas:

Independente do conceito que se possa formar, com propósitos metafísicos, sobre a liberdade da vontade, as manifestações fenomênicas desta, as ações humanas, se encontram determinadas conforme leis universais da Natureza, como qualquer outro acontecimento natural.

Kant, Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita

É quase apavorante pensar que pode haver uma dimensão parcialmente excluída do que podemos conhecer e que, ainda assim, pode interferir nos fatos que conhecemos. (As leis da liberdade tem que ser instituídas). Se você deixar passar o boi da “vontade”, passa junto com ele toda a boiada da espiritualidade — tudo que pode interferir na causalidade sem estar na cadeia causal. E como não admiti-la?

Em “Eficácia simbólica”, Levi Strauss relata com detalhe o caso de um xamã que dá um sentido particular às dores de uma mulher que dá à luz, mitingando seu sofrimento, restituindo a experiência ao universo simbólico onde as coisas tem seu lugar.

A cura consistiria, portanto, em tornar pensável uma situação dada inicialmente em termos afetivos, e aceitáveis, pelo espírito, dores que o corpo se recusa a tolerar. O fato de a mitologia do xamã não corresponder a uma realidade objetiva não tem importância, pois que a paciente nela crê e é membro de uma sociedade que nela crê. Espíritos protetores e espíritos maléficos, monstros sobrenaturais e animais mágicos fazem parte de um sistema coerente que funda a concepção indígena do universo. A paciente os aceita ou, mais precisamente, jamais duvidou deles. O que ela não aceita são as dores incoerentes e arbitrárias que constituem um elemento estranho a seu sistema, mas que o xamã, recorrendo ao mito, irá inserir num sistema em que tudo se encaixa.

Claude Lévi-Strauss, “A eficácia simbólica”. Antropologia estrutural

A observação cuidadosa de Lévi-Strauss destaca um aspecto importante: se trata de um tipo particular de eficácia, uma eficácia simbólica. Não estou certo de que ele não empresta à expressão a mesma radicalidade que eu, isto é, que ele a veja como testemunho de algo que escapa à pretensão objetiva de nosso olhar científico. Mas pode ser que sim, repare em sua observação sobre a irredutibilidade da mitologia xamânica. Não pode haver nada do lado de fora do quadro de fatos que a ciência tenta determinar, não pode haver nada exterior à teia de relações definidas pelas leis naturais que governam a série causal. Talvez a mais geral expressão dessa pretensão totalizante seja um comentário de Wittgenstein sobre a lógica no Tractatus Logico-Philosophicus:

A lógica preenche o mundo; os limites do mundo são também seus limites.
Na lógica, portanto, não podemos dizer: há no mundo isso e isso, aquilo não.

Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus 5.61

A lógica preenche o mundo. E, no entanto, há algo do lado de fora, mesmo pro Tractatus. Há algo que mesmo uma linguagem inteiramente devotada a figurar fatos não pode representar*.

Apesar de não nos ensinarem a admitir a possibilidade de que exista algo fora da série causal capaz de intervir nos fatos que testemunhamos, a linguagem, entendida não como uma ferramenta técnica, mas como expressão aberta de nossa milenar relação com o mundo, conserva e multiplica as ocasiões em que constatamos o irredutível mistério do universo. Na tradição cabalística diz-se que uma certa leitura do Talmude poderia nos tornar capazes de criar vida, com uma pequena e decisiva diferença. Se pudéssemos interpretá-lo corretamente, confirme esses ensinamentos secretos, poderíamos criar vida, mas essa vida artificialmente criada, o golém, não teria algo que nós temos, a linguagem. Isso está em sintonia com as observações dos evangelhos, onde se lê:

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.
Ele estava no princípio com Deus.
Tudo foi feito por ele; e nada do que tem sido feito, foi feito sem ele.
Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens.

João 1:1-4

O verbo é algo que só Deus pode conceder, é um poder que nos escapa. Deus sopra em nossa boca o verbo e nos infunde o espírito. Participamos da força divina através da linguagem. Meu virulento ateísmo e minhas críticas à religiosidade me credenciam a falar de todas essas coisas sem reservas, como quem senta num bar e conversa com amigos. A linguagem é uma força cuja medida escapa aos estreitos limites da nossa pretensamente totalizante visão científica do mundo.

A linguagem comporta algo de irreal, mágico, sobrenatural, algo que muitas experiências espirituais se esforçaram por canalizar e integrar (não entender). Ainda que essa ideia pareça algo distante para nós, seres (humanos && urbanos) de um mundo desencantado, não é assim tão distante quanto parece. É apenas algo com o que não fomos ensinados a lidar — mas podemos aprender tudo. Como uma criança pode ser ensinada a acreditar em Deus. O cinema, como a arte em geral, é o que nos torna capazes de ver aquilo que não fomos ensinados a enxergar. Vejam esse fragmento de The ballad of Buster Scruggs:

Fragmento de “The Ballad Of Buster Scruggs”, dos irmãos Coen.

A expressão no rosto dos espectadores diante de um garoto sem braços nem pernas cuja força dramática se impõe de modo quase sobrenatural é desses detalhes cuidadosamente pensados pelos bons diretores. Mas ainda não é o suficiente. O que melhor manifesta essa ponte que eu quero estabelecer entre a linguagem como ferramenta prática e sua dimensão divina são suas invocações, seus usos aparentados a tudo que poderíamos designar como encantamento e feitiço. E mais uma vez o cinema nos ajuda a entender o que está tão profundamente segregado da experiência urbana da nossa vida cotidiana:


Infelizmente o vídeo não pode ser visto fora do Youtube, clique no link acima para assisti-lo

Certamente essa invocação a Netuno não nos soaria tão assustadora quanto soou ao personagem de Robert Pattinson, mas podemos entender o sentido do seu terror. Basta lembrar de suas circunstâncias: dois homens provavelmente no final do século XIX presos numa ilha atormentada por uma tempestade infindável, sem perspectiva de serem resgatados, quase sem recursos, bebendo toda sorte de derivados de petróleo (querosene, gasolina?) para se entorpecer — como os meninos de rua que cheiram cola de sapateiro para aliviar a dor e a fome. Duas pessoas acostumadas a olhar o mar não como objeto a ser analítica e descritivamente entendido, mas como uma força sem par que eles se sentem inclinados a respeitar quase com adoração. A invocação que nos apresenta Willem Defoe é mágica, ela manifesta a força esquecida da linguagem, a força sublinhada por Lévi-Strauss na atuação xamânica. A inteligência humana é a expressão de forças criadoras que a atravessam e das quais devemos participar como uma célula participa dos sistemas celulares — e o trabalho criativo dos atores é a maneira mais fácil de notar a interface entre o que é humano e aquilo que tentamos evocar ao usar a palavra divino.

Não posso terminar um post sobre a força esquecida da linguagem sem lembrar dos poetas. Sem lembrar que a devoção dos poetas à linguagem é a última trincheira na luta contra o estreitamento imposto pelo predomínio da visão instrumental da sociedade tecnológica. Vejam o que fala Paulo Leminski sobre a linguagem nesse fabuloso documentário, Ervilha da Fantasia:

Documentário para TV dirigido por Werner Schumann

Sem lembrar, además, do compromisso quase solipsista de Hilda Hilst à linguagem. Nada disso se afasta do entendimento da linguagem como entoação, como enunciação aos ouvidos, cujo poder conserva algo de inefável e insondável — mesmo quando o suporte é escrito. Nietzsche se queixava de que os alemães não escreviam com ritmo e que deixavam os ouvidos na gaveta ao escrever. Há uma continuidade inanalisável entre a fala, a música, feitiços e encantamentos. Todo uso da linguagem deve chegar aos nossos ouvidos como o canto das sereias chegou aos ouvidos de Ulisses, como a manifestação de algo irredutível às pretensões comezinhas do nosso medo e da nossa vontade de controle. Algo que não devemos controlar, mas do qual devemos voltar a participar quase com urgência.


* Tecnicamente, não há nada de fora, porque aquilo que deve existir (a ontologia) no Tractatus é determinada. A substância do mundo é um infinito atual, algo já dado que garante a determinação do sentido e toda a determinação do espaço lógico, mas quando digo que há algo do lado de fora, não estou usando o verbo haver tecnicamente.


Escrevi um ensaio sobre Liberdade e determinismo, pra quem se interessar pelo tema.

Tecnologia sem política: a ilusão das soluções técnicas

Embora eu tenha escrito sobre os valores e a semente de perspectivas transformadoras que permeiam âmbitos tecnológicos, isso não significa que eu acredite, como suponho boa parte das pessoas (especialmente os cientistas), que as respostas aos nossos problemas centrais serão tecnológicas. Há uma contraparte, um fardo gerado pela crença na tecnologia que devemos abandonar antes de poder tornar concreta qualquer perspectiva transformativa.

Elliot Alderson, e também Mr Robot

Vou abordar essa questão primeiro desde uma perspectiva ficcional e logo passo aos casos e ideias reais. A história principal de Mr Robot é um bom exemplo de como, distante de reflexões políticas, a crença na tecnologia pode produzir ações e visões de mundo perigosamente ilusórias. O profundo conhecimento da infraestrutura de rede — dos seus atalhos, vulnerabilidades e gargalos — é o que permite a Elliot Alderson ser a figura tão singular apresentada na série. A discussão sobre a viabilidade técnica de tudo que aparece ali é um caso à parte, Ars Technica tem (ou tinha) um podcast que durante as primeiras temporadas se dedicava a comentar aspectos técnicos da série, além de entrevistar produtores e technical advisers consultados por eles. Elliot era o tipo de sujeito capaz de entender como se dá a comunicação entre dispositivos eletrônicos que nós nem sequer sonhamos que dispõem de sistemas operacionais e as networks aos quais estão integrados. Com todo esse conhecimento, Elliot se dispôs a destruir a infraestrutura que ampara o sistema financeiro, o banco de dados de uma grande empresa de tecnologia que continha dados financeiros de milhões de americanos. Esse evento é o gancho que permite à série introduzir e abordar a tecnologia blockchain, através de uma criptomoeda (Ecoin) que ocupa o vazio deixado pelo colapso da estrutura do sistema bancário tradicional, de carteira (ledger), centralizado e dependente da manutenção e da segurança de suas bases de dados. Quando perguntado sobre o que buscava ao desencadear um processo tão destrutivo, Elliot responde: salvar o mundo! Não há nada de errado em querer salvar o mundo. Não sou como Thoreau que acreditava que era algo semelhante a um transtorno intestinal o que nos levava a querer reformar o mundo. No entanto, quando um propósito como esse não acompanha uma profunda reflexão política, uma reflexão sobre a constituição e a legitimidade das relações de poder, acaba sofrendo de uma superficialidade irreversível como essa que se reflete nas ações quase solitárias de Elliot.

No mundo real estamos expostos a riscos semelhantes, na verdade riscos talvez ainda mais insidiosos porque mascarados por processos institucionais perfeitamente aceitáveis e legítimos. Uma revolução sorrateira é um inimigo mais honesto e mais fácil de combater. Vejamos o caso de Jeff Bezos. Bezos também tem planos ambiciosos para o mundo, como se pode entender pela leitura dessa fantástica reportagem que a Piauí apresenta. No entanto, a transformação que ele planeja, diferente do que pretendia Elliot, não é uma revolução que faz colapsar a estrutura do sistema capitalista, eliminando assim suas injustiças. Em realidade, a transformação que ele propõe não é mais que uma consequência da aceitação incondicional do capitalismo, e isso é o que me parece bizarro em sua visão de mundo. Bezos não aceita a ideia de que devemos parar de crescer e sua perspectiva sobre o futuro é um desdobramento dessa recusa. Ou melhor, ele admite o limite físico que o planeta impõe à economia, mas isso lhe parece indesejável, porque não devemos parar de crescer:

Precisaremos parar de crescer, o que me parece um péssimo futuro.

Segundo Bezos, o limite do planeta não deve nos fazer refletir sobre nossas escolhas, devemos continuar abraçados cegamente à nossa forma de vida e ao crescimento exigido pelo único modelo econômico de que dispomos, o modelo crescimentista:

Comunicação — o cuidado da linguagem de Carlos Taibo.

Como se esse pensamento não fosse suficientemente alarmante, para contornar os limites da oferta de energia e de insumos, Bezos concebe uma solução nada convencional. Ele quer que abandonemos o planeta. Nesse sentido, sua ideia não é muito diferente dos delírios de Elon Musk. Eu não tenho dúvida da inteligência dos dois empresários, Musk é figura central no desenvolvimento de tecnologias as mais diversas ligadas a campos como inteligência artificial (e particularmente computer vision), batérias para armazenamento de energia limpa, computação quântica, exploração espacial entre outras. Entretanto, é patente nos dois a abissal e desconcertante ausência de uma visão política.

O cilindro de Gerard O’Neill representados no filme Interstellar

Os dois empresários me fazem lembrar um conto de Nathaniel Hawthorne chamado The Ambitious Guest. Mais que o amor pela humanidade e pela Terra, as ações deles parecem refletir o profundo desejo de imortalizar a si mesmos legando à humanidade as soluções técnicas que lhes parecem necessárias para resolver nossos problemas. Voltando a Bezos, para contornar o obstáculo imposto ao dogma do crescimento econômico sua ideia é nos levar para outro lugar, mais particularmente, para cilindros situados entre a terra e a lua, conforme a visão do professor Gerard O’Neill. Eu não sou realista, o que me estarrece nessa visão de mundo não é seu caráter abstrato e irreal, mas o fato de que ela não tem, por assim dizer, nenhum consideração ecológica. Ela não considera nossa condição de parte de um sistema ecológico, é como se a desagregação da imensa rede biológica à qual pertencemos não provocasse em nós nenhum impacto significativo, e como se a política não fosse um subconjunto (simbólico) dessa rede.

Eu não canso de repetir as palavras de Aristóteles: somos um animal político (zoon politikón). Conceber a ciência como um mero instrumento, neutro e imparcial, dá lugar às mais aberrantes tentativas de resolver dificuldades humanas, como se elas se tratassem não de questões essencialmente políticas, mas de dificuldades técnicas a serem superadas pelo avanço da ciência e pelo suficiente investimento em pesquisa científica. Não devemos reinventar nossa relação com nós mesmos e com o planeta, não!, basta investir mais dinheiro em ciência e em algum ponto seremos capazes — tecnicamente capazes, é bom enfatizar — de abandonar esse planeta e sua limitação. Quem duvida de que nossa capacidade técnica? Não eu. Agora, uma das premissas fundamentais da economia ecológica é: nenhum sistema físico pode reutilizar indefinidamente os mesmos materiais, ou, em outras palavras, não é fisicamente possível construir uma máquina de moto-pérpetuo, que continuamente reutilize (recicle) os mesmos materiais produzindo a mesma quantidade de energia. O crescimento econômico é a húbris capitalista. Não conheço a obra de Gerard O’Neill mas desde já duvido que ele tenha questionado e derrotado os obstáculos termodinâmicos impostos pela economia ecológica e estabelecido um novo marco teórico.

Honestamente, não é preciso ser físico nem economista para enxergar os sonhos de O’Neill e Bezos como sandices e sintomas da forma de vida débil e decadente que temos nutrido sob o véu da poderosa ciência, basta atentar para a complexidade irrepetível das relações naturais necessárias à nossa vida, como por exemplo a relação entre rios voadores e as longas raízes do Cerrado no Brasil (um dia ainda quero escrever sobre isso). A ciência é uma ferramenta poderosíssima, mas ela não é nada mais do que isso, um instrumento a serviço dos nossos valores e objetivos. Se não for capaz de nos fazer reajustar nossas rotas, nossos desejos e metas, o conhecimento se torna estéril, meramente condicionado a repetir antigos dogmas e secretamente articulado a ardis por meios dos quais antigas ideias continuam em vigor, parasitando nossa vitalidade e sobrevivendo às custas da própria vida no Planeta. Haverão sempre problemas e sempre novas soluções, a única coisa que perdurará será a necessidade de manter uma relação equilibrada com o nosso entorno — onde quer que estejamos. Se não conseguirmos alcançar esse equilíbrio ecológico na Terra, em outro ambiente iremos alcançá-lo? É difícil realizar na penúria o que não somos capazes de conseguir na abundância. Conservar a riqueza, a força, a exuberância e a Beleza da vida na Terra deveria ser um ponto de acordo entre todos nós, mas em realidade é apenas mais um obstáculo a ser superado pela máquina do crescimento econômico, pelo trator de complexas economias de Estados nacionais capitalistas.

Vamos lá, viver em cilindros no espaço para não abandonar o capitalismo. Deve ser o melhor pra nós. Não tem como dar errado!

A música e a raça humana

<fictional_mode> Se eu fosse abduzido por extraterrestres e eles me perguntassem por aquilo que me dá orgulho em minha raça, a raça humana, eu diria sem pestanejar: a música — nunca a ciência! Não é porque me falte estima pela ciência. É que a música tem uma universalidade que a ciência nunca terá. </fictional_mode>

Eu gosto desses vídeos que registram a reação dos animais à música. Há muitíssimos na internet, mas sempre acabo encontrando um novo.

Há ainda elefantes, cavalos. O simples é tão fascinante quanto o complexo.
Enquanto isso, os humanos e suas formas de vida tem induzido experiências bem distintas. Esse experimento do Washington Post não sai da minha cabeça.