Pular o processo: a força da prática

Espírito e técnica

Mestrinho disse, nessa entrevista a Nelson Faria, que não sabe ler partitura. Essa é uma ocasião mais que propícia para falar do primado da prática, do fato de que as regras têm uma posição secundária em relação à prática, apesar de vivermos na era dos computadores. Mestrinho disse que insistiram para ele estudar teoria musical, mas ele não queria “passar pelo processo”, pois o processo era muito lento e grande parte do que lhe era ensinado ele já sabia fazer. Na filosofia de Wittgenstein, a formulação do paradoxo da relação entre regras e práticas é a seguinte:

Nosso paradoxo era: uma regra não poderia determinar um modo de agir, pois cada modo de agir deveria estar em conformidade com a regra.

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 201

Eu gosto de reformular o paradoxo nos seguintes termos: “uma regra não pode nos dizer o que fazer a menos que já saibamos o que fazer“. Isso significa que a regra não pode ser o começo da determinação do sentido, na verdade, a própria constituição do seu papel normativo depende de uma prática que pode instaurar ou derrogar essa função. A pergunta que apresenta um contexto mais amplo no qual as duas perspectivas aparecem conectadas é: onde a execução efetivamente começa, na regra ou na prática? Apesar da tendência, infelizmente compreensível, de se envergonhar por não saber ler partitura, Mestrinho afirma hesitantemente que, pelo menos no seu caso, a prática é decisiva para constituição da habilidade de tocar. Nelson Faria confirma essa perspectiva e acrescenta uma analogia muito apropriada: aprender a tocar (e saber tocar) é como aprender uma língua, você aprende a falar e só muito depois vem a saber (ou não!) da existência das regras gramaticais, dos conectivos, dos elementos que as regras organizam, etc.

A gramática de uma linguagem não é registrada e não chega a existir até que linguagem tenha sido falada pelos seres humanos por muito tempo.

Ludwig Wittgenstein, Gramática filosófica

Agora, como é o outro lado? Por que a vergonha quando se desconhece a teoria, as regras do jogo? E qual é a função da teoria? O espírito está dado, ele nasce com Mestrinho, já a técnica permite que qualquer um possa desenvolver uma capacidade que Mestrinho já nasceu sabendo, a capacidade de tocar e criar. A técnica registra a regularidade das ações em regras que instituem as condições de um saber fazer (know how) e ao se estabelecer desse modo ela torna possível que essa competência possa ser adquirida não apenas por aqueles que a tem no espírito, mas por qualquer um. Assim teve lugar o enorme salto evolutivo que só a colaboração é capaz de propiciar. Eu disse colaboração, não competição, para que fique claro! Numa sociedade científica, ou melhor, na Tecnosfera em que nós vivemos, é muito fácil perder de vista o primado da prática, e do espírito, em função do lugar que o método e as regras têm no nosso panorama ideológico. E é ante a força simbólica desse perspectiva que mesmo um talento nato como Mestrinho chega a sentir vergonha de algo que ele simplesmente não precisa.

Espero que não seja preciso dizer que não há dúvida de que a técnica pode permitir que alguém imagine novos mundos. Vejamos o caso de Jacob Colliers. A Jacob seguramente não lhe falta espírito, mas a este legado natural se sobrepõe uma generosa camada de compreensão teórica. (Adam Neely, que eu mencionei nesse post, também sabe muito de prática e teoria musical) Assim suas habilidades se expandem e, dispondo de dinheiro para comprar equipamentos e tendo adquirido conhecimento e competência para usar softwares de edição de som, as possibilidades de criação e execução parecem ampliar-se indefinidamente. Mas não é como se houvesse de fato uma perda na ausência de uma compreensão teórica, ainda que não deixemos de sentir a ausência de uma compreensão técnica como perda e deficit. Parece como se não pudéssemos deixar de sentir como faltante, carente, tudo que não se envolve com a técnica. Mas as expressões da técnica são também expressões do espírito. Embora estejamos inclinados a pensá-la em termos estritamente normativos — envolvendo regras e o adestramento que vai construindo uma habilidade —, o melhor que a técnica pode fazer (e é preciso lembrar que mesmo a poesia necessariamente envolve técnica) é estimular o espírito de outros seres humanos, como o espírito de Alexander von Humboldt se integrou ao espírito do jovem Charles Darwin, a ponto de lançá-lo numa aventura de mais de 5 anos pelo hemisfério sul com o Beagle. Sem falar que a técnica pode simplesmente limitar o espírito, isso se pode constatar facilmente dentro da Universidade, e, aliás, em certa medida já está também na frase de Sêneca: “excesso de livros, barafunda do espírito!”.

O problema da técnica é a sua quase imperceptível aura ideológica, aquilo que caracteriza a Tecnosfera, a pretensa redutibilidade que se deriva do propósito objetivo do conhecimento. A objetividade do conhecimento pretende fazer com que a pluralidade do subjetivo se reduza a uma unidade, a unidade do Real. A técnica tem tanta importância na história humana, e facilita tanto a nossa vida, que é quase impossível dirigir-lhe uma crítica sem angariar antipatia e, não poucas vezes, inimigos. Apesar disso, mesmo se usando uma ficção nós imaginássemos uma história contrafactual na qual Mozart e Beethoven não aprenderam a escrever suas obras, — pois não sabiam usar nenhuma notação musical, embora fossem capazes de criá-las e e executá-las—, nós nos veríamos constrangidos a admitir que a beleza dessas obras se conservaria, ainda que talvez elas nunca tivessem chegado até nós. Essa ficção atesta tanto a utilidade da técnica quanto aquilo que no espírito e em suas manifestações é irredutível a ela.

É claro que, em certo sentido, o propósito desse texto é desidratar o papel da técnica, supradimensionado por uma adesão (irrefletida || dogmática) à ciência, além de criticar a consequente conversão de todas perspectivas à inescapável chave técnica problema/solução (conversão que empobrece a ciência e torna os cientistas meros puzzle-solvers, como dizia Thomas Kuhn). Entretanto, mais importante do que a crítica é a lembrança de que o espírito é a fonte de toda a criação e de que tudo o que nós entendemos como (possível || impossível) não é nada mais do que o resultado da vigência de leis e regras que foram instituídas e que, por isso mesmo, podem ser igualmente destituídas, ainda que não possamos ver um lado de fora (ver o impossível). A adesão à técnica nos congela a um espaço de estabilidade e torna a instabilidade uma tragédia, algo que só tem lugar por meio de eventos externos que, com violência, invadem nossas expectativas e comprometem a tão sonhada e tão bem-quista previsibilidade.

Poincaré, ciência e previsibilidade

Na arte é onde a autonomia, a libertação do peso da imitação, pode ser vista mais claramente como fonte da criação, manifestação do espírito.


Nos comentários de Gilbert Ryle vemos uma imagem da força da regra como perspectiva:

É claro que executar uma operação de forma inteligente não é exatamente a mesma coisa que acompanhar sua execução de forma inteligente. O agente é originário, o espectador está apenas contemplando. Mas as regras que o agente observa e os critérios que ele aplica são as mesmas que regem os aplausos e zombarias do espectador. O comentarista da filosofia de Platão não precisa possuir muita originalidade filosófica, mas se ele não puder, como muitos comentaristas não podem, apreciar a força, o rumo ou o motivo de um argumento filosófico, seus comentários serão inúteis. Se ele pode apreciá-los, então ele sabe como fazer parte do que Platão soube fazer.

Gilbert Ryle, The concept of the mind, 42

A redução da competência a um vocabulário disposicional deixa do lado de fora o espírito e torna todas as suas manifestações meras complexidades que, ao menos em tese, podem ser traduzidas em regras mais precisas (mais complexas); em algoritmos capazes de resolver algo posto em termos de complexas manipulações de dados (portanto, a elementos decidíveis). Wittgenstein usava a pianola como exemplo de determinação, setenta anos depois de sua morte, é incrível constatar que para muita gente é real e está ao nosso alcance a possibilidade de construir inteligências capazes de executar as Variações Goldberg com o mesmo brilho que Glenn Gould. Não há nada que o espírito acrescente, pois todo o espaço do possível é tecnicamente mapeável, não há nada do lado de fora. — Há sempre algo do lado de fora! Mas por ora o que importa é apenas apresentar muito claramente o que pretende a técnica e o que pode o espírito, como uma diferença entre uma pianola idealizada (modelos de inteligência artificial) e Glenn Gould (Claudio Arrau, ou o virtuose do piano de sua preferência).

Cultura Pop, Humor e Inteligência

Há duas coisas que eu gosto em Zizek: o humor sempre presente nos seus textos e falas, e a sua atitude em relação à cultura pop. Meus textos não tem nem um grão de humor, são completamente planos nesse quesito. Boa parte dos comentaristas políticos de quem eu gosto incorpora o humor no que escreve e isso torna a atmosfera dos seus textos menos rarefeita — eu tenho em mente: Celso Rocha de Barros, José Roberto de Toledo, Conrado Hübner Mendes e em certa medida até Marcos Nobre. Aceitar a cultura pop — essa categoria tão abrangente e vaga — é outro elemento que ajuda trazer oxigênio à atmosfera dos pensamentos.

A chave pra entender a oxigenação da atmosfera promovida pela cultura pop está na flexibilização dos padrões de inteligência e em suas consequências discursivas. Usemos uma meia verdade para ilustrar como se dá essa flexibilização. Suponhamos que em relação ao entendimento e à capacidade de julgar há duas posições particularmente importantes e antagônicas. Duas posições distintas a respeito da importância do exemplo e da abstração. Kant acreditava que o exemplo era uma muleta e os que fossem capazes disso deveriam prescindir do seu uso:

Pois, no tocante ao rigor e precisão dos conhecimentos do entendimento, os exemplos são, geralmente, mais prejudiciais que vantajosos, porque é raro cumprirem adequadamente a condição da regra (como casus in terminis) e enfraquecem, além disso, muitas vezes, o esforço do entendimento para apreender (…) Assim, os exemplos são as muletas da faculdade de julgar de que nunca poderá prescindir quem careça desse dom natural.

Immanuel Kant, Crítica da Razão pura, B173-4

Embora essa posição pareça esnobe e arrogante, ela está conforme às exigências próprias ao pensamento de Kant e à sua inclinação ao que é puro, ao que está livre das opacidade e da incerteza da experiência e dos fatos. No Tractatus Logico-Philosophicus, Ludwig Wittgenstein apresentou um pensamento que para muitos tem o sabor de um pensamento kantiano:

O pensamento é cercado por uma bruma. — Sua essência, a lógica, apresenta uma ordem: a saber, a ordem a priori do mundo; isto é, a ordem das possibilidades, que o mundo e o pensamento tem em comum. Mas essa ordem, parece, deve ser extremamente simples. Ela antecede toda experiência e deve atravessar toda a experiência; nenhuma opacidade e incerteza empírica deve aderir a essa ordem. — Ela deve ser o mais puro cristal. Mas esse cristal não parece uma abstração, mas algo concreto, na verdade como o mais concreto, como se fosse há coisa mais dura que há (Tractatus Logico-Philosophicus 5.5563).

Wittgenstein, Investigações filosóficas, 97

Esse é o contexto em que a pureza tem lugar e onde convém afastar-se da opacidade das coisas empíricas, abstrair-se de suas impurezas e distorções. Acontece que direta ou indiretamente esse contexto marca uma posição sobre um modelo de inteligência. Nessa posição está privilegiado o modelo de inteligência ligado à abstração, ao esvaziamento ou ao descarnamento (descarnação? não sei como dizer) da experiência em busca de regras de determinação do sentido cada vez mais gerais. Pra essa perspectiva, o exemplo só pode ser uma muleta, porque diz mais do que o necessário. Diz o contingente, diz o irrelevante. E ao dizer tanto introduz a vagueza, a pluralidade de sentidos, tudo aquilo que deve ser evitado para que a linguagem possa dizer o sentido claramente, de modo determinado.

(Minha leitura do parágrafo de Kant citado acima é enviesada, o próprio recorte é enviesado — leiam todo o contexto. Por isso o que eu disse é uma meia verdade, Kant não difere de Wittgenstein sobre o papel dos exemplos [dos casos], a diferença entre eles reside no fato de que a lei e a regra para a pragmática de Wittgenstein são determinadas pela constância da prática, enquanto que o problema da determinação [do seguir a regra] não estava nem mesmo posto no marco determinista do pensamento de Kant. Para Kant, a estruturação começa pelo mais geral [o vetor de determinação é a generalidade] e não há interesse lógico em uma genealogia como a de Wittgenstein ou a de Foucault.)

Quando o pensamento de Wittgenstein começa a mudar, muda também a sua relação com o caso, com o exemplo. A ênfase sobre o papel da ação — que o leva a valorizar tanto a etnologia — tira o exemplo da lata de lixo e em certo sentido o coloca no próprio centro da atividade de esclarecimento conceitual que é a filosofia. Isso abre espaço a um modo completamente diferente de pensar a inteligência. Um modo mais plural, mais generoso no seu olhar. Nosso olhar continua sendo arrogante, porque não conseguimos conceber inteligências dignas do nosso apreço se não possuirem, por exemplo, conceitos aritméticos. Mas o espaço está aberto para que o cinema — como desde sempre a literatura — possa nos instruir sobre o mundo fora das nossas bolhas. Assim, podemos forjar nós mesmos as medidas e os padrões de inteligência que usaremos de agora em diante — ao invés de nos fiar nesse elogio à abstração. Sobre esse mesmo tema um exemplo do cinema pode nos ajudar.

Uma boa imitação da inteligência humana? (Não há legendas porque o vídeo não é meu, peguei no Youtube, essa é uma cena clássica de Blade Runner.)

A flexibilização dos padrões de inteligência estimulada pela pragmática se dá quase ao mesmo tempo que a busca de Alan Turing por um modo de distinguir a inteligência humana da inteligência artificial. O que vale pra seres humanos e androides, vale também na relação dos humanos entre si e entre os humanos e os animais. Digo, podemos também nos perguntar pela expressão de diferentes formas de inteligência. Vamos deixar de lado a inteligência dos animais e a dos androides e ficar somente com os diferentes paradigmas de inteligência entre humanos. Depois de ter dado essa volta, fica fácil (ou menos difícil) ver porque a cultura pop pode trazer oxigênio à atmosfera do pensamento. Porque o exemplo, a concretude de casos particulares próximos ao maior número de pessoas, reduz o peso da abstração como critério de inteligência e permite que outras formas de inteligência se expressem ou possam ser vistas por nossos olhares, agora menos engessados. O pensamento precisa tanto da abstração como da imaginação e nem sempre a capacidade de abstrair e de imaginar coincidem. Podendo circular entre diversas expressões de inteligência, o pensamento — já como coisa sem dono — está livre para se manifestar nos mais variados cantos da cultura. (Virar um meme?)

Essa valorização da multiplicidade da inteligência produz um efeito cascata cujo alcance não podemos esgotar. Da perspectiva do indivíduo ela abre espaço à criação, à ruptura de paradigmas, na medida em que abranda a força normativa sedimentada em modos estáveis de avaliar a inteligência. Da perspectiva social, ela recoloca os atos inteligentes em contextos, isto é, em contextos históricos, explicita valores, e pouco a pouco a flexibilização pode construir a atmosfera para pensamentos novos, dirigidos por novos eixos. Como enxergar o mundo sob novas lentes, apoiado em novos eixos? Como dar espaço a novas perspectivas sem reavaliar também a própria medida de inteligência, sem flexibilizar seus próprios padrões? Como resistir à tendência à estabilidade encontrando uma boa justificação para não mudar?

Nossa obsessão por medidas é tão grande que, quando pensamos na Teoria da Relatividade como expressão inconteste da inteligência, e queremos identificar inteligências igualmente grandiosas fora desse marco teórico, tendemos a recorrer a medidas institucionalmente estabelecidas — e dizemos, por exemplo, que Shakespeare é um gênio fora das ciências. No entanto, o problema persiste porque a generalização dos padrões de inteligência tende a nos tornar meros aplicadores de normas, pessoas inclinadas a usar os critérios consensualmente reconhecidos, ao invés de criar nossas próprias medidas. A tendência a confiar nos quadros de organização de valor (quadros normativos) tem o mesmo pendor a engessar nossa capacidade de enxergar a inteligência que o apego à abstração. Isso sem falar no que pode haver de meramente performático na expressão da inteligência, como, por exemplo, a erudição. Não há melhor máscara para a estupidez.

Entre o caso e a regra estivemos sempre a buscar as regras e a leis mais gerais. Precisamos de outro olhar, um olhar que saiba também privilegiar o concreto, que saiba ver no concreto o manancial de novas generalidades, de novos abstratos.

O humor é uma das expressões mais interessantes da inteligência e, no contexto dessa discussão, a questão que se coloca pra mim uma e outra vez é: qual é a expressão máxima da inteligência no humor? Como identificá-la em sua particularidade, em sua singularidade? É uma obra? O humor é um trabalho não poucas vezes fragmentário, embora constante. Mas só podemos constatar sua grandiosidade contemplando uma obra inteira, uma seleção dos seus melhores momentos? Nenhum particular a revela? É a partir dos casos que alguém aprende a enxergar a regra, são os exemplos e as amostras (a constância delas) que determinam as dimensões gerais que depois vemos claramente nas leis e padrões que descrevem uma regularidade. Quando nos damos conta disso, descobrimos que há milhões de domínios recônditos onde a inteligência se manifesta sem testemunhas (e não apenas dentro da cultura popular). Embora minha tendência à didática do radicalismo me dirija à inteligência dos animais, das aranhas, por exemplo, o humor, essa marca tão própria ao humano, é um bom ponto de partida para o exercício do olhar.

Laerte e sua obra monumental
Linha do trem, recentemente redescoberto.
Molg H., um gênio incompreendido.

Nunca é demais lembrar que não se trata de abolir distinções de valor, como elas fossem inúteis ou inadequadas tal como são. Não podemos viver sem valor, mas podemos nos tornar melhores juízes, juízes mais criteriosos, autônomos, generosos, há muito o que melhorar e sem tornar flexíveis nossos padrões é quase impossível ver o que está fora das nossas lentes.

Invocações, encantamentos e entoações

Atado ao mastro do navio, Ulisses ouve o canto das sereias. Pintura de Herbert James Draper

Tudo que pode interferir na cadeia causal de fatos naturais tem que, em certo sentido, já estar nessa cadeia. A natureza não é mais que uma cadeia, uma série de eventos que se estendem do agora ao passado e ao futuro. Esses eventos estão indissociavelmente ligados, de tal sorte que qualquer mudança nos fatos que compõem a cadeia implica uma mudança em todo o sistema. É por isso que muitos não admitem a ideia de vontade, porque a vontade (livre) pode atuar sobre os fatos como se não estivesse constrangida por eles, daí a separação entre natureza e liberdade. A liberdade da vontade é a irredutível à determinação (de qualquer sorte). A ideia de uma subjetividade que não está completamente determinada pela regras que governam as cadeias causais e que por isso pode interferir no reino causal espontaneamente (ou quase) dá arrepios em muitos control freaks. O reino da liberdade tem suas próprias regras (moralidade). Kant sabiamente não via nenhum conflito entre as duas perspectivas:

Independente do conceito que se possa formar, com propósitos metafísicos, sobre a liberdade da vontade, as manifestações fenomênicas desta, as ações humanas, se encontram determinadas conforme leis universais da Natureza, como qualquer outro acontecimento natural.

Kant, Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita

É quase apavorante pensar que pode haver uma dimensão parcialmente excluída do que podemos conhecer e que, ainda assim, pode interferir nos fatos que conhecemos. (As leis da liberdade tem que ser instituídas). Se você deixar passar o boi da “vontade”, passa junto com ele toda a boiada da espiritualidade — tudo que pode interferir na causalidade sem estar na cadeia causal. E como não admiti-la?

Em “Eficácia simbólica”, Levi Strauss relata com detalhe o caso de um xamã que dá um sentido particular às dores de uma mulher que dá à luz, mitingando seu sofrimento, restituindo a experiência ao universo simbólico onde as coisas tem seu lugar.

A cura consistiria, portanto, em tornar pensável uma situação dada inicialmente em termos afetivos, e aceitáveis, pelo espírito, dores que o corpo se recusa a tolerar. O fato de a mitologia do xamã não corresponder a uma realidade objetiva não tem importância, pois que a paciente nela crê e é membro de uma sociedade que nela crê. Espíritos protetores e espíritos maléficos, monstros sobrenaturais e animais mágicos fazem parte de um sistema coerente que funda a concepção indígena do universo. A paciente os aceita ou, mais precisamente, jamais duvidou deles. O que ela não aceita são as dores incoerentes e arbitrárias que constituem um elemento estranho a seu sistema, mas que o xamã, recorrendo ao mito, irá inserir num sistema em que tudo se encaixa.

Claude Lévi-Strauss, “A eficácia simbólica”. Antropologia estrutural

A observação cuidadosa de Lévi-Strauss destaca um aspecto importante: se trata de um tipo particular de eficácia, uma eficácia simbólica. Não estou certo de que ele não empresta à expressão a mesma radicalidade que eu, isto é, que ele a veja como testemunho de algo que escapa à pretensão objetiva de nosso olhar científico. Mas pode ser que sim, repare em sua observação sobre a irredutibilidade da mitologia xamânica. Não pode haver nada do lado de fora do quadro de fatos que a ciência tenta determinar, não pode haver nada exterior à teia de relações definidas pelas leis naturais que governam a série causal. Talvez a mais geral expressão dessa pretensão totalizante seja um comentário de Wittgenstein sobre a lógica no Tractatus Logico-Philosophicus:

A lógica preenche o mundo; os limites do mundo são também seus limites.
Na lógica, portanto, não podemos dizer: há no mundo isso e isso, aquilo não.

Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus 5.61

A lógica preenche o mundo. E, no entanto, há algo do lado de fora, mesmo pro Tractatus. Há algo que mesmo uma linguagem inteiramente devotada a figurar fatos não pode representar*.

Apesar de não nos ensinarem a admitir a possibilidade de que exista algo fora da série causal capaz de intervir nos fatos que testemunhamos, a linguagem, entendida não como uma ferramenta técnica, mas como expressão aberta de nossa milenar relação com o mundo, conserva e multiplica as ocasiões em que constatamos o irredutível mistério do universo. Na tradição cabalística diz-se que uma certa leitura do Talmude poderia nos tornar capazes de criar vida, com uma pequena e decisiva diferença. Se pudéssemos interpretá-lo corretamente, confirme esses ensinamentos secretos, poderíamos criar vida, mas essa vida artificialmente criada, o golém, não teria algo que nós temos, a linguagem. Isso está em sintonia com as observações dos evangelhos, onde se lê:

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.
Ele estava no princípio com Deus.
Tudo foi feito por ele; e nada do que tem sido feito, foi feito sem ele.
Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens.

João 1:1-4

O verbo é algo que só Deus pode conceder, é um poder que nos escapa. Deus sopra em nossa boca o verbo e nos infunde o espírito. Participamos da força divina através da linguagem. Meu virulento ateísmo e minhas críticas à religiosidade me credenciam a falar de todas essas coisas sem reservas, como quem senta num bar e conversa com amigos. A linguagem é uma força cuja medida escapa aos estreitos limites da nossa pretensamente totalizante visão científica do mundo.

A linguagem comporta algo de irreal, mágico, sobrenatural, algo que muitas experiências espirituais se esforçaram por canalizar e integrar (não entender). Ainda que essa ideia pareça algo distante para nós, seres (humanos && urbanos) de um mundo desencantado, não é assim tão distante quanto parece. É apenas algo com o que não fomos ensinados a lidar — mas podemos aprender tudo. Como uma criança pode ser ensinada a acreditar em Deus. O cinema, como a arte em geral, é o que nos torna capazes de ver aquilo que não fomos ensinados a enxergar. Vejam esse fragmento de The ballad of Buster Scruggs:

Fragmento de “The Ballad Of Buster Scruggs”, dos irmãos Coen.

A expressão no rosto dos espectadores diante de um garoto sem braços nem pernas cuja força dramática se impõe de modo quase sobrenatural é desses detalhes cuidadosamente pensados pelos bons diretores. Mas ainda não é o suficiente. O que melhor manifesta essa ponte que eu quero estabelecer entre a linguagem como ferramenta prática e sua dimensão divina são suas invocações, seus usos aparentados a tudo que poderíamos designar como encantamento e feitiço. E mais uma vez o cinema nos ajuda a entender o que está tão profundamente segregado da experiência urbana da nossa vida cotidiana:


Infelizmente o vídeo não pode ser visto fora do Youtube, clique no link acima para assisti-lo

Certamente essa invocação a Netuno não nos soaria tão assustadora quanto soou ao personagem de Robert Pattinson, mas podemos entender o sentido do seu terror. Basta lembrar de suas circunstâncias: dois homens provavelmente no final do século XIX presos numa ilha atormentada por uma tempestade infindável, sem perspectiva de serem resgatados, quase sem recursos, bebendo toda sorte de derivados de petróleo (querosene, gasolina?) para se entorpecer — como os meninos de rua que cheiram cola de sapateiro para aliviar a dor e a fome. Duas pessoas acostumadas a olhar o mar não como objeto a ser analítica e descritivamente entendido, mas como uma força sem par que eles se sentem inclinados a respeitar quase com adoração. A invocação que nos apresenta Willem Defoe é mágica, ela manifesta a força esquecida da linguagem, a força sublinhada por Lévi-Strauss na atuação xamânica. A inteligência humana é a expressão de forças criadoras que a atravessam e das quais devemos participar como uma célula participa dos sistemas celulares — e o trabalho criativo dos atores é a maneira mais fácil de notar a interface entre o que é humano e aquilo que tentamos evocar ao usar a palavra divino.

Não posso terminar um post sobre a força esquecida da linguagem sem lembrar dos poetas. Sem lembrar que a devoção dos poetas à linguagem é a última trincheira na luta contra o estreitamento imposto pelo predomínio da visão instrumental da sociedade tecnológica. Vejam o que fala Paulo Leminski sobre a linguagem nesse fabuloso documentário, Ervilha da Fantasia:

Documentário para TV dirigido por Werner Schumann

Sem lembrar, además, do compromisso quase solipsista de Hilda Hilst à linguagem. Nada disso se afasta do entendimento da linguagem como entoação, como enunciação aos ouvidos, cujo poder conserva algo de inefável e insondável — mesmo quando o suporte é escrito. Nietzsche se queixava de que os alemães não escreviam com ritmo e que deixavam os ouvidos na gaveta ao escrever. Há uma continuidade inanalisável entre a fala, a música, feitiços e encantamentos. Todo uso da linguagem deve chegar aos nossos ouvidos como o canto das sereias chegou aos ouvidos de Ulisses, como a manifestação de algo irredutível às pretensões comezinhas do nosso medo e da nossa vontade de controle. Algo que não devemos controlar, mas do qual devemos voltar a participar quase com urgência.


* Tecnicamente, não há nada de fora, porque aquilo que deve existir (a ontologia) no Tractatus é determinada. A substância do mundo é um infinito atual, algo já dado que garante a determinação do sentido e toda a determinação do espaço lógico, mas quando digo que há algo do lado de fora, não estou usando o verbo haver tecnicamente.


Escrevi um ensaio sobre Liberdade e determinismo, pra quem se interessar pelo tema.

Filosofia e Ficção

Por uma razão simples a ficção não pode ter um papel central na ciência nem na filosofia científica que temos adotado: elas estão centradas na verdade e em sua eficácia causal. A ficção não tem nenhum compromisso essencial com a verdade. Alguém poderia até dizer que algumas das experiências ficcionais mais significativas fazem da verdade um mero fantoche no jogo complexo de articulações em nada redutíveis ao verdadeiro. Pensem, pra ficar num exemplo a mão, nas muitas séries que amamos. Isso não significa que o ficcional não tenha nenhuma função na filosofia. Desde o gênio maligno de Descartes temos usado ficções para muitos propósitos, no entorno da fundamentação da ciência moderna. Até mesmo na filosofia analítica há celebres usos ficcionais, como a Terra Gêmea de Hilary Putnam. O próprio Richard Rorty, cada vez mais crítico da filosofia analítica, apontou magnificamente o papel central da ficção na cultura literária. Ainda assim, a variedade desses usos se distingue radicalmente dos usos de Wittgenstein, que sublinham a irredutibilidade do sentido e colocam a verdade num lugar secundário.

Quando Wittgenstein nos convida a imaginar pessoas que jogam xadrez sem o rei, outras que determinam o preço de madeira de um forma completamente disparatada, tribos que não tem mais que alguns pares de palavras, seu propósito não é trazer à luz alguma verdade. O propósito desses usos ficcionais é fazer ver o sentido de nossos próprios jogos, de nossas próprias normas, usando como instrumento regras e práticas estranhas (aliens seria a palavra mais adequada) aos nossos parâmetros. Seu propósito (ou o principal deles) é mostrar o óbvio, isto é, aquilo que estando sempre diante do nossos olhos, nós não conseguimos ver.

Para Wittgenstein, o óbvio é o mais difícil de notar e isso diz algo sobre aquilo que é mais geral num sistema de crenças. A generalidade dos aspectos mais centrais do nosso sistema lança sobre eles um véu que nos impede de enxergá-los. Como a visibilidade dos fatos naturais é um assunto que ronda minha pesquisa, quando tive que escolher a epígrafe da minha tese, decidi por um fragmento de Borges que, embora apontasse no sentido oposto, estava na mesma direção. Um pedaço de Deutschem Requiem que há tempos me fascina justo porque parece fazer daquilo que está sempre diante de nós não o fiador da própria racionalidade e do sentido, como julgava Wittgenstein, mas a própria semente da loucura:

Yo había comprendido hace muchos años que no hay cosa en el mundo que no sea germen de un Infierno posible; un rostro, una palabra, una brújula, un aviso de cigarrillos, podrían enloquecer a una persona, si esta no lograra olvidarlos. ¿No estaría loco un hombre que continuamente se figurara el mapa de Hungría? 

De todo modo, a filosofia de Wittgenstein se distancia decisivamente da tradição ocupada com a verdade e com seu arcabouço lógico/formal e inaugura, nas entranhas dessa própria tradição, onde então ele se encontrava, uma abordagem que privilegia o sentido em relação à verdade. Isso não significa que a verdade fosse para ele desimportante, de modo algum, mas sua preocupação passa a centrar-se nos efeitos bombásticos de práticas para a determinação das regras e não o contrário, conforme pensava a tradição logicista da qual ele vinha. Seu olhar muda de uma perspectiva lógica para um enfoque etnológico.

Entretanto, as atividades de dar razões, de justificar a evidência, chegam a um limite — mas o limite não são certas proposições que nós reconhecemos imediatamente como verdadeiras, como se fosse um modo de ver de nossa parte; é nosso agir que se encontra na base do jogo de linguagem.

Wittgenstein, Sobre a certeza, § 204

Wittgenstein radicalizou a ideia de sentido de Frege, perdida na crítica de Russell ou simplesmente atrapalhadamente confundida na mistura entre sentido e significado (sense e meaning ou Sinn e Bedeutung). Mas nada disso interessa. O que interessa na ficção é a possibilidade de imaginar o mundo de forma radicalmente diferente — ficção e imaginação são ideias que vão juntas. Uma mudança radical num sistema de crenças pode resultar da imersão na experiência ficcional. Uma conversão. Os acordos tem limites e quando topamos com esses limites só podemos transpô-los deixando de ser quem somos. Abandonando alguma identidade, a identidade de certos acordos. E do abandono dessa identidade sairíamos como o rei, convencido por Moore:

Os homens tem acreditado que podem fazer chover, por que não poderia ser o caso de um rei que acreditasse que o mundo começou junto com ele? E se Moore e esse rei se encontrassem e discutissem, Moore poderia realmente provar que sua crença é a única verdadeira? Eu não digo que Moore não poderia converter o rei à sua perspectiva, mas essa seria uma conversão de um tipo especial; o rei seria levado a ver o mundo de um modo diferente.

Wittgenstein, Sobre a certeza, § 92

A ficção nos ajuda a transpor os limites da nossa cegueira, da cegueira imposta pelas nossas próprias normas. A cegueira que nos impede de superar desacordos e entender para além dos limites das nossas próprias regras — e das normas que nos confinam a uma identidade. A normatividade clínica e jurídica, como nos conta Foucault, é quem produz a identidade das sexualidades periféricas. É ela que transforma o que era estritamente moral em jurídico, portanto sujeito não à censura (moral) mas à interdição (institucional). Vejam o caso de Alan Turing. Se nós fossemos outros talvez pudéssemos ter evitado o final de Alan Turing. Talvez não tivéssemos sidos seus verdugos, mas fomos. Somos seus carrascos. E ele é nosso herói, não? Lutou com a inteligência contra o nazismo, sua espada era a matemática. Nós matamos nosso herói, Sófocles não teria pensado melhor. Sem a ficção — apegados a um desejo de controle e determinação impulsionado pelo crescimento exponencial na capacidade de produzir, armazenar e processar dados — dificilmente conseguiremos nos libertar do desejo de dominar, caminharemos cegamente em direção a esse abismo, sonhando um dia realizar algo semelhante àquilo que apresenta Minority Report (Philip Dick mais uma vez).

O ritmo das transformações de nossa era é inédito na história da humanidade, as coisas mudam numa velocidade que nada consegue acompanhar. As instituições e os processos deliberativos que elas exigem, processos de legitimicação e normatização, não conseguem acompanhar as mudanças determinadas em grande parte pela transformação tecnológica. A única coisa que acompanha, ou melhor, que alimenta esse ritmo é o mercado. São as economias dos nossos países crescimentistas e a necessidade de trabalho. É preciso haver produção, é preciso inovação, mais produtividade, automação completa, pois essas são as regras da competição nas economias modernas, nos lembra David Harvey. No mais, todo o resto segue atrasado, sendo arrastado pela locomotiva de mudanças aparentemente inescapáveis. Precisamos mudar o ritmo, escolher nosso próprio ritmo, não meramente aceitar o ritmo imposto de fora — mas também precisamos saber mudar. Sem a ficção (sem a imaginação) é difícil criar o sentido necessário para transformar nossas visões de mundo, e assim estaremos condenados a preservar a estabilidade de uma visão de mundo que recebemos sem questionar (daí porque a tendência a confirmação). Condenados a rejeitar a mudança (a acreditar em ideias conservadoras), a ter uma visão histórica estreita, maniqueista, talhada para atrair pessoas inclinadas à segregação e não à miscigenação. Necessitamos a mudança e a transformação para não estar em nossas mentes como um animal que não consegue mudar de pele, impedido de reacomodar as novas dimensões do nosso espírito. A exigência do nosso tempo é a de que sejamos capazes de derrogar nossas identidades e nos transformar num ritmo que nenhum outro ser humano jamais se transformou, e isso significa passar por um período sombrio de incerteza. Um período de transformações angustiante, apavorante, diferente da idílica conversão do rei persuadido por Moore. A transformação é um período de instabilidade porque a perda das certezas, dos eixos que orientam nossas visões de mundo, é um processo traumático, conturbado, de desorientação e, como Safatle não cansa de lembrar (com Freud), de desamparo. Não há garantias de que há um outro lado, de que um dia chegaremos a ser outra coisa, um outro tão estável e equilibrado como isso o que somos hoje, isso que defendemos e preservamos da mudança. É uma aposta, é como sair navegando pelo oceano a espera de encontrar algum novo lugar.

Não por outra razão eu quis escrever ¿Hemos ido a la Luna?, para discutir os efeitos da alteração nos eixos de nosso sistema de crenças. Sem imaginação, arriscamos perder-nos nessa passagem entre visões de mundo, incapazes de repor o sentido que se foi junto com as certezas fundamentais. Coincidentemente, quando eu estava escrevendo esse texto, Mia Couto deu uma entrevista pro Nexo em que dizia algo central pra tudo isso que eu esbocei precariamente aqui. Ele disse: “Eu tenho medo é de que as crianças não sejam capazes de criar suas próprias histórias”.

Bem, todo esse texto é apenas uma maneira de antecipar e registrar uma mudança. Quero usar a ficção, o cinema, a literatura, como instrumento principal de reflexões filosóficas. Por isso os textos ficarão cada vez menos comprometido com a verdade, com a realidade, com os nossos acordos e mais comprometidos com a imaginação, com a ficção e com a realidade do irreal. A excentricidade é uma margem do rio da loucura e nenhuma grande conversão pode se dar sem margear esse rio (esse margear não é um capricho, é uma necessidade lógica exigida pelas conversões, portanto não é acidente que seja assim).